Neste post, lancei um desafio ao amigo e professor Francisco Marshall: o de analisar o significado do mural presente na sala do café da manhã do Itaimbé Palace Hotel. O resultado foi espantoso. Como disse a grande artista plástica Maria Tomaselli, “a análise foi um elixir de divertimento, raramente uma obra recebeu tão extensiva e explícita descrição e análise”. E completou zombeteiramente: “tô com inveja”. O detalhe é que o Marshall topou o desafio com o maior bom humor, respondendo muito rapidamente, ontem à noite, enquanto se recupera de uma pneumonia. Com vocês, Francisco Marshall: (ah, melhoras, meu amigo!)
Mais um ah: As fotos acompanham vagamente as partes que vão sendo analisadas.
Costumo dizer em minhas aulas de Iconografia e iconologia ou de História da arte que nos interessa a tartaruga em cima da árvore. Tartaruga não sobe em árvore, se está lá, é porque alguém a colocou intencionalmente. É a diferença entre interpretar Botticelli, Tarkovsky, Taviani, Van Damme, Stallone ou Bruce Willis, embora aquele Maverick vermelho possa ter imenso valor simbólico para algum marmanjo na plateia, sobretudo quando explode e este chora. De modo geral, a interpretação faz sentido conforme a intensidade e a qualidade de sua determinação autoral, e há casos em que a interpretação é ridícula exatamente por atribuir significados onde predomina o acaso. Nos painéis do Hotel Itaimbé, trata-se de arte kitsch, comum no interior do Brasil e do mundo, onde se fundem elementos ingênuos com referências da tradição, alguma narrativa e certas pretensões. São interpretáveis, mas temos que considerar alguma fragilidade no sistema, e dar descontos para eventuais inconsistências, ou, pior, para a simplicidade das conclusões.
Este painel tem sentido esquerda-direita e três momentos. Principia de um mundo noturno de silhuetas ferozes, alusivo à rusticidade guerreira dos ancestrais mithistóricos do gaúcho. Das lanças, destaca-se pelo brilho a parte que se assemelha a uma cruz, o que pode ter sido uma solução engenhosa para referir, de passagem, as missões jesuíticas e o papel da igreja na violência colonial. Lanceiros, cavalos, capas, cão: está claríssima a parte escura da obra.
Só faltou ao “fotógrafo” Milton Ribeiro registrar ou publicar a assinatura de quem cometeu a obra, assinada no canto superior esquerdo.
A parte central é precedida por aurora, junto à figueira. Diante da aurora, a primeira figura é uma jovem nua sobre uma bicicleta com a direção voltada no sentido final da obra. A bicicleta substitui os cavalos, e combina com a graça jovial buscada nesta composição, a qual pode evocar, em alguns espectadores, associações com as Graças (Charites) em geral e com as de Botticelli em particular, mas não vejo relações muito fortes, exceto as que se notam entre o fotógrafo e uma cálida figura tridimensional que ultrapassa minhas capacidades hermenêuticas. A ciclista branca de negras melenas é abraçada por moça ruiva, em um precioso nu frontal. Sempre que ocorre, este tipo de nu é sinal de liberdade e ousadia. As moças desta parte do painel, ninfas, têm cabelos esvoaçantes, que notam que o(a) autor(a) nada sabe de ventos, preferiu movimentos uniformes que acentuariam coreografia, todavia inexistente. A ruiva está com os dois pés no chão e os cabelos voam, tipo do detalhe que consagra a natureza kitsch de uma obra (desculpem, não é pernosticismo: kitsch é um dialeto bem conhecido). A terceira moça do grupo está em destaque, evolui no sentido final (telos) da obra, e conduz guirlanda floral, evocando um pouco (ok, conceda-se Botticelli, com ressalvas) o mundo da ninfa Flora, a Chloris que raptada por Zéfiro virou Flora, descrita no Fasto de 2 de maio de Ovídio (primavera). As primeiras flores são margaridas amarelas, depois, rosinhas de jardim, mas que importa? A parte enigmática está na figura feminina aérea, com os pés na área noturna e a cabeça, com cabelos curtos (?) próxima da face da terceira moça terrestre (ninfa?), como se a soprasse, mas não se nota vento. Ainda na parte aérea, há, após a ninfa floral e intermediando a terceira parte do painel, um putto com um balde do qual derrama-se (aparentemente) água. Não é Eros, pois este teria algum sinal, arco, flecha, carcás, labareda para cima, abelhas, algo assim, mas só tem este balde, que define um novo território, pois suas águas vertem como base da terceira cena. De um modo geral, o painel central permutou a violência histórica por certa graça e vitalidade, em grande contraste.
Quanto ao violinista, que aparece ao fundo, entre ninfa ruiva e flora loira, pode evocar a fantasia de Chagall (não creio, faltam mais elementos – e sobretudo talento – para se ver esta relação) ou o filme “Um violinista no telhado”, de 1971, cujo poster usava figura muito similar a esta. No caso, pode apontar um terminus post quem (datação mais antiga) para o painel, em 1971, e também uma interferência anedótica, uma concessão do(a) pintor(a) a alguém do entorno, comissionador, amante, amigo(a), mãe, ou o fascínio do(a) autor(a) com o filme, aliás muito bonito mesmo. Fora isto, parece ter como função, no movimento da obra, oferecer uma música mágica para a ninfa Flora que evolui.
A terceira parte reapresenta as “ninfas”. A ciclista, medianeira, está voltada para a cena central, desta feita sem bici, mas ainda nua e sentada; seus cabelos negros escorrem em simetria com as águas que jorram do balde acima. Parece banhar-se; é um nú um tanto mal desenhado… mas não destoa (!). Logo atrás dela, reverberando o contraste que a mesma figura enfrenta na cena anterior, um cão muito doméstico (e desagradável, estes malditos pequineses) tendo ao fundo silhueta de metrópole com arranha-céus; nisto se transformaram um bravo mastim campeiro e lanças heroicas. Notem que os topos dos arranha-céus têm cruzes, como as lanças.
Há frutas na parte superior do painel, uvas e folhas que começam a secar. As outras duas ninfas estão a seguir, alinhadas, seguindo uma escala decadente, e uma delas a loira, final, tem na mão direita uma maçã, símbolo cristão que aqui conota decadência. Elas se cobrem progressivamente, e são sucedidas, no plano visual, por uma figura masculina encapuzada com um manto, aparentemente verde, e traços fisionômicos que indicam um retrato, um homem jovem, de cabelos negros, bigode e cavanhaque. Aposto que é o artista. Ele tem atrás de si sinais outonais (folhas secas, tronco seco) e o retorno da noite. Esta parte a fotografia não cobriu suficientemente. Encerra-se aqui a descrição iconográfica com alguma análise formal.
Algumas conclusões:
1. O painel apresenta as estações como alegoria do ciclo do tempo, passando do inverno à primavera, verão e outono, e associadas ao desenvolvimento histórico, passando da guerra à paz, o florescimento, o acúmulo nas cidades e a decadência, na qual ainda cabe um olhar retrospectivo (do artista), místico.
2. Colocar muita roupa é sinal de decadência: de acordo.
3. Colocar qualquer roupa, ora.
4. O Milton me deve um Vinho. Note-se o V maiúsculo.
5. …feita a descrição iconográfica, fica mais fácil (se possível…) viajar, fiquem à vontade, eu cansei!
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