Federico García Lorca: há 80 anos, uma morte por motivos obscuros

Federico García Lorca: há 80 anos, uma morte por motivos obscuros

Federico García LorcaPor Fernando Monteiro

Dentre as figuras exponenciais da cultura do século 20, nenhuma outra teve a sua vida ligada, tão tragicamente, a fatos extremos da polaridade política Direita x Esquerda quanto Federico García Lorca, o grande poeta espanhol assassinado no dia 19 de agosto de 1936, num recanto à margem da estrada Víznar-Alfaca, na sua província natal.

Lorca era andaluz, e foi fuzilado dois dias depois de ser preso por uma milícia fascista, na sua cidade, a Granada da Alhambra encarapitada nos morros que a cercam assim como, até hoje, a memória de Federico segue preenchendo a história granadina e contribuindo para fazer de Andaluzia um dos destinos turísticos mais carismáticos da Europa.

De certo modo, Granada se tornou duas legendas: Alhambra & Lorca – uma no seu esplendor arquitetônico e outro nos seus cantares “gitanos” e, por fim, no pranto de condenado à morte quase podendo ser ouvido pelos amigos e pela família detentora de boas propriedades de gente abastada, na cidade e no campo.

Quando alguém as visita, é possível deduzir, de imediato, que um fuzilamento assim, uma agressão fatal contra o membro mais destacado – intelectualmente – daquela linhagem andaluza, teve algo de “afoito” demais, de muito brutal e despropositado, por assim dizer, mesmo para o bando de fascistas aos quais tudo foi atribuído como intenção de prender, decisão de “julgar” (mais que sumariamente) e ordem, por fim, de executar sem mais delongas.

Quem foi o responsável? E por quê?

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Essa pergunta esteve posta desde que começou a circular largamente a notícia da morte do homem que, segundo relatos da época, chorou na madrugada, diante do inacreditável fato de que iriam realmente fuzilá-lo de face para aquela manhã clara da Andaluzia que ele, filho da região, havia cantado em versos imortais.

Haveria motivos para matar um poeta já muito conhecido, um jovem com um vasto círculo de amizades na Espanha e também no exterior? Sabemos que fascistas são temerários (a palavra é essa), mas sempre houve algo de estranho nesse crime, além de obscuridades diversas, telefonemas vários, discussões, ordens e contraordens… e até uma arma apontada para o subgovernador militar de Granada – por um fascista da Falange! – em defesa veemente do preso.

É preciso, na verdade, recontar um pouco dessa tragédia, desde antes da manhã fatídica e, para isso, devemos ver Federico, ainda em Madri, sendo desaconselhado no intuito de seguir “para casa”, justamente para fugir dos perigos políticos da capital, naquele primeiro ano da Guerra Civil. Os amigos tentaram fazê-lo desistir da viagem e permanecer entre eles. Alegavam que, na pequena Granada, ele estaria muito “mais exposto” do que na grande cidade, porém o poeta retrucou que lá, na sua Andaluzia, todos o conheciam e sabiam das suas origens etc. Ninguém conseguiu demovê-lo da ideia de proteção (ligada à família tradicional) e, assim, o poeta viajaria para Granada – e para a morte.

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GRANADA PRESTES A EXPLODIR

Os amigos de Lorca tinham razão. O poeta iria encontrar na Granada antigamente “mágica”, os eflúvios de ódios desatados à direita e à esquerda, no estreito ambiente limitado por muros seculares. Sim, ele era conhecido, para bem e para mal, como poeta e jovem boêmio de vida mais ou menos dissipada (e gostariam de dizer, claramente, a palavra derrisória para homossexuais: “maricóns”)…

A cidade estava inevitavelmente alterada por medos, rumores e rancores velhos de antes da guerra. Circulavam boatos em torno de prisões já decretadas, e o seu nome teria sido mencionado. Assim, de acordo com recomendações familiares, Federico se transferiu da sua casa para, algumas ruas depois, uma mansão de amigos dos Lorca-García: os Rosales igualmente bem relacionados, porém com integrantes da Falange ((a sinistra agremiação política identificada com o “nacionalismo” de Franco) dentro de casa, do mesmo modo como também um poeta ainda adolescente, Luis Rosales, mais tarde autor da obra-prima La Casa Encendida. Parecia seguro e conveniente para a proteção do rapaz das noitadas madrilenas.

Neste momento no qual acompanhamos FGL seguindo para abrigar-se no meio dos Rosales, é preciso notar uma primeira discrepância, talvez, com relação ao futuro matiz da lenda que, dias depois, começará a ser fixada pela última manhã do poeta máximo da moderna literatura espanhola (em termos de repercussão internacional). Nela, nessa aurora nascida para a morte – inesperada –, começaria a se compor o retrato sacrificial, isto é, a efígie coberta de sangue de uma vítima republicana a mais ilustre possível: o bardo dos “amores bruxos”, o cantor do romanceiro das estradas de saltimbancos, o vate andaluz, o “herói” em queda pelo lado esquerdo do peito varado pelas balas da Guarda Civil e outras hostes fascistas que levaram o ditador Franco a esmagar a Espanha por quatro décadas de autoritarismo, repressão violenta e controle absoluto de um povo tão difícil de domar quanto um miúra bravo nas “plazas” de areia e sangue.

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Sangue, sim, se derrama por toda a ardente península ibérica, mas, ali na Espanha, ele se concentra como coágulos nos Cristos deitados nas catedrais escuras, no espetáculo dos touros (e dos toureiros) e nos ferimentos graves de um conflito interno que, em agosto de 1936, iria envolver o gênio de Andaluzia até arrastá-lo para morrer como um animal de abate, naquele morticínio maldito para todos.

Esse “para todos” introduz a maior parte das dúvidas que vêm se alargando, há anos, sobre quem realmente matou Lorca, ou seja, sobre quais nomes e quais motivos se ocultaram, talvez, num assassinato que ganhou a aura, imediata, de barbaridade máxima nessa confusa quadra da história do pais de Cervantes. E, desde já, parece que temos de abandonar uma querida certeza acalentada por décadas: a do Lorca sacrificado em nome da ideologia – pois há que encarar a face, menos exposta, de um poeta lírico que não foi nenhum Quixote, não pretendia ser um paladino das esquerdas e, pelo contrário, estava em fuga das bandeiras e das fumaças da frente de combate. Federico era praticamente apolítico – segundo a unânime opinião dos que o conheceram – e até teria nutrido, num certo momento, uma velada simpatia por “governos fortes”, por autoridades que pudessem por “ordem” naquela casa, mais do que caótica, da Espanha da primeira metade do século passado.

Isso foi confirmado por Luis Rosales, a respeito de um artista no auge do sucesso, como poeta e dramaturgo, quando a guerra estalou, fraticida. Naquela altura, mais do que nunca um Lorca vivaz, um ser risonho e animado e tudo o mais, mantinha outros interesses muito para além da política que nenhum dos seus colegas da famosa “Residência dos Estudantes” e amigos das letras, do teatro e da boêmia de Madri enxergaram, jamais, no horizonte do rapaz bem nascido, bonito e dândi de todas as fotografias do mito que veio a se tornar Federico, o Assassinado.

Esse é o primeiro degrau que se tem que firmar, a fim de galgar os patamares mais obscuros da tragédia. Ela surpreende o povo de Granada, antes de mais ninguém, e a verdade – ou o que parece ser a “verdade-verdadeira”, tantos anos depois – vem se insinuando no território mais íntimo da família que possuía riquezas e membros ressentidos, parentes insultados e queixosos de negócios em sociedade com o pai de Lorca, o “patriarca” Federico García Rodrigues.

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QUEM MATOU FEDERICO GARCÍA LORCA?

Todos que leram a obra do irlandês Ian Gibson (que serviu mais ou menos de “cânone” para estabelecer a versão do assassinato eminentemente político) certamente lembram do nome do pai do poeta como apenas uma referência ao marido de Vicenta Lorca, no registro da filiação do poeta caído “sob os disparos pelas costas, feitos pelos fuzis do ódio fascista” etc.

Nada a contestar sobre a periculosidade dos “ódios fascistas” (é claro), porém as pesquisas mais fundas foram, recentemente, bem mais eficientes no levantar das discórdias e invejas no seio dos quatro ramos familiares, no caso de Lorca: os Roldán, os Benavides, os Alba e os Garcia da linhagem paterna do poeta assassinado.

Longe da idealidade firmada – com as melhores intenções – por Gibson, de imediato ouçamos o historiador andaluz Miguel Caballero, dentre outros que foram revolver os quintais domésticos, na retaguarda da morte: “Afirmar que mataram Lorca por ser homossexual e ‘vermelho’ é uma simplificação que já não se admite. As verdadeiras razões de seu assassinato devem ser buscadas na sua própria família”.

Outro pesquisador incansável, Manuel Ayllón, arquiteto e autor de “Granada, 1936 (Editorial Stella Maris), também é taxativo sobre isso: “Lorca não era um problema político, não ‘militava’ no sentido estrito, podia ser extravagante, incômodo e e afrontador nos seus hábitos joviais, mas nunca foi um perigo para absolutamente ninguém; politicamente, não era visado pelos fascistas, uma vez que era inofensivo. Na verdade, contra ele não houve sequer uma ordem de detenção assinada. Ele foi simplesmente levado da casa dos Rosales, que lutaram para libertá-lo no minuto seguinte e não descansaram nos dois dias subsequentes. O poeta Luis Rosales, irmão de dois falangistas, foi visitá-lo na prisão tão perto de Granada. Ninguém imaginava que ele corresse qualquer risco de vida, ali adentro. Seguiam tentando tirá-lo de lá, quando veio a incrível notícia da sua morte por um pelotão que incluía membros do quarteto de famílias proprietárias da Vega de Granada que, então, estava dando bons lucros a Federico García Rodrigues”…

Casa dos Rosales, em Granada, na qual Garcia Lorca foi preso pela milícia franquista (improvisada, sem ordem de detenção nem nada)
Casa dos Rosales, em Granada, na qual Garcia Lorca foi preso pela milícia franquista (improvisada, sem ordem de detenção nem nada)

Não é, de modo algum, uma “teoria conspiratória” surgida oitenta anos depois. Nem envolve somente as pesquisas de Caballero e Ayllón, mas começou a abalar mesmo as antigas certezas do Gibson, que está, no momento, empenhado em rever sua descrição de um crime de “natureza política”, desde o “sequestro” no dia 17 até a execução apenas dois dias depois, sem julgamento e causando até mesmo alguma desagradável surpresa nos círculos mais próximos do quartel-general de Francisco Franco. Claro: um fuzilamento tão brutal não seria, jamais, a melhor propaganda para os fascistas empenhados em tomar o poder na Espanha culta também. Aliás, consta que as primeiras notícias sobre a morte de Lorca foram veiculadas por eles, os nacionalistas pretendendo que o poeta houvesse sido vítima da “loucura republicana” (ironia das ironias) e, quando a Guarda Civil emergiu como a assassina de FGL, fez-se um silêncio sepulcral sobre o assunto, por parte dos amigos do futuro ditador.

“BERNADA ALBA” NA – SINISTRA – BERLINDA DE 1936

Miguel Caballero é quem traz uma surpreendente pista: “A chave para abrir o cofre de estranhezas em torno do fuzilamento sumário de Lorca esteve desde sempre ali, representada, escrita de punho e letra pelo poeta: trata-se de um presságio fatídico que, agora, oitenta anos depois do crime, assume outra dimensão. A Casa de Bernarda Alba foi uma vingança literária – enfatiza o historiador granadino. Ele vê a famosa peça – que correu o mundo – como um dos fios de meada da tragédia, os quais vêm sendo desenrolados por mais de uma dezena de pesquisadores que investigam a história da família desde meados do século 19. Naquela altura, a Vega de Granada estava em poder de uma aristocracia residente em Madri, e vai cair em ruína financeira no alvorecer do século seguinte. As terras foram, então, adquiridas por um grupo da burguesia ascendente em Andaluzia, no qual figuravam o pai de Lorca e seus parentes, os Roldán e os Alba.

Caballero descreve: “Eles vão comprando as terras de modo coletivo, através de sociedades. Estes campos adquirem muito valor para o plantio açucareiro, e Granada se converte numa das províncias mais ricas da Espanha, com 21 engenhos. O pai de Lorca participa como acionista de vários. E a disputa começa com a divisão dos lucros e mais uma tentativa de dividir as terras porque nem todos têm a mesma sombra nem a mesma água, sendo daí que procedem os primeiros desentendimentos entre os Roldán, os Lorca e os Alba. Uma mesma família, na verdade, porque eram endogâmicos: casavam-se entre si, a fim de manter as terras antes de mais nada”.

Ora, para a tragédia rural A Casa de Bernada ALBA, Federico Garcia Lorca foi se inspirar em personagens reais, entre as quais avulta Francisca Alba Sierra, uma mulher forte e que se comporta da forma tirânica mostrada nos palcos, para desagrado dos Alba de carne e osso, pouco afeitos às licenças poéticas. Para eles, a peça cheirava mal e tinha insinuações insultuosas.

A “HUERTA” ASSALTADA ANTES DO ATO FINAL

Antonio Benavides, um dos assassinos de García Lorca
Antonio Benavides, um dos assassinos de García Lorca

Os Lorca possuíam uma residência de verão granadina – a Huerta de San Vicente – que foi assaltada, em 9 de agosto de 1936, por alguns primos de Federico, do ramo dos Roldán, que eram conspiradores contra a República. Além dos Roldán, o historiador Miguel Caballero lembra que outros familiares estiveram implicados nos atos de detenção e execução de Lorca, nomeadamente Antonio Benavides, que era sobrinho-neto da primeira mulher do pai do poeta, e que será o homem acusado de disparar, pelas costas, contra a cabeça do artista voltado para a beleza das últimas árvores avistadas entre Alfacar e Víznar, na manhã desatada de ódios não só políticos de mistura com preconceitos etc.

Além desse pano de fundo (nada teatral), existiu ainda uma ameaça vinda diretamente da poesia de Federico Lorca para a sua vida prestes a findar no dia 19: consta que ele foi levado para a morte por um pelotão comandado pelo oficial da Guarda Civil (Nicolás Velasco Simarro) que havia se sentido pessoalmente ofendido pelos versos de Romance de la Guardia Civil española, em virtudes de referências à dura repressão da Guarda contra uma greve em Málaga. Mais: o ressentimento pessoal de Simarro também pode haver sido bem “reforçado” pelo fato de ter trabalhado para um Roldán (Alejandro Benavides) no caso de uma fuga de camponeses da Vega sempre objeto de disputas mesquinhas com o pai de Lorca…

Um rede de ódios e intrigas familiares começa a assumir a frente do assunto “morte do poeta”. Seu cadáver jaz em algum lugar da estrada, na vala comum na qual teria sido abandonado e encoberto de areia e pedras andaluzas? Talvez não. A própria família é, ainda hoje, totalmente contrária (?) às buscas. Isso é muito estranho. Todos os Lorcas velhos parecem saber que Federico não se encontra mais naquela vala comum há muito tempo, e que parece ter sido de imediato exumado (ainda naquele agosto aziago, há oitenta anos), porque não foi um crime propriamente político, não foi a execução de um “maricón rojo” – mas a perda de um ente querido, de um grande poeta e de um mito jogado entre porcos vorazes dignos do romance Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. Mais uma vez, a vida imita a arte, no caso.

Huerta de San Vicente -- casa de verão dos Lorca (atualmente, Casa-Museo)
Huerta de San Vicente — casa de verão dos Lorca (atualmente, Casa-Museo)

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Existe no Youtube uma coisa curiosa:

O poeta Luis Rosales — que visitou Federico na prisão durante os dias em que ele lá esteve — estava dando uma entrevista sobre o assunto “morte de Lorca”, filmada por Ian Gibson, e, num certo momento, ele pensou que a câmera estava desligada. Então, fala, em off, sobre Lorca lhe ter manifestado simpatias por um “governo forte” que pusesse ordem na Espanha caótica de então, e — mais incrível ainda — diz, em alto e bom som, que “TERIA SIDO MUITO FÁCIL SOLTAR, LIBERTAR LORCA, caso imaginassem — o pai, a mãe, os amigos — que ele corria qualquer perigo de vida” (SC)!

Rosales — o grande poeta Luis, mais tarde — era, vc sabe, o irmão mais novo dos dois falangistas bem situados na hierarquia fascista de Granada, que realmente lutaram (de fato) pela imediata libertação do poeta, um deles tendo chegado a apontar a arma para o governador militar franquista, “exigindo” que Lorca fosse solto.

Como curiosidade, aqui o vídeo:

Pablo Neruda, o homem que gostava de ser chamado de “poeta de utilidade pública”

O poeta Pablo Neruda (Parral, 12 de Julho de 1904 — Santiago, 23 de Setembro de 1973)

Publicado em 23 de setembro de 2012 no Sul21

Uma coincidência de datas leva o Sul21 a novamente deslocar seu foco para o Chile. Afinal, uma semana após o inequívoco assassinato de Víctor Jara, houve uma estranha morte: a do poeta, diplomata e comunista Pablo Neruda. A insistência de Manuel Araya, antigo motorista do escritor, em afirmar que o poeta foi assassinado por agentes do regime, levou a Suprema Corte chilena a investigar, ainda sem resultados, a morte do Prêmio Nobel de Literatura de 1971, também nos primeiros dias da ditadura de Pinochet. No livro Sombras sobre Isla Negra, la misteriosa muerte de Pablo Neruda (2012), o jornalista espanhol Mario Amorós dá um panorama bastante amplo sobre as dúvidas que cercam a morte do grande poeta.

Resumindo: a causa oficial da morte foi uma septicemia causada pelo câncer na próstata, ainda em estágio inicial, que o poeta contraíra. Porém a esposa de Neruda, Matilde Urrutia, garantiu que a causa de morte não foi o câncer. Ela afirmava que a causa mortis fora simplesmente uma parada cardíaca e jamais denunciou que seu marido tivesse sido assassinado. Enquanto isto, Araya, designado pelo Partido Comunista como assistente privado e motorista de Neruda, que tinha 20 anos em 1973, testemunhou à Justiça chilena ter visto um médico aplicando uma injeção venenosa em Neruda.

A nota da morte de Neruda no Jornal do Brasil. Clique para ampliar.

No inquérito aberto, consta a declaração do diplomata mexicano Gonzalo Martínez de que o escritor estava bem e fazia planos para o exílio um dia antes de morrer. “A dúvida é esta: se aplicaram dipirona (analgésico) para amenizar as dores, como afirmou o médico da clínica, ou se injetaram veneno, como testemunha o motorista”, escreveu Amorós.

O então embaixador mexicano no Chile confirmou a informação passada por Araya de que Neruda pretendia viajar ao México a fim de fazer oposição ao governo de seu país a partir do exterior. Ele confirmou também que o governo mexicano havia enviado um avião para buscar, no Chile, Neruda e outros futuros exilados. O problema é que a saída de Neruda não era consenso entre a junta militar desorganizada e assassina daqueles dias. Depois de Allende, o poeta era o cidadão chileno mais conhecido mundialmente e os militares tinham certeza de que ele causaria problemas ao regime no exterior. O juiz Mario Carroza, que preside o processo, concorda e considera plausível a hipótese de assassinato, já que Neruda no exílio representaria uma “situação difícil” para Pinochet.

Uma morte cada vez mais discutida

Como se não bastasse, o ex-presidente Eduardo Frei Montalva, um Democrata Cristão que governou o Chile por seis anos antes de Allende (1964-1970) (não confundir com seu filho Eduardo Frei Ruiz-Tagle, presidente do país entre 1994 e 2000), faleceu em 1982 na mesma clínica, a Santa María, quando liderava uma incipiente oposição ao regime. Sua morte ocorreu devido a complicações ocorridas em uma cirurgia simples. As complicações são as mesmas de Neruda, tudo acabou numa septicemia causada comprovadamente por envenenamento. Em 7 de dezembro de 2009, foram presas seis pessoas implicadas no homicídio de Frei. As perícias indicaram que sua morte foi provocada “pela introdução paulatina de substâncias tóxicas não convencionais e pela aplicação de um produto farmacológico não autorizado”. A intoxicação com as mesmas substâncias usadas na fabricação de gás-mostarda e de veneno de rato, causou o enfraquecimento do sistema imunológico de Eduardo Frei Montalva que facilitou o aparecimento de “bactérias oportunistas”, que “resultaram na causa final da sua morte”. Em outras palavras, uma septicemia como a de Neruda.

Neruda abriu mão de sua candidatura à presidência do Chile para apoiar Allende. Ambos faleceram naquele trágico setembro de 1973.

Seguindo em nossa história sem cronologia, talvez seja importante ressaltar que, durante a eleição presidencial do Chile, em 1969, Neruda, que era candidato a Presidente, abriu mão de sua candidatura em favor de Salvador Allende. Dois anos depois, em outubro de 1971 , quando Neruda recebeu o Nobel de Literatura, Allende convidou-o para uma leitura de alguns de seus poemas no Estadio Nacional de Chile. Público: 70 mil pessoas.

Aliás, em 1945, Pablo Neruda lera para 60 mil pessoas no Pacaembu, em 15 de julho de 1945, …

Quantas coisas quisera hoje dizer, brasileiros,
quantas histórias, lutas, desenganos, vitórias,
que levei anos e anos no coração para dizer-vos, pensamentos
e saudações. Saudações das neves andinas,
saudações do Oceano Pacífico, palavras que me disseram
ao passar os operários, os mineiros, os pedreiros, todos
os povoadores de minha pátria longínqua.
Que me disse a neve, a nuvem, a bandeira?
Que segredo me disse o marinheiro?
Que me disse a menina pequenina dando-me espigas?

Uma mensagem tinham. Era: Cumprimenta Prestes.
Procura-o, me diziam, na selva ou no rio.
Aparta suas prisões, procura sua cela, chama.
E se não te deixam falar-lhe, olha-o até cansar-te
e nos conta amanhã o que viste.

Hoje estou orgulhoso de vê-lo rodeado
por um mar de corações vitoriosos.
Vou dizer ao Chile: Eu o saudei na viração
das bandeiras livres de seu povo.

(…)

… em homenagem ao líder comunista Luís Carlos Prestes.

O jovem Neruda

Uma vida que mistura poesia e militância

Pablo Neruda é o pseudônimo de Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, nascido em Parral, no Chile, em 1904. Desde o primeiro poema, adotou Pablo Neruda, em homenagem ao poeta e contista checo Jan Neruda. Começou a escrever muito jovem e logo foi reconhecido como uma voz distinta. Alcançou reconhecimento no mundo de fala espanhola com Veinte poemas de amor y una canción desesperada (1924), obra que, junto com Tentativa del hombre infinito (1926) são seus principais livros da juventude. Na época, Neruda era um poeta entre o modernismo e a vanguarda. Mas era impossível viver apenas de poesia e eventuais colaborações em jornais e Neruda obteve ingresso na carreira consular, o que o levou a residir na Birmânia, Ceilão, Java, Singapura e, entre 1934 e 1938, na Espanha, onde conheceu García Lorca, Vicente Aleixandre, Gerardo Diego e outros componentes da Geração de 27, fundando a revista Caballo Verde para la Poesía. Desde o primeiro manifesto da revista, tomou partido de uma “poesia sem pureza”, próxima da realidade imediata, o que já indicava sua disposição futura.

Apoiou os republicanos durante a Guerra Civil Espanhola. Reflexo óbvio desta época é España en el corazón. Himno a las glorias del pueblo en la guerra 1936-1937. Pouco a pouco, seus poemas deixaram o hermetismo de sua produção quando jovem e passaram a temas seculares mais sombrios, que se referiam ao caos da realidade cotidiana, à passagem do tempo e à morte.

De volta ao Chile, Neruda ingressou em 1939 no Partido Comunista. Em 1945, foi eleito senador. Também foi o primeiro poeta a ser agraciado com o Prêmio Nacional de Literatura no Chile. Mas seus discursos no senado desagradavam de tal modo a direita chilena que Neruda passou a ser ameaçado fisicamente, o que o levou ao exílio, primeiramente na Argentina. A vida política de Neruda e sua literatura eram aspectos da mesma pessoa e aqueles foram os anos da poesia de inspiração social de Canto General (1950).

Neruda discursando na URSS

De lá, ele foi para o México, e mais tarde visitou a URSS, China e países do Leste Europeu. Após esta longa viagem, durante a qual Neruda escreveu poemas laudatórios e datados às grandes figuras de sua época, recebeu o Prêmio Lênin da Paz e retornou novamente ao Chile. Sua poesia passou a uma nova fase onde a simplicidade formal correspondeu a uma grande intensidade lírica, emoldurada por serenidade e humor.

Sua produção foi reconhecida internacionalmente em 1971, quando foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. No ano anterior, como dissemos, havia renunciado a candidatura presidencial em favor de Salvador Allende, que o nomeou embaixador em Paris logo depois. Dois anos mais tarde, já seriamente doente, ele retornou ao Chile. Sua autobiografia, Confieso que he vivido (1974), foi publicada postumamente.

O poeta

Neruda esteve sempre disponível a todas as influências possíveis. Sua ligação com o movimento surrealista e  vanguarda espanhola e americana são claras em seus trabalhos iniciais. Quem lê Residencia en la Tierra (1925-1931) percebe a quantidade de imagens que emergem do inconsciente. As transformações do poeta nunca ocorreram subitamente. Assim, Crepusculario (1923) é fortemente pelo modernismo, enquanto Residencia en la Tierra já é surrealista, com imagens de sonhos de aparente irracionalidade. Mais tarde, em Canto General (1950), ele evolui para uma poesia comprometida com a realidade política e social. De fase em fase, Neruda parece ir trocando lentamente as pedras do mosaico de seus temas, mas mantém o estilo inconfundível, compondo uma obra vasta, coerente e comprometida.

O poeta íntimo e de “utilidade pública”, como gostava de se autodefinir

“Minha poesia é meu íntimo, eu a concebo como emanada de mim. Como minhas lágrimas e meu pouco cabelo, ela me integra.” A originalidade da Neruda advém não apenas de seu estilo, mas da escolha de temas. Ele rejeitou os temas mais comuns: o pôr do sol, as estações, os namoros na varanda ou no jardim, etc. Seus assuntos são cidades modernas, os rostos de criaturas monstruosas, a vida cotidiana em seu grotesco de miséria e de marasmo. E a morte, sempre a morte — palpável, inanimada ou ainda em vida. Ela é sua maior obsessão e penetra em tudo, no amor, na ruína, na agonia e na corrupção.

Sua poesia política e combativa não deve ser confundida com palavras de ordem gritadas à multidão. São argumentações nas quais nunca estão ausentes a poesia e a beleza. Neruda foi um homem político de posições claras, mas isto é apenas uma faceta de um grande criador, de um homem que refletiu seu mundo de maneira incomum e abrangente, que foi sensual e trágico, confessional e hermético, simples e filosófico, errante e contemplativo, íntimo e de “utilidade pública”, como ele gostava de ver chamada sua obra.

Reza a lenda que Neruda finalizou Confiesso que he vivido (Confesso que vivi) exatamente no dia 11 de setembro, data do golpe militar e da morte de Allende. Suas casas, entre elas a lendária casa de Isla Negra, foram invadidas. Logo ele foi para a clínica de Santa María e a partir de então tudo são dúvidas, até sua morte em 23 de setembro.

Com informações do artigo Características de la poesía de Pablo Neruda, de Carmen Goimil Peluffo, além de vários livros de e sobre Neruda.

Após a Guerra Fria, George Orwell começa a ser reavaliado

Publicado originalmente em 25 de junho no Sul21

Há exatos 108 anos, nascia na cidade de Motihari, Bengala, região da Índia, o escritor e jornalista George Orwell (1903-1950), pseudônimo de Eric Arthur Blair. Seu pai era um funcionário da administração do império britânico. No anos seguinte, o menino Eric já estava vivendo na Inglaterra, onde estudou, apenas retornanado ao exterior em 1922, para assumir um posto na Polícia Imperial Indiana em Burma (ou Birmânia, atualmente chamada Myanmar). Em 1927, transferido para outra localidade de Burma, contraiu dengue e retornou à Inglaterra. Imitando seu ídolo Jack London, Blair começou a frequentar as favelas de Londres. Depois, segundo suas próprias palavras, passou a viver como um nativo de seu próprio país, isto é, tornou-se um mendigo.

A influência de Orwell na cultura ocidental popular e política é notável. Até hoje, quando o Brasil assiste a um programa chamado Big Brother, poucos dão-se conta de que estão citando implicitamente o onipresente Grande Irmão do romance 1984. Também o neologismo “orweliano” é utilizado em muitas línguas para significar algo contrário à liberdade. E, no Brasil, sua novela alegórica Animal`s Farm (A Revolução dos Bichos) serviu de base para Chico Buarque escrever sua “novela pecuária” Fazenda Modelo, de 1974. Sua popularidade é imensa, tanto que, somados, 1984 e A Revolução dos Bichos venderam mais cópias do que os dois livros mais vendidos de qualquer outro escritor do século XX.

A popularidade inglesa de Orwell começou antes da produção de suas obras mais conhecidas. Começou com o lançamento, em 1936, do romance Keep the aspidistra flying (no Brasil chamado incrivelmente de Mantenha o Sistema na primeira e melhor tradução e Moinhos de Vento na segunda). O livro conta a história de um grande personagem-símbolo, Gordon Comstock, um publicitário que abandona sua carreira para lutar contra o dinheiro. Na direção inversa do senso comum, Gordon procura viver a cada dia com menos dinheiro, chegando a evitar ganhá-lo. Só que ele logo conclui que o dinheiro participa de todos os aspectos e parece preencher todos os espaços da existência humana. Não adianta ser belo, inteligente, sensível ou artístico se não tiver dinheiro. O livro, escrito por um jovem e indignado Orwell, é visceral. Nenhuma surpresa para quem vivera como mendigo.

Em 1938, veio outro excelente livro, Homage to Catalonia (Lutando na Espanha no Brasil). Trata-se do relato de Orwell sobre sua participação numa milícia de tendência trotskista na Guerra Civil Espanhola, ao lado dos republicanos contra Francisco Franco e seus aliados Mussolini e Hitler. Acabou por levar um tiro no pescoço. Da forma mais improvável, uma bala atravessou o órgão, saindo por trás, danificando apenas cordas vocais. Desde aquele momento, sua voz ficou sensivelmente mais aguda.

Socialista mas desencantado com o stalinismo, dedicou seus últimos anos de vida a denunciá-lo. Publicado em 1945, com mesma impressionante repercussão que teria logo depois 1984, A Revolução dos Bichos serviu para acirrar o debate ideológico em torno do comunismo real. Com sua pequena novela alegórica, Orwell acabou por dividir o mundo intelectual. Como era típico da Guerra Fria, havia os que achavam que o autor estava traindo a esquerda, o socialismo e o comunismo e, do outro lado, os pró-EUA, que tratavam de divulgar o livro como grande obra. O intento de Orwell era o de atacar a política stalinista que, segundo sua ótica, teria traído os princípios da revolução russa de 1917. O uso da obra por pessoas, entidades e governos de direita sempre foi combatida pelo autor, sem sucesso. Nos anos 70, no Brasil, o livrinho era leitura obrigatória nas escolas brasileiras.

Quatro anos depois, Orwell lançou um segundo romance que também tinha como mote o stalinismo, só que agora levado ao paroxismo. Num futuro distante, 1984, o cidadão Winston Smith decide rebelar-se contra um regime que tudo domina. Todos são governados por alguém denominado Grande Irmão, o “Big Brother”. Preso e torturado com requinte de maldades — Winston tinha fobia de ratos e, na prisão era obrigado a compartilhar uma gaiola com eles — , ele cede e, em pouco tempo, é considerado apto dentro de um programa de recondicionamento mental. Em outras palavras, de uma lavagem cerebral. Desta forma, Winston torna-se um cidadão exemplar. Trata-se, em suma, de um romance de terror. Esta segunda agressão ao stalinismo foi o final de um longo drama moral e ideológico, marcando em definitivo seu rompimento com os comunistas.

Orwell morreu em Londres, de tuberculose, aos 46 anos de idade. Em seu túmulo, há um epitálio bem simples: “Aqui jaz Eric Arthur Blair, nascido em 25 de Junho de 1903, falecido em 21 de Janeiro de 1950”. Não há qualquer referência a seu célebre pseudônimo.

Agora, longe do clima dos anos 40 e 50, sua obra começa a ser reavaliada na Inglaterra. Diversas publicações debruçaram-se sobre seus livros recentemente. Sua obra-prima volta a ser Mantenha o Sistema. A Revolução dos Bichos torna-se uma brilhante alegoria contra qualquer tipo de ditadura e seus relatos sobre Myanmar — do livro Dias na Birmânia — e a Guerra Civil Espanhola voltam a ser modelos de bom jornalismo. Orwell ainda é famoso por 1984, mas isto mude logo.