“Em cima de uns tijolos, havia um caldeirão com carne de porco cozinhando, que fumegava como fumega ao longe a casa paterna na aldeia, confundindo dentro de mim a fome e uma solidão sem igual”.
Isaac Bábel, no conto Meu Primeiro Ganso
Excelente livrinho lançado pela Cosac & Naify nos idos de 2003 e certamente apenas encontrável em sebos, como eu encontrei o meu.
Bábel viveu entre 1894 e 1941. Morreu vítima de grande violência física durante o stalinismo, que o prendera em 1939. Este livro mostra o enorme talento de um escritor que escrevia perigosamente, considerando a época. Mas vamos antes a uma curiosidade.
Minha mulher é linda e russa e culta. E de origem judaica. Ela me disse que a impressão que Bábel causa é irreproduzível em outra língua, pois seus personagens judeus falam um russo muito primitivo, às vezes errado, utilizado por eles na época. Há muitas frases com expressões invertidas, provavelmente trazidas do ídiche e, quando alguém começa a falar desse jeito, sabe-se que é um judeu. Até hoje, quando os judeus russos se auto-ironizam — prática mais do que comum –, o estereótipo cômico é o de fazer inversões, entonações e inserções indiscriminadas de “então”, “pois”, “daí”, etc. Além do mais, o povo da revolução não era lá muito alfabetizado e Bábel deliciava-se reproduzindo seus erros nos diálogos. Ou seja, nem os russos de Bábel falavam corretamente. Os judeus falavam, por exemplo: “O que você quer o quê?”. Elena diz que eles começavam com uma pergunta e a repetiam no final… Então, ela acha que traduzir Bábel… Bem, o português utilizado nesta tradução é sempre perfeito. Mas Maria é uma peça de teatro cheia de judeus…
Ela diz que só a revolução culturalizou todo mundo, unificando o russo e tornando este modo de falar algo típico do passado. Quando estava muito irritada, sua avó, professora de alemão, também falava como os personagens de Bábel.
Um amigo de minha mulher, Yakov Soloveichik, filólogo e poeta, deu uma bela contribuição:
Penso que existem vários aspectos.
1. Para os judeus, a língua russa era estrangeira. A língua nativa era o iídiche. Falando em russo, eles apenas colocavam palavras russas nas frases que costumavam usar. É claro que seu russo era errado. Então, um certo estilo foi desenvolvido.
2. Odessa é uma cidade portuária. Em cada porto havia um jargão – uma grande quantidade de palavras emprestadas de uma variedade de línguas dos marinheiros visitantes. Por sinal, no mar Mediterrâneo nos séculos 16-19, também houve um idioma falado apenas nos portos do Mediterrâneo – na Itália, Grécia, Israel, Espanha, Argélia, Marrocos, etc. Este idioma era uma língua franca que incluía elementos de todas as línguas mediterrâneas. As pessoas não eram muito alfabetizadas e, portanto, todas as palavras estrangeiras eram altamente distorcidas. Os portadores desta língua eram marinheiros e prostitutas portuárias, que vagavam de um porto para outro. A mesma coisa aconteceu em Odessa.
3. E o último – uma espécie de humor judaico, que está presente em todas as frases.
Das “Histórias de Odessa”:
Benya Creek conta a Froim Hrach:
– Froym, resolvi o seu problema.
– Como você decidiu, Benya?”
– Eu decidi que não era um problema.
E, bem, há duas vertentes de tradução. Uma que tenta a complicada tarefa de tentar reproduzir o original com seus erros e sonoridade em outra língua, e outra que apenas verte o conteúdo, opção tomada pelo tradutores deste livro.
Os contos deste volume são fruto da passagem de Bábel pelo Exército Vermelho, lutando ao lado de cossacos, contra os poloneses, entre 1920 e 1921. Já a peça Maria foca na miséria dos primeiros anos pós-revolucionários.
O belíssimo História do Meu Pombal versa sobre a vida de uma criança judia de Odessa, mostrando o anti-semitismo ucraniano. O menino não apenas precisa vencer o preconceito e a perseguição dos professores na escola — havia uma lei que ditava que, para cada 20 alunos matriculados na escola, apenas um podia ser judeu e isto gerava uma grande disputa no exame de admissão — mas ainda há os pogroms (pilhagens e assassinatos de judeus, realizados sob a aprovação das autoridades).
Em outra história, vemos a incapacidade do narrador de dar o tiro de misericórdia em um de seus colegas mortalmente ferido. Em outra, comprovamos como uma demonstração de violência dá autoridade a alguém. São contos excelentes.
A peça Maria — assim como o primeiro conto do livro Mamãe, Rimma e Alla — trata da decadência de uma família durante a Revolução. Os sobreviventes são obrigados a dispor de tudo o que tem, inclusive da filha. Filha de um general, Liudmila antes costumava frequentar a corte, mas agora tenta sobreviver seduzindo um judeu oportunista, três estropiados de guerra e um ex-príncipe que toca violino para trabalhadores. A outra filha, Maria, é a favorita do velho e encarna a salvação. Todos a esperam. Só que ela está ocupada, servindo ao Exército Vermelho. Os que ficaram apenas a esperam, sobrevivendo de migalhas.
Claro que, publicada em 1935, a peça nunca foi encenada. Quatro anos depois, Bábel perseguido pelo stalinismo. Preso em 1939, Bábel morreu dois anos depois. Durante uma transferência de presos, feita durante o inverno e a pé de uma cidade para outra, ele caiu de fraqueza. Foi deixado para morrer na estrada.
Livro comprado na Ladeira Livros.
Opa, Milton.
Eu estava há algum tempo querendo saber qual era a melhor tradução do Ulysses, e em muitos lugares, inclusive aqui, apontaram para a tradução do Galindo.
Comprei, comecei a ler essa semana, acompanhando as anotações da Bernardina e, vez por outra, a obra original.
E não pude deixar de observar que o Galindo simplesmente abdica de traduzir/mostrar algumas coisas. Ainda estou no começo do livro e, mesmo acompanhando muito pouco o original, já vi 3 ou 4 coisas que o Galindo, ao que me parece, não achou importante colocar lá.
Alguns exemplos:
No original:
“She understands all she wants to. Vindictive too. Cruel. Her nature. Curious mice never squeal. Seem to like it. Wonder what I look like to her. Height of a tower? No, she can jump me.”
Galindo:
“Ela entende tudo que quer. Vingativa também. Fico imaginando como é que ela me vê. Alto que nem uma torre? Não, ela consegue me pular,”
Ele simplesmente ignorou por completo o “Cruel. Her nature. Curious mice never squeal. Seem to like it”
Outro exemplo:
Wilde’s love that dare not speak its name. His arm: Cranly’s arm. He now will leave me. And the blame? As I am. As I am. All or not at all.
tradução: “O amor que não ousa dizer seu nome de Wilde. Ele agora vai me deixar. E a culpa? Como eu sou. Como eu sou. Tudo ou não de todo.”
Ele não traduz o “His arm: Cranly’s arm” que repete a uma mesma coisa já escrita na primeira parte do livro.
Teve mais e só estou no começo do livro, mas esses já bastam como exemplos.
É sacanagem quando o tradutor interfere na obra ao ponto de decidir o que é importante ser mostrado/traduzido ou não. Por que caralhos o Galindo opta por isso? O problema da Bernardina, pelo pouco que eu vi, é ter uma tradução mais conservadora – onde é pra escrever “trepar” mesmo, ela usa “copular” – mas é bem mais fiel que o dele. O do Galindo até aparenta ter atingido mais o “clima”, mas eu acho isso extremamente desonesto. Mesmo. Pé atrás agora com as traduções dele.
Perdão por fugir do tema do post. Mas esse é um dos poucos blogs literários que acompanho e achei que no post sobre o livro poderia passar batido.
Bom saber, Antonio. Tenho a tradução do Galindo na estante. Será que vamos acabar dando razão para a Tatiana Feltrin ( que é professora de inglês) e meio que contra tudo e contra todos – companhia das letras, inclusive – disse que a melhor tradução é a do Houaiss? Muito interessante teu comentário.
Pesquisando, há uma tradução do Jorge Vaz de Carvalho publicado em Portugal que é elogiadíssima. A melhor de todas, possivelmente.
Só tá elogiando a do Galindo quem já tinha lido e não se preocupou em acompanhá-lo com o original. Acharam mais fluidozinho e ixpertinhu, e saíram falando que é a melhor.
É a mais desonesta. Ele mudou coisas demais: inverteu algumas ordens de frases nos parágrafos (deixando mais confuso do que seria na ordem correta); abdicou de várias coisas, até frases inteiras (e algumas palavras que se repetem, ele só usa uma vez); várias frases óbvias que não tem o que inventar ele opta por traduções bastantes dúbias, dando outros sentidos (talvez pra ficar diferente das traduções anteriores); frases que terminam com interrogação, ele usa ponto final, etc. Enfim, só quero me focar nas inúmeras ausências e mudanças nas estruturas. Não sei o que leva um tradutor a se achar no direito de fazê-las.
O da Bernardina sofre um pouco porque algumas vezes ela não pega o espírito da coisa, mas ela respeitou a obra.
Desculpe, Milton, por fugir do tema. Antonio, nesse link http://relogiodagua.pt/produto/ulisses/ é possível ler as primeiras páginas. Se possível, aguardo suas impressões da tradução do Jorge Vaz de Carvalho, a julgar por essa pequena amostragem. Abs.
Parece boa, mas não dá pra saber muito. Fui me incomodar com a do Galindo mais pra frente. A pontuação dos diálogos é diferente da obra original (o da Bernardina também). Pode até ser besteira isso, mas eu prefiro que siga a estrutura original. E nisso o Galindo foi pela obra, pontuou igual.
Se manjar um pouco de inglês: http://www.planetpdf.com/planetpdf/pdfs/free_ebooks/Ulysses_NT.pdf