Em Barcelona, Sokolov tornou o impossível realidade

Em Barcelona, Sokolov tornou o impossível realidade

Nem se falava em quarentena,
era o dia 18 de fevereiro de 2020,
em Barcelona, no belíssimo Palau de la Música Catalana.
Grigory Sokolov, piano.
Recital com obras de Mozart e Schumann (e mais 6 bis…).
Traduzido rapidamente daqui, com pequenas alterações
Autor: Rafael Ortega Basagoiti

O público, com razão, sempre espera viver uma nova experiência musical daqueles que coloca em uma altíssima categoria separada. Categoria em que o pianista de São Petersburgo está, sem dúvida, colocado há muito tempo. Ele está naquele lugar onde não há chance para confusão, acessório ou banalidade. Sokolov entra no palco hierático e imperturbável, reverencia um lado e outro do palco, senta e ataca a primeira peça, depois a outra, sem interrupção. No final, várias saídas e bises em meio a uma crescente apoteose. E os bises vem aos montes. Em Barcelona foram seis, nem mais, nem menos.

Nem uma salva de palmas, nem, provavelmente, um terremoto, conseguiria deter o russo naquela caminhada determinada e solene, na reverência mecânica e, após, naquela mutação de indivíduo imperturbável para o artista capaz de elaborar momentos de uma mágica que está ao alcance de muito poucos. Em 18 de fevereiro, Sokolov desenvolveu um programa com trabalhos relativamente pouco frequentes. A primeira parte foi dedicada a Mozart, mas, com a exceção da Sonata K 331 , que é frequente, duas outas belas páginas não especialmente viajadas foram incluídas no Salzburgo, os K. 394 e 511.

Quem assina isso não se lembra da última vez que ouviu o Prelúdio e Fuga K. 394 em um recital, O Prelúdio foi legendado pelos editores como “Fantasia” e não sem razão. Seu caráter é caráter muito livre, às vezes quase improvisado. Na “fantasia do prelúdio” Mozart deixa voar uma imaginação transbordante. Já a fuga, impecavelmente construída por Sokolov, é de uma gravidade bachiana que não associamos a Mozart. Aqui, Sokolov já usava aquele controle mágico da pulsação, aquela e beleza no som que a gente fica se perguntando como é possível.

O Rondó K 511, algo mais frequente em recitais do que o prelúdio comentado, não é das partituras de teclado mais talentosas do gênio de Salzburgo. Obra dos últimos anos da vida de Mozart (1787), que contém grandes doses de tristeza, a peça é salpicada de grande intensidade dramática e culmina com um final que apresenta uma escuridão ameaçadora. O canto requintado de Sokolov, o desenho rasgado daquele drama intermediário e o final misterioso e chocante emolduravam uma interpretação de grande emoção, não importando a tentativa criminosa do telefone celular que tocou na plateia visando o assassinato do Rondó.

No meio desses dois trabalhos, apareceu a peça mais conhecida que citamos anteriormente, a Sonata K. 331 . Era evidente desde o início que Sokolov mais uma vez favoreceu o canto elegante (início do primeiro movimento), o som requintado (variação V), as nuances cuidadosas, o legato extraordinário (variação III) e a articulação cristalina (mão esquerda do variação II) antes de qualquer tentativa de fazer as coisas diferentes. O movimento final teve um ritmo que genuinamente respondia à indicação allegretto. Mais uma vez admirável o controle impossível da pulsação por Sokolov, com um pedal justo que também lhe permite executar os arpejos “turcos” apenas com a redondeza e a rusticidade, mas sem cobrir ou embaçar o que está acima deles. Eu raramente ouvi aquelas passagens feitas de maneira mais requintada.

Novos elogios à escolha do Bunte Blätter de Schumann, uma coleção que quase nunca está agendada, embora Sviatoslav Richter um defensor da obra. Há tudo nessa série: fantasia, lirismo, poesia, vitalidade energética, melancolia, agitação tempestuosa, animação … Há até uma marcha — o trabalho mais extenso da série — , que poderia muito bem ser considerado uma marcha fúnebre. Todo esse caleidoscópio de atmosferas expressivas foi dissecado por Sokolov. Como não admirar a bela poesia do número inicial, a canção nostálgica do terceiro, a tristeza sombria da quarta, a vibrante e leve Novelette, a tremenda tempestade do Präludium ou a tristeza devastadora da marcha mencionada acima?

Ao final, o Palau de la Música Catalana veio abaixo sob aplausos e urros. E na “terceira parte”, no enorme bis, a magia foi expandida. Os dois Intermezzi Op. 118 ( n. 2 e 3 ) de Brahms dificilmente podem ser melhores. Íntimo, delicado, sussurrando o primeiro; retumbante e enérgico, mas sempre cantado com requinte, o segundo. Sensacional, refinado e elegante naquela ambiguidade que Chopin lidou tão bem, a Mazurca Op. 30 nº 2. Não faltaria a dose de Rameau e, embora eu não seja um defensor especial dessa música no piano moderno, se houver alguém na terra capaz de reproduzir com essa improvável leveza e clareza a chuva impossível de ornamentos do francês, é precisamente Sokolov, portanto, resta apenas permanecer sem palavras antes da realização espetacular de Le rappel des oiseaux. Novo salto para uma tradução elegante, refinada e poética do Rachmaninov Prelude Op. 32 No. 12, e majestosa conclusão com uma leitura severa e coletiva do coral de Bach Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ BWV 639 no arranjo de Busoni.

O público teria gostado mais, mas a iluminação completa deixou claro que essa “terceira parte” já havia sido concluída. Enquanto isso, continuaremos nos perguntando como é possível para esse homem obter aquele som, essa nuance, essa articulação, esse equilíbrio de vozes. E continuaremos olhando boquiabertos para suas demonstrações contínuas, embora hieráticas, de uma estatura artística tão grande e vigorosa.

[Foto: DG/Klaus Rudoph]

Richard Wagner e o Nazismo

Uma mente madura deve ser capaz de admitir a coexistência de dois fatos contraditórios: que Wagner foi um grande artista e, segundo, que Wagner foi um ser humano abominável.

Edward Said

Você talvez pense que, se a música é algo impalpável e transitório — se, como disse Busoni, “é apenas ar sonoro” –, não haveria grande espaço para a ideologia ou o nacionalismo nela. Mesmo no terreno da ópera, com a necessidade de se contar uma história, fazer “poesia”, ser teatro e música ao mesmo tempo, seria complicado estabelecer teses. Pois é, você só pensará assim se ignorar compositores como Shostakovich, que consegue comunicar “intenções” e protestos sem palavras. No caso de Wagner, há Wagner e Wagner, o autor e o homem. Inteligentemente, ele deixou quaisquer referências diretas aos judeus fora de sua música. Aliás, é um curioso mecanismo de ocultamento (ou culpa) este que faz alguns autores escreverem pequenos ensaios como Das Judentum in der Musik (O Judaísmo na Música, de 1850), mas deixarem sua obra maior livre destas delicadas referências seculares… Também Céline, Hamsun e Pound não entremearam sua obra com referências anti-semitas ou nazistas, deixando essas coisas para os panfletos e jornais. O fato é que Wagner foi trazido pelo próprio Hitler ao centro da discussão, tornando-o o maior dos anti-semitas, postura que está longe de ser um privilégio exclusivo. Em Das Judentum in der Musik ele vai longe e como! Primeiro, ataca a influência dos judeus na música e cultura alemãs, descreve os judeus como ex-canibais de fato e agora canibais das finanças. Logo após afirma que são de natureza muito pouco profunda, acusa-os de corruptores da língua alemã e ataca Meyerbeer e Mendelssohn, compositores judeus que considerava inimigos… Em uma carta para Lizst, Wagner confessa que “Sinto um ódio, por muito tempo reprimido, contra os judeus e esta luta é tão necessária à minha natureza como meu sangue… Quero que deixem de ser nossos amos. Afinal, não são nossos príncipes, mas nossos banqueiros e filisteus…”.

Embora não haja referências anti-semitas em suas óperas, é bastante claro o significado da existência de Beckmesser em Os Mestres Cantores de Nurenberg e de Mime no Anel. São associações muito claras e ao final ambos são derrotados. Uma mesma canção interpretada por Beckmesser nos Mestres Cantores causa riso e rejeição, enquanto que a interpretação de Stolzing dá vida à música… E o discurso de Hans Sachs ao final da mesma ópera traz uma apologia da santa arte alemã, alertando para os perigos que vêm de fora. Mime estranhamente se declara hipócrita, pois esconde “pensamentos íntimos”, mas o pior é a parentesco de sua conduta — Mime, seu nome, mímesis em grego, significa imitação) — com a descrição dos judeus em O Judaísmo na Música, acrescida pelo fato de Wagner obrigar o personagem a registros altíssimos e a cantar em intervalos semelhantes aos de um pássaro – um corvo, uma gralha –, reservando-lhe ao final uma morte brutal sob a espada de Siegfried.

Grande admirador de Wagner, Gustav Mahler escreveu:

No doubt with Mime, Wagner intended to ridicule the Jews with all their characteristic traits — petty intelligence and greed — the jargon is texually and musically so cleverly suggested; but for God’s sake it must not be exaggerated and overdone as Julius Spielmann does it… I know of only one Mime and that is myself… you wouldn’t believe what there is in that part, nor what I could make of it.

Ora, tais coisas, quando em contato com quem necessita de justificativas para seus ódios… só pode criar uma idolatria. Não por acaso, caíram na mão de um certo Adolf Hitler. Ele ia com freqüência assistir às óperas de Wagner e orgulhava-se de ter lido tudo o que dele havia. Era amigo dos netos do compositor — fez-se fotografar inúmeras vezes com eles — e visitava Bayreuth mesmo durante os anos de guerra. Em 1923, foi conhecer a viúva de Wagner, Cosima. Ou seja, fazia absoluta questão de ligar-se ao compositor. Claro que o nazismo não é uma conseqüência direta disto, mas é indiscutível que Wagner influenciou a sociedade alemã com suas sagas nórdicas — tão ao gosto do nazismo –, sua pompa e anti-semitismo. Imaginem que Hitler era tão influenciado que tornou-se vegetariano… por causa e tal como o compositor!

Agora, há grandes méritos em Wagner. Foi compositor, regente, libretista, ensaísta, político (principalmente no sentido de que era suscetível a alterar suas posições subitamente, era um casuísta), polemista, amigo e referência de toda a intelectualidade alemã da época, entendido em acústica, publicitário dos bons, e era quase tudo o que você imaginar. Sem dúvidas, era um gênio. Construiu em Bayreuth um teatro revolucionário que até hoje é o melhor para suas óperas serem apresentadas, devido ao grande palco e ao fato da posição da orquestra ficar sob o mesmo, no chamado Abismo Místico (mystischer Abgrund), o qual produz um som absolutamente espetacular, escondendo inteiramente a orquestra dos espectadores — pois Wagner queria atenção absoluta ao palco — e permitindo que a orquestra abuse dos fortíssimo porque, por misteriosa ciência acústica, a posição da orquestra garante que tudo será ouvido clara e perfeitamente pelos espectadores da ópera (os fortíssimos serão suportáveis e não irão impedir que se ouçam ao mesmo tempo os instrumentos capazes de menos decibéis), apesar dos músicos sofrerem com o calor do aposento. A acústica do teatro está mais para o milagre do que para qualquer outra coisa.

Sua imaginação melódica e suas texturas harmônicas são de um refinamento ao qual é impossível associar imagens como, por exemplo, as dos assassinatos em massa. Há um enorme descompasso quando Goebbels utiliza sua música na propaganda nazista. Na verdade, é uma música revolucionária destinada a entendidos. Mas Goebbels se interessa pelo autor de O Judaísmo na Música, a música de um nacionalista que odiava os judeus, porém apenas algumas aberturas e a tal Cavalgada das Valquírias serviam aos propósitos propagandistas do regime e não suas vastas e complexas óperas que, em seu contexto, fizeram a efetiva ligação entre a música dó século XIX e a moderna. Sua música sempre aparece descontextualizada sob o nazismo e eu imagino o que não sofriam os nazistas que faziam a peregrinação anual à Bayreuth para assistir por horas e horas óperas destinadas a uma elite intelectual… Só que eles tinham que gostar, não? Na opinião do chefe, era a expressão de uma superioridade.

Eu leio Céline — um dos maiores romancistas que conheço — e abomino seu lado B; também leio Pound e gosto de Dali, um admirador de Franco. Por que não ouviria Wagner? É ilógico, mas confesso que o evito. Sinto como se houvesse muito de demasiado na personalidade de Wagner e isto invade a esfera artística de tal modo que é dificílimo ouvi-lo (não há erro na expressão “muito de demasiado”). Ele queria tudo: a obra de arte total, a criação de uma nova música, o teatro ideal para ela, procurava a maior controvérsia, escrevia panfletos, fazia tudo para aparecer e era tudo para si. É demais para mim saber de tudo isso, mesmo não ignorando seus indiscutíveis e tão audíveis méritos. Para vocês terem uma idéia, a cena em estética nazista do filme Apocalipse Now – a dos helipcópteros bombardeando os surfistas tendo a Cavalgada como fundo – provoca-me náusea… E nem sou judeu! É irracional, mas é assim. Defendo-me com o auxílio de Thomas Mann que denunciou o substrato racista das obras de Wagner sob aquelas confusas sagas nórdicas, das quais também não gosto nem um pouco, mas sei que é isso é apenas colocar uma grife numa rejeição para a qual não encontro explicação. Por que posso preterir o grande Richard Wagner e não o não menos enorme Louis-Ferdinand Céline? Sei lá.

Então, meu caro Said, eu não devo ter uma mente madura.