Um Homem Fiel, de Louis Garrel

Um Homem Fiel, de Louis Garrel

“Estou grávida!”, diz Marianne (Laetitia Casta) ao namorado Abel (Louis Garrel), com quem vive. Ele sorri surpreso e ouve a mulher completar: “Mas o filho não é seu. É de Paul. Vamos nos casar. Seria bom se você pudesse tirar as coisas da casa até o fim do mês. Pode ser?”. Assim inicia Um Homem Fiel. Eles falam com calma, como se combinassem o que comprar no supermercado.  O tal Paul, o pai, é o melhor amigo de Abel.

Nove anos depois, já viúva, Marianne volta para Abel. Porém, o que parece um recomeço logo se mostra bem mais complicado. O filho de Marianne é algo sinistro, imaginativo e manipulador. E o que teria realmente acontecido com Paul? Como morreu? Haveria a participação de Marianne na morte?

Como diretor de cinema, Louis Garrel mostra que compartilha os mesmos interesses de seu pai, Philippe Garrel, mas lhes dá tratamento totalmente diferente. Um Homem Fiel é uma história de amor em que um jovem faz parte de um triângulo amoroso sobre o qual não nenhum controle. No entanto, o filme tem mais elegância do que angústia, é mais blasé do que sofrido. E mistura estilos.

(Este filme foi visto no Guion Cinemas — convenhamos, a TV ou o computador de casa só devem ser utilizados quando vemos um filme pela segunda vez, né?)

Tudo começa com um tiro em Paris no estilo de Beijos Roubados (1968), de Truffaut. Como na história de Antoine Doinel, o protagonista de O Homem Fiel também deve escolher entre uma mulher madura velha e uma jovem. A madura é a belíssima Marianne (Laetitia Casta, mulher de Garrel na vida real), amor autêntico de sua vida, que desde a primeira cena manda no relacionamento. Durante o filme, ouvimos três vozes narrativas diferentes, mudando de Abel para Marianne e desta para Eva (Lily-Rose Depp), uma amiga da família que era apaixonada por Abel desde a adolescência.

Quando ele retorna para Marianne, nove anos depois de ter sido abandonado por ela, Eva decide que é o momento certo para tentar algo com Abel. O resultado é uma dança em que Marianne e Eva jogam Abel de um lado para outro como se ele fosse um brinquedinho.

O famoso romancista e roteirista francês Jean-Claude Carrière (O Charme Discreto da Burguesia, Cyrano de Bergerac), divide o roteiro com Garrel em um filme de humor contido e de sagacidade. É a primeira obra de Carrière a usar narração em off.

A verdadeira estrela do filme é o jovem Joseph Engel, que interpreta o filho de Marianne. Suas declarações ambíguas e caráter extrovertido causam consternação e problemas a todos que o cercam, inclusive aos espectadores. Garrel faz um ótimo trabalho, misturando elementos de comédia, drama e thriller, mas o filme é um pouco plano, perdendo a oportunidade de explorar com mais profundidade o modo como as pessoas usam o amor como forma de controle.

Recomendo.

Inocência Roubada, de Andréa Bescond e Éric Métayer

Inocência Roubada, de Andréa Bescond e Éric Métayer

O filme chama-se Les Chatouilles (As Cócegas) no original. O título no Brasil? Inocência Roubada, claro.

Bem, mas passemos por cima disso.

Les Chatouilles (As Cócegas) foi escrito e dirigido por Andréa Bescond e Éric Métayer. Trata-se da adaptação para o cinema da peça de ambos The Chatouilles ou La Danse de la colère (As Cócegas ou A Dança do Ódio), vencedora de vários prêmios na França. A história é inspirada no drama da infância e da vida de Andréa Bescond — Odette, no filme –, vítima de violência sexual durante a infância. Na peça original, Bescond fazia todos os papéis. Aqui não, mas o filme guarda um pouco desta característica mantendo, por vezes, mais de uma Odette em cena.

Inocência Roubada está em cartaz no Guion Cinemas — convenhamos, a TV ou o computador de casa só devem ser utilizados quando vemos um filme pela segunda vez, né?

Foto: Divulgação

Claro que é uma história autobiográfica comovente, que nos deixa tensos e indignados. A característica do filme é bater sempre forte, é enérgico que trata a questão sem delicadeza. Mas isto não é uma crítica, pois reflete à perfeição a forma encontrada por Bescond para sobreviver — ficar permanentemente em estado raivoso. O filme mostra o começo de sua vida como dançarina com menos de dez anos de idade, alternado-se com os episódios de estupros de que ela foi vítima. O estuprador era o melhor amigo de seus pais. Um dia, já adulta, Odette cruza pela porta de uma psicóloga e inicia uma terapia para melhorar ou salvar sua vida.

A atuação de Odette/Andréa é agitada e boa, mas o destaque vai para o elenco de apoio. A ótima Karin Viard faz a mãe que não quer ver nada e que não acredita nos estupros. As cenas da mãe acusando a filha de divulgar publicamente fatos que perturbam seu cotidiano — ou seja, sendo extremamente prejudicial, incompreensiva e egoísta — são extremamente violentas e uma resposta dela, enigmática, provavelmente inventada, não tem nenhuma ressonância na história: “Você não sabe o que eu mesmo experimentei “, diz ela, às lágrimas. Viard é tão boa atriz que chega a ser tóxica em sua atuação cega à própria abjeção. Clovis Cornillac faz o pai e Pierre Deladonchamps, o estuprador pedófilo. Carole Franck faz uma terapeuta relutante que hesita em assumir um caso tão pesado.

Demora muito tempo para Odette revelar a seus pais o que aconteceu com ela. Enquanto seu pai mergulha numa penitência impossível, a mãe, como dissemos, rejeita os fatos, recusando-se ver sua filha como vítima, adotando o discurso que aquilo foi há muito tempo.

O assunto é da hora. Bescond e Métayer dão um bom empurrão para que as línguas se soltem ainda mais numa época onde parte das realidades da pedofilia aparecem em plena luz do dia. A pedofilia nos horroriza e requer retrospectiva e reflexão. Visualmente, somos movidos pela energia da dançarina em seu desejo de expulsar o passado. O filme, apesar de obviamente não mostrar nada explícito, criou-me desconforto.

A atriz principal e codiretora Andréa Bescond com Éric Métayer | Foto: Divulgação

O fio da história ziguezagueia entre a infância e a vida adulta, embarca em sonhos e fantasias com a clara intenção de aliviar o peso sobre o público. Mas, como na vida real, a memória e a dor das feridas recebidas recuperam o controle da história. Esta é a força de Inocência Roubada: mostrar a dor em torno da performance instintiva de Andréa Bescond.

O espectador às vezes tem a impressão de participar de um acerto de contas que não lhe diz respeito. Mas é um grito é um grito é um grito que deve ser ouvido.

Dor e Glória, de Pedro Almodóvar

Dor e Glória, de Pedro Almodóvar

Gostei muito de Dor e Glória, último filme de Pedro Almodóvar, que vi no Guion Cinemas — convenhamos, a TV ou o computador de casa só devem ser utilizados quando vemos um filme pela segunda vez, né? — e recomendo. Autobiográfico e com linda atuação de Antonio Banderas no papel do cineasta, é um filme delicado e convincente sobre a infância, a pobreza, a glória, o desejo e a relação com a mãe. Jamais pensei que Banderas fosse tão bom ator. Ah, a influência dos diretores…

Dor e Glória coloca Pedro Almodóvar no divã para contar partes da vida de um melancólico diretor de cinema em razão das dores do envelhecimento que o impedem de poder trabalhar. Então, com dificuldades de vislumbrar o futuro, o cineasta revisita seu passado, literalmente e em imaginação, buscando algo que o motive.

Desta forma, é um filme de reencontros para o alter ego de Almodóvar, Salvador Mallo.  Vemos sua infância nos anos 60, vemos quando ele emigra com os pais para Paterna, o primeiro desejo, o primeiro amor adulto e a dor do fim desse amor.

Foto: Divulgação

Menos colorido e engraçado que outros filmes do diretor, Dor e Glória mostra uma pessoa na encruzilhada da aniquilação ou do retorno. É um trabalho bonito. Há  desejo, angústia, perdão, a iminência da morte e a falta de preparo diante dela. Obra low profile, que comove sem subir o tom, Dor e Glória é fala da impermanência e da inconstância, das sempre fugidias relações afetivas. E do que delas segue conosco.

O filme tem uma das mais belas representações da homossexualidade que vi até hoje. A atração do protagonista por homens é mostrada como sua própria identidade. Há os amores adultos, mostrados com clareza, e as sugestões do desejo do garoto pelo pintor adulto. Ah, a belíssima cena da febre, uma preciosidade!

O filme é contido, autoral e de diminuta trama romanesca, contrariamente ao habitual do cineasta.

Banderas, Cruz e Almodóvar este anos, em Cannes | Foto: Divulgação

Alguns reclamaram que este seria um Almodóvar acadêmico e acomodado. Jamais. Dor e Glória é uma obra ousada que, sem vaidades, celebra o passado e mostra a resistência da idade madura, ainda produzindo arte.

Almodóvar diz que nunca se drogou como Mallo. OK. E reclama que as partes fictícias ficaram mais fortes e verdadeiras do que as biográficas. Mas Dor e Glória é autoficção, claro. Ou seja, o cineasta é autor e personagem. O resultado poderia ser uma revisão dos dias de glória, como sugere o título, porém o roteiro concentra-se quase que exclusivamente no que vem após o sucesso: depois de ter filmado seus bem-sucedidos projetos, o que resta a um diretor que sente dores nas costas?

Destaque absoluto para a maravilhosa cena inicial, para a da febre e para a notável atuação de Antonio Banderas — jamais imaginaria que ele seria tão bom ator, um Almodóvar perfeito — e para a luminosíssima Penélope Cruz.

Recomendo muito.