A Garota da Agulha, de Magnus von Horn

A Garota da Agulha, de Magnus von Horn

Acabamos de ver agora o hipnótico e expressionista “A Garota da Agulha”, filme do sueco Magnus von Horn que concorre com “Ainda estou aqui” como melhor filme estrangeiro.

Karoline é uma operária que luta para sobreviver em Copenhague após a Primeira Guerra Mundial. Quando se vê desempregada, abandonada e grávida, ela conhece a carismática Dagmar. O filme é em preto e branco e é ótimo, de bela fotografia e atuações. É tudo muito cinematográfico, mas acho que fica abaixo do brasileiro. Grande adversário.

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Gógol e Shostakovich

Gógol e Shostakovich

É incrível como a música de Shostakovich combina com Gógol. Shosta escreveu 3 óperas, duas baseadas em Gógol e uma em Leskóv, Lady Macbeth de Mzenski.

Em “O Nariz” os soldados de embebedam, tossem e ao fagote é dada a tarefa de peidar por eles. Ouvi hoje esta ópera e notei que os cantores fazem todo o tipo de sons estranhos, mas não arrotam. É complicado arrotar quando se quer. Se alguém me disser “Arrota aí, meu!” não vai sair nada.

Quando criança, eu sempre invejava os amigos que podiam soltar um arroto a qualquer momento. Nunca consegui. Para largar um, eu tinha que beber uma Coca-Cola e esperar que ele, o arroto, se decidisse. Só sim eu largava um bem sonoro.

Mas me perdi. O que queria dizer é que, assim como Shosta, muitos russos não colocam Dostô na frente de suas preferências. Às vezes nem o citam, preferindo Liêrmontov, Leskóv, Gontcharóv e outros. E Tchékhov, Tchékhov, Tchékhov. Aliás, por que não publicam logo “O Precipício”, de Gontcharóv?

A Elena diz que os escritores que têm o mais belo russo são Nabôkov — que ela lia em russo no hospital para se recuperar com algo realmente inteligente — e Tolstói. E que a maior obra de Pasternak são suas traduções de Shakespeare.

E chega porque hoje estou muito conversador.

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Sobre a hora de se aposentar

Os grandes virtuoses do piano vão tocando com cada vez maior mestria, mas também mais lentamente, a não ser que seu nome seja Martha Argerich, a que bebeu da poção mágica. Alguns passam do ponto: meu pianista preferido, Maurizio Pollini, passou e andou fazendo discretos fiascos, esquecendo músicas (tocava sempre de memória) e tal.

Daqui do Brasil, acompanhando gravações e vídeos, penso que o gênio que soube o momento de parar foi Alfred Brendel. Parou aos 77 e ainda hoje está vivo, aos 94, dando palestras e entrevistas mal-humoradas. Suas últimas gravações são primorosas. Isto é bem raro. Afinal, como alguns artistas de rock e seus agentes, os caras querem o “último dinheiro” e ficam rolando por aí.

Isso me lembra que meu psiquiatra — o qual tenho visto de dois em dois meses –, um dia me disse que quer ser avisado sobre quando deve parar. Deve estar lá pelos 70 e poucos. Eu não vou avisar ninguém.

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Vera, de José Falero

Vera, de José Falero

O Rio Grande do Sul não é Minas Gerais, mas costuma ter bons autores e, quando fui escolher os melhores livros que li em 2024, apareceram dois gaúchos no meu desequilibrado pódio de 4: Falero e Luiz Antônio de Assis Brasil, respectivamente com Vera e Leopold, além de Bela do Senhor, do francês Albert Cohen, e de Sátántangó, do húngaro László Krasznahorkai. O húngaro já foi comentado por mim, Assis Brasil também — ele escreveu uma indiscutível obra-prima — logo Bela do Senhor terá sua vez, mas agora é o momento de comentar Vera.

Falero tem quatro livros publicados e todos são diferentes e têm enormes qualidades. O homem não erra. É um escritor muito sofisticado e, apesar da camiseta do Grêmio que costuma usar, sabe o que faz. Difícil encontrar textos com tal oralidade e fluidez. Falero faz uma literatura onde deslizamos facilmente pelo texto, mesmo que este por vezes descreva fatos truculentos. E há sempre um perceptível substrato de fino humor. Vera é o primeiro de três volumes que examinam a masculinidade tóxica a partir do opressor. A Bamboletras teve ínfima participação, pois, quando Falero concebia aquilo que chamava de seu calhamaço, pediu-me uma boa referência de romance de fôlego e eu lhe dei o mais óbvio dos títulos, o do maior romance que conheço: Anna Kariênina. Dia desses, ele me escreveu no Facebook:

“Lembra quando fui comprar o Anna (Kariênina), porque queria mais referências de romance de fôlego? Pois é, a minha ideia era caminhar por aí: Vanderson, da infância à vida adulta. A ideia ainda é a mesma, mas decidimos separar a história em três volumes, em vez de publicar um livro gigante. Vera é o primeiro volume. O segundo sai ano que vem.”

Anna deve ter cumprido seu papel, porém, se eu soubesse, teria-lhe sugerido um romance de formação tipo Os Buddenbrook. Em Vera, Falero constrói lenta e calmamente seus personagens. Mas não com eles congelados, ao estilo Balzac. São mulheres que se ajudam como se vivessem num formigueiro que, mesmo constantemente ameaçado ou pisoteado, deve seguir em funcionamento, principalmente para que elas estejam prontas para trabalhar para quem tem grana. São capítulos curtos e matadores, colocando o foco aqui e ali. Uma das maiores qualidades de Vera é a colocação lado a lado de duas realidades, a da vila e a da cidade burguesa, muitas vezes em capítulos alternados. São contextos chocantemente diversos, o que explica certa (ou a total) incompreensão de lado a lado. O que os ensaios sociológicos dificilmente conseguem, parece ser obtido facilmente por Falero: ele toca a realidade.

A ação acontece na vila, dentro da grande família de Vera, e na cidade, no prédio onde Vera trabalha como doméstica. Se as diferenças de ambiente são grandes, os homens demonstram que o machismo tem várias faces — eles somem, desrespeitam, são sutis, assediam, batem e até pagam pelo silêncio. São como na vida real — figuras sensivelmente mais idiotas do que as mulheres, com destaque para a impagável cena onde o porteiro descobre um preservativo no lixo, escondido dentro de uma embalagem de biscoito. Ele conclui, evidentemente, que a mulher na qual estava de olho dava pra todo mundo.

Após a apresentação vem a parte mais acelerada do romance, onde as várias histórias convergem para algum desenlace. Há momentos muito bonitos: a ida de Davi ao circo, a falta de jeito de Aroldo para abordar Vera, a negação e certeza da mãe de Camila, a TV de Vanderson. E outros momentos lamentáveis em que a opressão, a loucura e o preconceito aparecem. A tentativa do patrão com Vera e o receio dele de ser denunciado — coisa que jamais pensamos que Vera iria fazer — são grandes momentos do livro. Se Falero diz que Vanderson é o personagem principal do livro, não vamos discutir, mas esta primeira parte é de Vera.

A oralidade e a verossimilhança de tudo é absoluta, ainda mais para quem mora em Porto Alegre. São personagens vívidos e próximos, com quem nos encontramos todo dia. Não adianta, Falero é um mestre. Nasceu assim. Sabe e obtém o que precisa para contar suas histórias, desta vez uma inteiramente diversa do que fizera anteriormente. Ele consegue ser delicado e forte, tudo no momento certo. O resultado é vigoroso e impactante. O problema é esperar o segundo volume.

 

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Atrás do balcão da Bamboletras (LX)

Um muito jovem casal visivelmente apaixonado entra na Livraria Bamboletras. Havia música ao vivo, com a Elena e o Alexandre Constantino tocando Sonatas de Bach para Violino e Teclado. Cheio de risinhos, o casal cuidava mais um do outro do que de livros, literatura ou música.

Ela tinha certa luz, ou seja, parecia inteligente. O garoto era só bonitinho, e passava a toda hora a mão no fugidio bigode, talvez de duro cultivo. Eu o aconselharia a tirar logo aquilo.

Depois, a menina foi se aproximando dos músicos, enquanto o guri vinha falar comigo. Ele perguntou por um livro muito ruim, daqueles que destroem a poesia da coisa. Pediu um mangá ruim. Fiquei triste.

Na saída, ela disse que nunca tinha ouvido aquele tipo de música ao vivo e que estava encantada.

.oOo.

Prognóstico do terapeuta de plantão da Bambo: não dura muito. É muita areia pro carrinho do menino. Nem com duas viagens. Ele e seu bigode ficarão magoadíssimos.

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A morte do Vassily

A morte do Vassily

O grande Vassily morreu hoje. Tinha 17 anos. Seu nome completo era Vassily Kandinsky, dado pela Elena por ser seu pintor bielorrusso preferido e por uma curiosa característica física. Ele era todo malhado, mas a ponta da cauda era inesperadamente branca. Um gato pintor.

Vassily veio ainda filhote para a Elena, lá em 2007. Eu cheguei em 2013. Éramos inimigos. Ou melhor, nos comportávamos como diplomatas de nações com uma zona em disputa: nossa amada. Ele tinha uma notável intuição para saber quando eu pretendia me aproximar da Elena e procurava chegar antes. Logo que iniciamos nossa vida a três, dei-lhe um grande susto. Foi sem intenção. Eu dormia, e quando abri os olhos, vi um tigre em cima de mim com o nariz a centímetros do meu. Não sei o que pensei. Dei um pulo de susto, mas o pulo que ele deu foi muito maior. Ele voou de cima de mim e passou uma semana dormindo na sala para se refazer daquele tremendo trauma. Eu, o problema.

Vassily foi a grande companhia da Elena. Foi o seu maior amigo no Brasil e ela está sofrendo. Estava sempre no seu colo ou pedindo coisas que obedeciam a um ritual — me dá mais ração (o pote cheio); liga a água da pia; quero colo; quero alga; não quero nada; hoje não tô bom, nem vem; quero carinho; agora vem me procurar, sua trouxa.

Eu sou um cachorreiro que nunca antes teve gatos e não entendia aquela escravidão a que minha mulher era submetida e que apenas aumentava. Um gato é um velho cheio de manias, primeiro isso, depois aquilo.

Minha relação com Vassily nunca melhorou, só piorou. Quando começaram seus problemas de saúde, era eu quem lhe dava remédios goela abaixo e, pior, dava-lhe soro. Ou seja, enfiava-lhe uma agulha nas costas, enquanto imobilizava-o por vários minutos. Desse jeito nunca pudemos nos entender. Eu chegava e ele saía, ou ia para perto da segurança da nossa mulher.

Vassily nunca precisou de tela. Ia pra praia e logo reconhecia onde podia ir. Nunca fugiu. Quando nos mudamos, logo entendeu a complexa geografia da nova casa. Frequentava o pátio de madrugada, saindo pelos mais variados caminhos, mas estava na cama sempre que um de nós estava acordado.

Mas ontem, mesmo combalido por um câncer, saiu pela janela da cozinha, se meteu pelo telhado e mergulhou na área de um apartamento desocupado. Ficou ao lado do tanque esperando a morte. Consegui a chave com a proprietária — que morava longe — entrei no apê, resgatei meu inimigo que tentava fugir novamente. Aquele capricho de ir embora — tão natural nos animais — não foi aceito por nós. E, sob protesto, desde que voltou permaneceu dentro de sua caixa de areia. Não saiu mais.

Fiz um buracão no pátio para enterrá-lo. Tô com as costas quebradas e muito triste. Já sinto a falta do meu inimigo. Nem vou falar da Elena.

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Atrás do balcão da Bamboletras (LVIX)

A cliente, uma querida, entra e diz:

— Quero um livro bem leve, daqueles onde eu possa entrar e ficar. Bem, é muito complicado, né? Se eu entrar e me interessar é porque certamente terá um gatilho. Então queria um livro de crônicas bem… — faz um gesto de leveza, como se fosse voar.

Dou algumas sugestões pensando naquela frase inteligente do gatilho e noto que ela leu quase tudo, inclusive as bigornas. Ela vê um da Martha Medeiros de relatos de viagem e diz:

— É disso que eu preciso.

E encomendou dois livros que, pelo menos um deles, não é nada tranquilo. Eu gosto dos clientes, sabem?

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Atrás do balcão da Bamboletras (LVIII)

Atrás do balcão da Bamboletras (LVIII)

Ontem, eu falava com uma cliente sobre ter “dedo podre”. Ela reclamava do dela, que seria infalível, só apontava porcaria. Sim, o balcão da Livraria Bamboletras é um divã gratuito. O problema é que o terapeuta sou eu.

Mas eu faço o maior esforço. A cliente estava no terceiro relacionamento e foram três “esplêndidos reveses”. Perguntei se ela realmente desejava um relacionamento estável. A resposta foi um sim bem afirmativo.

Então, fiz aquela cara de Freud e — pensando paralelamente que meu segundo casamento fora uma clara manifestação de dedo putrefato (evitei olhar minhas mãos) — disse que a Manuela D’Ávila namorara aquele Maroni, que o Woody Allen e a Mia Farrow apontaram um para o outro, etc.

Depois, resolvi tentar ser inteligente mas só pensava bobagem — que a coisa depende de como a gente se vê (lugar comum), que tudo dependia de um bom período prévio (afinal, ensaiar é bom!), que talvez seja hereditário (caímos na risada…), que é complicado não se deixar levar pelo tesão…

— Não! Um cara feio como o diabo. Nunca tive grande atração por ele.

Foi neste momento que concluí que o caso não era pra mim e desisti da minha carreira como psicólogo.

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