Ospa em grande noite e vagas felicidades deste que vos escreve

O excelente maestro  Nakata e o voiolinista Adrian Pinzaru durante os ensaios | Foto: Augusto Maurer
O excelente maestro Nobuaki Nakata e o violinista Adrian Pinzaru durante os ensaios | Foto: Augusto Maurer

O jornalismo gonzo é um estilo onde o autor abandona a objetividade ou o distanciamento, misturando-se à ação, argumentação ou enredo. Então você dirá que tudo o que escrevo no blog é gonzo e eu vou concordar, mas hoje serei ainda mais gonzo que o normal.

E, ainda por cima, vou escrever sobre o concerto de ontem a partir do Concerto Duplo de Brahms, desconhecendo a ordem de apresentação das obras. Bem, sou filho de uma família onde não faltava nada e tampouco sobrava. Meus pais garantiam que eu tivesse acesso a tudo o que fosse necessário a uma boa formação, porém, até os 20 anos de idade, eu dormia num sofá de uma sala que se transformava em quarto à noite. Não, não começarei uma narrativa dickensiana de tormentos infantis — não seria sincero, tive uma infância nojenta de tão feliz –, mas direi que na sala estava o toca-discos e meu pai costumava ouvir música até 2, 3 ou 4 horas da madrugada, enquanto eu dormia. Minha formação musical tem a mão dele. Antes de eu dormir, ele me mostrava coisas de que gostava ou detestava. Tal fato rendeu alguns subprodutos: tenho sono pesado, difícil de perturbar e conheço muitas músicas absolutamente de cor, sem saber de onde vieram. Então, quando começou a execução do Concerto Duplo para Violino e Violoncelo de Brahms, eu logo constatei: esta é uma daquelas músicas que vieram pré-instaladas no meu cérebro desde os tempos imemoriais. Ou seja, meu pai devia ouvi-la muito.

Isto não garante sempre a felicidade, pois nem sempre gosto de não ter surpresas. Foi o caso de ontem. Quando começou o maravilhoso Brahms de ontem, eu pensei Ah, não, de novo? Toda esta lenga-lenga inicial tenta ir ao encontro do fato indiscutível de que eu e minha mulher amamos o compositor hamburguês e eu me sinto culpado por ter achado boring. Não pensem que não sei que é o Duplo é o estupendo e monumental último concerto composto por Brahms e também sua última composição para orquestra. Não pensem que acho feios ou desagradáveis seus três movimentos ou não reconheça a profunda originalidade das duas cadências iniciais que apresentam os temas a serem trabalhados no primeiro movimento. Não pensem que discordo da belíssima melodia do segundo movimento e do espírito cigano do Vivace. Só que eu não estava a fim daquilo ontem. E mais: não pensem que não aplaudi com entusiasmo o solista romeno Adrian Pinzaru (violino) e o francês Romain Garioud (violoncelo), que até jantaram em nossa casa após o concerto. E o fiz com sinceridade, mas, sei lá, às vezes a gente se perde em labirintos que nos fazem dar atenção residual àquilo que amamos, meu amor. Tão residual que acabei calculando o salário que tenho pagar dia 5 à empregada durante o concerto, mas, oh, por favor, esqueçam, esqueçam, sou um idiota.

Sabem, jamais faria cálculos durante o Hindemith que veio depois. A sinfonia Mathis der Maler (Mathias, o pintor) foi estreada em Berlim, sob a direção de Wilhelm Furtwängler. Ela é baseada na ópera de mesmo nome, que teve música e libreto de Hindemith. O primeiro movimento chama-se com merecimento Engelkonzert (Concerto de anjos). Trata-se do prelúdio ao primeiro ato da ópera que inicia de forma lenta e calma seguido do canto popular Es sungen drei Engel ein süsses Lied (Três anjos cantavam uma doce melodia) desenvolvido pelos trombones e retomado por todos os sopros e aqui vai um parêntese: como esteve bem o quarteto formado por Artur Elias, Javier Balbinder, Augusto Maurer e Adolfo Almeida Jr., além de todos os metais! Os caras deram um banho numa composição que exige muito dos sopros em temas contrapontísticos de feição neoclássica. Como hoje estou nostálgico, falando da infância, lembro como tínhamos medo dos sopros da Ospa anos atrás. Era uma gataria insuportável. Hoje, os caras tiram de letra. Bem, mas ainda no primeiro movimento, o segundo tema aparece com as cordas e é de caráter lírico, com duas melodias que se entrelaçam em fugato. Coisa linda. O segundo movimento, Grablegung (Descida ao túmulo) é um interlúdio do sétimo ato da ópera. É uma lamentação fúnebre na qual um oboé (o citado Javier) e depois uma flauta (Artur) descrevem sua infinita tristeza. É bonito, mas Hindemith nunca é triste de cortar os pulsos. O terceiro movimento Versuchung des heiligen Antonius (Tentação de Santo Antônio) vem de uma cena fantástica na qual Mathias se vê sob as feições de Santo Antônio atormentado pelos demônios. Um recitativo antecede a entrada furiosa do coro dos demônios em contraste assustador. Mas tudo termina bem num Alleluia.

A peça de abertura do concerto, Lume, de Gabriel Penido, revelou um compositor de talento, mas ao qual falta despregar-se da vanguarda europeia do século XX. É música de boa qualidade, colocada no terreno seguro das coisas aprovadas.

O ninja Nobuaki Nakata é um regente seguro e levou a orquestra com tranquilidade em três obras de qualidade e nada fáceis.

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Programa:
Gabriel Penido – Lume (estreia mundial)
Johannes Brahms – Concerto Duplo para violino e violoncelo
Paul Hindemith – Mathis der Maler

Regente: Nobuaki Nakata
Solistas: Adrian Pinzaru (violino) e Romain Garioud (violoncelo)

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