Feira do Livro sem praça: na pandemia, livreiros e editoras se preparam para edição online

Por Bruna Paulin e Gustavo Foster, no Noite dos Museus

Mais do que os grandes lançamentos do ano ou os atrativos descontos oferecidos, o grande barato da Feira do Livro de Porto Alegre é a aglomeração na Praça da Alfândega, coração da cidade. O passeio no entorno das bancas, os bate-papos sem pressa entre livreiros e visitantes, a vida que toma conta de um espaço muitas vezes pouco frequentado pela população no resto do ano.

A Feira do Livro, tão tradicional no calendário cultural gaúcho, é espaço de formação de público – e sem dúvida grande parte de seu sucesso vem das trocas presenciais. Em 2020, devido à pandemia, a principal feira literária do Estado não poderá ser realizada fisicamente – como tantas outras em cidades espalhadas pelo Brasil. Por conta da impossibilidade de ocorrer em seu formato tradicional, os organizadores levaram-na para o mundo virtual, onde pretendem emular tudo aquilo que a feira tem de melhor, além de servir de inspiração para outros eventos do tipo. Não somente seu produto final, o livro, estará à venda pelos sites dos associados, mas também toda a programação da Feira, incluindo a transmissão ao vivo das atividades oferecidas.

Sob o slogan “Janelas abertas para a Praça”, o evento terá sua programação, totalmente gratuita, veiculada pelo portal www.feiradolivro-poa.com.br entre os dias 30 de outubro e 15 de novembro. Em 29 de setembro, a Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL) divulgará os lançamentos, os autores participantes e o patrono desta edição, além de promover mais três eventos de aquecimento, nos dias 13, 20 e 27 de outubro. A escritora chileno-norte-americana Isabel Allende é a autora convidada e participará da abertura.

“Na nossa 66ª edição, estamos focando na qualidade dos eventos e no potencial que eles têm de debater, a partir do universo do livro, temas atuais relevantes. A programação geral terá quase 40 atividades, envolvendo cem convidados. Um universo que espelha também a nossa ideia de valorizar o que é diverso, de temas a perfis dos escritores”, explica Lu Thomé, uma das curadoras da feira.

“O ‘Janelas abertas para a Praça’ une estas duas coisas: a nossa comunicação atual por ‘janelas’ e telas de celulares, notebooks e computadores durante o período de isolamento social. Telas que, com a participação dos leitores na nossa programação, estarão voltadas para a Praça, que é o símbolo da Feira. A Praça estará na casa de todas as pessoas que desejarem. Nesse sentido, a programação precisa ser mais abrangente possível. Então, seguimos algumas linhas temáticas centrais: cultura (com valorização da cultura e liberdade de expressão), diversidade (com inclusão, feminismo, antirracismo e tolerância), ciência (pandemia, saúde) e sustentabilidade (relação com o mundo e o meio ambiente, economia verde)”, detalha Lu.

O momento atípico gerou inseguranças e apresenta desafios, mas a CRL garante que fez de tudo para preparar público e livreiros para as novidades.

“Em um evento tão tradicional como a Feira do Livro de Porto Alegre, é natural que exista alguma resistência à mudança por parte dos livreiros. Muitos deles participam há décadas da feira, que, diga-se, manteve um formato muito semelhante desde as primeiras edições. Ao mesmo tempo, percebo que há uma parcela cada vez maior de livreiros, distribuidores e editores em busca de informação sobre como vender pela internet”, avalia Tito Montenegro, editor da Arquipélago Editorial e diretor da CRL.

Livreiros receberam consultoria, sites novos e ajuda em transações para entrar no mundo novo

Para os associados que ainda não tinham comércio eletrônico, por exemplo, a entidade firmou parceria com uma empresa que desenvolve lojas virtuais, a GetCommerce, para que os expositores possam criar seus comércios eletrônicos em condições especiais. Firmou-se também um convênio com o Sebrae-RS, proporcionando uma consultoria para os livreiros qualificarem seus negócios para enfrentar os novos tempos, com ênfase na recuperação pós-pandemia e na crescente digitalização da divulgação e da venda de livros.

Para a tradicional livraria porto-alegrense Bamboletras, as inovações já começaram a surtir efeito. Se antes da pandemia o empreendimento se caracterizava como uma “livraria de balcão”, a quarentena forçou o proprietário Milton Ribeiro a criar um site da empresa. Se as vendas no início da pandemia caíram a 20%, Ribeiro espera que a feira ajude na retomada do crescimento, algo que já vem acontecendo nos últimos meses.

“A Feira do Livro vai ser uma continuidade dessa evolução. Nem tanto balcão, mais atendimento remoto. A Bamboletras se caracteriza por ter pessoas que conhecem livros e fazem uma curadoria. De certa forma, esse atendimento remoto vai continuar. A Câmara do Livro nos disponibilizou a possibilidade de ter um site – éramos tão de balcão que não tínhamos um. Teremos também a comunicação por redes sociais. Vai ser uma estreia, um mundo novo”, comemora o livreiro, antes de ponderar: – Minha perspectiva é otimista, porque vai ter muita divulgação, porém eu não sei muito bem qual vai ser a repercussão, porque é inédito.

Novos públicos e oportunidades infinitas

Se, por um lado, a impossibilidade de reunir pessoas é uma barreira, por outro, pode ser uma oportunidade para mudar. Gustavo Guertler, CEO da Editora Belas-Letras, conta que a empresa decidiu oficializar o home office, vai entregar a sala em que funciona sua sede em Caxias do Sul até dezembro e migrará o estoque para Osasco, em São Paulo. A partir dessa novidade, a editora pretende continuar inovando no ambiente digital – com a contribuição da Feira do Livro.

“Vamos tentar criar uma experiência mais próxima do que acontecia na feira física, no que se refere a curadoria e relacionamento com as pessoas, dentro do que é possível. Por outro lado, também tentamos criar ações que só o ambiente digital permite, então pensamos nisso como uma oportunidade. Há uma infinidade de ações que podemos fazer online, como garantir uma experiência da Feira para pessoas que não são da cidade”, acredita Guertler.

Lu Thomé concorda e vai além: para ela, as novidades devem se tornar padrão a partir de agora.

“Pela primeira vez, estaremos transmitindo para o Brasil e o mundo. É um ganho gigante. É provável que o formato online não seja mais abandonado, e as edições futuras passem a ser idealizadas num modelo híbrido de digital e presencial. Tudo ainda precisa ser confirmado e também precisaremos saber sobre os protocolos sanitários dos próximos anos. Todo o investimento e estrutura digital é um legado que fica para as próximas edições.”

Os hábitos de leitura também mudaram na pandemia?

Se tudo está mudando por conta da pandemia, as leituras de quem está em quarentena também ganharam outro perfil. Pelo menos é o que estimam Guertler e Ribeiro. O CEO da Belas-Letras diz que percebeu “uma pequena mudança nos títulos”:

“Por um lado, houve uma queda leve em títulos mais relacionados a negócios, empreendedorismo, mas houve também um aumento nas vendas de títulos que envolvem memória afetiva, entretenimento, autoconhecimento. As pessoas estão buscando olhar um pouco mais para dentro de si.”

Segundo ele, a editora teve crescimento de 16% nas vendas no primeiro semestre. Já Ribeiro afirma que “mudou muito a temática das vendas”:

“Em primeiro lugar, as pessoas começaram a atacar aqueles calhamaços, como Grande Sertão: Veredas, livros grandes de Tolstói, Dostoiévski, aqueles tijolos. Estão saindo todos. Nunca teve tanta procura. Leituras atrasadas, acho. Outra coisa, algo mais cômico, mas muita gente está procurando por gastronomia. Os livros da Rita Lobo, livros de receita, isso está saindo muito. As pessoas dizem ‘não aguento mais a comida da minha mãe, não aguento mais o que eu faço em casa’, e tentam mudar”, se diverte.

A Feira da gurizada para além de Porto Alegre

Nestes últimos 66 anos, é possível afirmar que grande parte da população infantojuvenil de Porto Alegre visitou pelo menos uma vez na vida a Praça da Alfândega com sua escola. O dedicado trabalho de formação de público desenvolvido pela organização da Feira tem como figura-chave Sônia Zanchetta, envolvida com a programação dos eventos infantis e juvenis desde 1998. Em 2020, os desafios deixam de ser os mesmos de 22 anos de experiência:

“É um desafio e tanto produzir as programações da Área Infantil e Juvenil em formato online. Mas estamos contentes porque, apesar de todas as dificuldades enfrentadas, a Feira do Livro está confirmada. Confiamos em que os professores, bibliotecários e outros mediadores da leitura que costumam nos visitar com alunos atuem com o mesmo entusiasmo de sempre, promovendo a leitura prévia de obras dos autores, para que os encontros digitais, que permitirão a interação entre o público e os convidados, sejam prazerosos e produtivos”, afirma Sônia.

As escolas e professores que estão conseguindo manter atividades com seus alunos já podem entrar em contato para saber mais detalhes sobre o funcionamento e as opções para direcionarem suas turmas em atividades online. Não é necessário agendamento prévio neste ano, pois não há limite físico para a participação simultânea de mais de uma turma. A equipe da programação infantil e juvenil e do ciclo A Hora do Educador atende pelo e-mail [email protected] e sugere as atividades para a participação dos estudantes, de acordo com a idade e o ano escolar.

Serão 20 autores que promoverão 20 encontros, além de 20 contações de histórias, realizadas por Bárbara Catarina e Carmen Lima. Sônia destaca que o formato digital da Feira possibilitará a interação de mais estudantes, muitos deles que não conseguiam participar presencialmente:

“Muitas crianças e jovens de municípios que não eram atendidos pelo transporte escolar do evento terão a oportunidade de fazer parte da Feira em 2020.”

A Feira virtual também auxiliou a trazer nomes que a curadoria desejava há alguns anos, como Kiusam de Oliveira Eliane Potiguara. Da literatura indígena, além de Potiguara, Yaguaré Yamã integra a lista de autores participantes. Para se ter uma ideia da amplitude desse universo de alunos, só no Rio Grande do Sul existem 90 escolas indígenas.

Entre os escritores de literatura infantil afro-brasileira, além de Kiusam de Oliveira, está Rogério Andrade Barbosa, provavelmente o autor com mais livros publicados na área. O evento também contará com Otávio Júnior, conhecido por abrir a primeira biblioteca nas favelas do Complexo do Alemão e no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro.

Para acompanhar as novidades e a programação completa da 66ª Feira do Livro, visite o site www.feiradolivro-poa.com.br.

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