Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles, ou Como tornar Saramago cinema?

Uma das coisas que mais me irrita é este lugar comum de dizer que “o livro é sempre melhor que o filme”. Dã. É uma burrice completa. Se quem diz isso ao menos soubesse que quase todos os Hitchcocks vieram de romances de segunda linha…

Há histórias filmáveis e outras não. Há livros que são quase roteiros, outros não. Apesar da vasta intersecção, há cordas que podem apenas ser tocadas pelo cinema e outras apenas pelos livros. Há especificidades.

Vou começar pelo livro. Saramago escreve, em média, um bom livro a cada década. Hoje, principalmente no Brasil, estabeleceu-se a regra de falar mal dos livros do único Prêmio Nobel de língua portuguesa. Trata-se do conhecido Complexo de Vira-Latas que acomete Brasil e Portugal — desde sempre para o primeiro e desde que o segundo deixou de ser um grande império colonial… Ganha-se algum destaque e este é sempre falso. Preconceito puro. Saramago não mudou. Segue publicando bastante — não o critico por este motivo — e acerta uma vez a cada dez anos. Sem problemas. É uma média altíssima. Nos últimos dezoito anos, melhorou sua média ao produzir três grandes livros: O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a cegueira (1995) e As intermitências da morte (2005). O resto que fez neste período parecem ensaios para os acertos. Nada de anormal nisso.

Surpreendentemente, pego-me pensando em outro fato: a separação dos Beatles. Este foi um acontecimento mundial. Em 1970, estavam juntos e eram brilhantes. Em 1971, eram todos famosíssimos e médios… Rafael Galvão, num post antológico que não consegui localizar (upgrade: que o Rafael acaba de me passar), comprovou que nada mudara. Em todo disco do grupo havia 5 boas canções de McCartney, 5 de Lennon e 2 de Harrison. Com esta informação, o Rafa montou o disco de 1971, o de 72, 73, etc., com músicas pinçadas no trabalho individual de cada um. O resultado foram trabalhos portentosos… Mas algumas amam a decadência de tal forma que procuram-na em todo lugar.

Ensaio sobre a cegueira é um livro de alta intensidade e criatividade. Sua leitura não é nada enfadonha e a força da parábola de Saramago atinge-nos em cheio. Esta é reforçada pelo fato de que os personagens não possuem nome: são “a mulher do médico”, “o médico”, “a rapariga de óculos escuros”, etc. No filme, tal impessoalidade se perde. Vemos, é claro, os rostos de Julianne Moore, de Mark Ruffalo, de Alice Braga e de Danny Glover, isto já basta para individualizar personagens que funcionavam como símbolos ou funções no original. OK, Literatura 1 x 0 Cinema. Neste 1 x 0, quem danou-se foi a profunda e geral desesperança de Saramago. Porém, “a responsabilidade de ter olhos quando todos os outros os perderam”, frase repetida à exaustão no livro de Saramago, está preservada no filme. Julianne Moore faz uma atuação maravilhosa e demonstra claramente que, apesar de sua vontade — de indiscutível feminilidade — de tudo resolver pelo melhor, a tarefa é inviável.

Um ponto fraco do filme é que a chegada dos doentes ao hospital-manicômio não nos dá a mesma idéia do livro: a de que aquilo está em todos os lugares. O ponto forte são as imagens do caos absoluto no momento que “a mulher do médico” leva-os para a rua. Talvez Meirelles tenha procurado justamente explorar o contraste entre uma situação que parecia inicialmente pontual e que se torna paulatinamente geral para o espectador. Mas não sei, algo não deu certo nesta transferência do particular para o geral. Outro ponto forte foi a fotografia esbranquiçada — a cegueira branca — e a música: no ponto certo de irritar, mas não demais.

Se não possui a grandiosidade do livro, é um bom filme; se não incomoda como o livro, atrapalha o suficiente; se parte da parábola perdeu-se, Meirelles não a deturpou — o que seria pecado mortal. Escapou de Meirelles o profundo e justificado pessimismo de Saramago. Seu filme não possui este tom e, com isso, perde impacto, ganhando certa gratuidade para os espectadores mais superficiais. Mas é um bom filme, sem dúvida.

Fico feliz que Ensaio sobre a cegueira (“Blindness”) tenha levado 118.145 espectadores aos cinemas em apenas três dias. Fui um deles, pois vi o filme logo no primeiro dia. Tal fato o torna a segunda melhor bilheteria nacional de estréia de 2008. Um fenômeno. Fico feliz com isso, repito; afinal, Meirelles merece mais filmes.

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  1. Milton, os dois e-mails seus que tenho não estão funcionando. Então a resposta vai por aqui mesmo:

    O post a que você se refere é esse aqui:

    http://www.rafael.galvao.org/2005/06/um-novo-original-de-lennon-mccartney/

    A propósito, eu dei uma olhada nos comentários e, vendo o seu, lembrei que deveria ter feito um comentário na época e não fiz.

    A ida de Instant Karma para um compacto não é exatamente um demérito, até porque os Beatles vêm de uma época em que singles eram mais importantes que LPs. É por isso que Another Day, de Macca, foi também para o compacto de 71 — é uma música de maior força comercial, aparentemente.

    Mas tem mais. Pela própria idéia de Lennon ao compor, gravar e lançar Instant Karma em menos de uma semana, ela precisaria forçosamente ser um compacto, pra preservar a idéia de algo instantâneo, e o seu frescor.

    E mudando mais uma vez de assunto: eu encerraria a carreira dos Beatles em 1977. 😉

  2. “Ensaio sobre a lucidez” tambem é um livro muito bom.
    Sobre a música, discordo. Acho que um dos fatores que destruíram esse lance do geral e do particular que tu fala foi justamente a trilha porca que ele escolheu. Aqueles barulhinhos deram um tom um pouco cômico a um filme que deveria ter mantido o tom do Saramago, de pessimismo total. A base desse filme me pareceu ser justamente a violência da cena das mulheres, e aí o filme todo se enfraquece, e nem vale a pena ir por aí, porque de fato o filme é bom e deve ser recomendado.
    Outro ponto é que no livro ficamos com raiva do médico, que é um baita bundão. E ter o “rei”, com cara e tudo, me pareceu que a raiva recai sobre ele, o Bernal, o que no livo não acontece.
    Tambem achei que as escolhas do Meirelles tiraram toda a questão política que perpassa o livro.
    Abs.

    jonny

  3. Rafael, obrigado.

    O mesmo para o Tiago.

    Jonny, concordo contigo sobre o médico bundão e o Bernal. Discordo sobre a música. Não achei que a música tenha dado ao filme um “tom um pouco cômico”. Também fecho contigo sobre o fato de que as questões políticas foram abrandadas.

    Gugala. Pois é. Eu acho que tinha tudo para dar mais errado! O filme é bom e talvez eu tenha sido mais indulgente do que o Jonny porque esperava pouco.

    Abraços a todos.

  4. Dizem que o pior cego é o que não quer ver (nunca entendi por que esse “pior”!) . Pois “pior” que o Cláudio sou eu, que li o livro e não lembro de absolutamente nada e também não vi o filme ainda!
    Ia perguntar pra ti , Milton se vistes o video da reaçao do Saramago quando viu o filme. Tocante, de arrepiar. E ele termina dizendo que estava tão feliz ao ver o filme quanto ao termina de escrever o livro!
    bjs, f

  5. Li o texto do Rafael. Não conhecia. É brilhante! Concordo com cada palavra. Escuto Beatles, praticamente, todos os dias. Às vezes, escuto durante horas uma determinada música. É impressionante. É parte da minha alma. Já aconteceu centenas, milhares de vezes: estou diante dum poema que não tá legal, não sei por que…, mas não tá legal. Abro a pasta dos Beatles do meu computador e deixo rolar… A música pode não ter nada com o tema, mas, de repente, pinta a solução. Não é efetivamente o que estava ouvindo, mas um estado de espírito gerado… É inexplicável.

  6. Ramiro:
    é que música libera endorfina
    (se o Cláudio me permite)
    e com ela se ativa a usina
    onde se cria e sente a poesia
    (se o poeta me permite!)

  7. Concordo plenamente contigo Milton “a chegada dos doentes ao hospital-manicômio não nos dá a mesma idéia do livro” e gostaria que o Meirelles tivesse explorado mais a relação da mulher do médico com o cachorro que no livro é tão simbólica. Achei o filme bem feito, sinestésico, a música caiu como uma luva e a fotografia está linda! É maravilhoso ver o grande público indo aos cinemas, quem nunca tocaria num livro de Saramago.

  8. É, Ramiro, nunca é tão simples…
    Como diz a música, mistérios sempre há de pintar por aí!
    “amada”? Uau fiquei de pernas bambas agora…
    Hehe, virou sala de bate papo, hein, Milton?
    Café?
    bj, f

  9. Sem problemas, Flávia. O que vocês não viram é que eu publiquei a imagem no YouTube há umas três semanas.

    O filme é bom, Flávia. Pegue o cavalheiro e vá!

  10. MILTON, como te disse, estava na mesma sessão que tu. Pelo jeito, tu gostaste mais. Talvez porque esperavas menos (eu certamente esperava mais do Meirelles, gostei muito dos anteriores). Não sabia descrever minha inconformidade com a trilha sonora, mas o jonny me ajudou um pouco. “Não deu liga”, algo assim. Tem algo descolado aí. Não achei ruim o filme, não, longe disso. E sou daqueles que crêem que um filme pode sim ser melhor que o livro, mas, principalmente, pode não permitir que seja incluído na mesma escala de qualificação.
    Essa identificação vaga de “a mulher do médico”, etc, não a vemos no mesmo tom no filme, não sei que arma poderia ter usado o diretor. Há gente que achou muita violência gratuita, houve quem até deixasse a sala de cinema. Não é o meu caso, não achei nada gratuito. Mas definitivamente o livro não abre espaço pra que pensemos em gratuidade. A música do livro, com todo aquele desconforto, nos envolve MUITO mais.
    não achou?

  11. É estranho, Rômulo.

    Quando saí do cinema com minha mulher e uma amiga, conversamos muito sobre o filme e lamentamos que a parábola política não tenha sido passada inteira para o filme. Depois, acabamos por perdoar o Meirelles porque seria complicado passar TODO O LIVRO — que é longo e cheio de comentários laterais — para o cinema.

    O que vocês colocam é algo novo e importante: uma trilha sonora desligada do filme. Não é pouca coisa. É muito! Se a música discorda da imagem — coisa que eu não afirmei mas que passo admitir como possível –, aí está um ralo pelo qual o significado do filme pode ter se esvaído.

    Eu tenho muita curiosidade pela opinião da Lia, uma amiga minha que sempre vem com observações muito originais sobre os filmes, só que ela não foi ver ainda. Ô Lia!

    Se ela ler estes comentários, talvez possa conferir esta questão da trilha cômica, chata, diversionista, feia, desagradável ou banal.

    E, sim, Rômulo, o livro é muito mais envolvente. Cheguei a sentir o mau cheiro durante a leitura….

    Abraço.

  12. taí, me fez pensar uma coisa. O som deveria ter sido O RECURSO do diretor para dar a atmosfera que o filme precisava, no entanto, me parece que foi pouco pensado. qdo estamos de olhos fechados, passamos a ouvir melhor. pra mim ficou tudo muito seco, excessivamente seco, a trilha sonora é q talvez devesse dar alguma umidade, e – caminhando sobre as palavras – unidade tbm.
    Eu fico pensando na pessoa q não leu o livro. Quem leu, parte de alguma coisa, tem o esboço da coisa na cabeça, e provavelmente guarda ainda um pouco daquela atmosfera q guardava o livro. Acredito que nós, que lemos, como que vamos respirando no filme o ar que guardamos do livro, e chegamos ao fim da sessão com pouco fôlego. E digo pela qualidade do filme, não por seu propósito. Isso ocorreu comigo.

  13. já que virou bate papo mesmo…
    Vou sim, Milton, mas sem o “cavalheiro”! Tu não eras “o cara” da memória? Não lembras que até conselhos destes? hahahah
    Pois é, dançou…
    Desculpa não ter visto a imagem! Que tipo de leitora ideal é essa?! Devo ter visto, mas ainda não fazia sentido… É que tu estás anos luz à nossa frente! (melhorou assim?)
    Olha, fotografamos a macacada, passa “lá” e vais ver que não alucinei. Hoje tinha um dentro da minha sala! bj, Flávia

  14. 1. Só quero esclarecer que sempre falei mal de Saramago, mesmo antes do Nobel. E sempre defendi Fernando Meirelles, mesmo antes das indicações ao Oscar.

    2. “Soy Cuba”, na verdade, é bastante popular entre estudantes e estudiosos de cinema. Aliás, “bastante popular” é pouco… em babação de ovo, Kalatozov só recebe quinhão menor que o do Eisenstein. Empata com Welles. Em breve vou dedicar um post a falar sobre esse filme e dissertar sobre a impossibilidade matemática da cultura de uma ilhota menor que a cidade de São Paulo praticamente monopolizar os pontos mais altos da genialidade artística latinoamericana… deve ser todo aquele comunismo.

    3. “Obra-prima do cinema mudo, “O Martírio de Joana D´arc” é retrato implacável da agonia e sofrimento da heroína francesa. Com Antonin Artaud.”
    139, sabichão. Com espaços.

  15. Oi, Felipe.

    Mas quem disse que eu estava me dirigindo a ti?

    Conhecer Soy Cuba é coisa de quem foi comuna… Digamos que é o meu caso. Sim, vi a coisa. É demais. Uns movimentos de câmera impossíveis, devia ter milhões de neguinhos trabalhando, fazendo a câmera tornar-se voadora. Aguardo o post sobre o filme.

    A terceira parte eu não entendi!

    Abraço.
    ——————————

    Flávia,

    que o projeto chegue a bom termo…

    Beijo.

  16. Que isso galera, a trilha sonora é sensacional! Pelo visto vocês ainda precisam escutar muita música. Trata-se de Uakti, um grupo brasileiro muito conceituado no exterior. E se vocês não entenderam os sons do Uakti aliados ao filme, bom, sugiro que saibam mais do conjunto e da música que eles tocaram.

    Sem mais…

  17. Milton, vi o filme.

    De fato, o filme, apesar das cenas muito bem escolhidas, afinal isso é o que devemos perdoar a Meirelles de antemão, não consegue passar a sensação que temos ao ler o livro. Não é desconfortável, e perde o rumo em algum lugar, logo depois que os personagens principais são tomados pela cegueira.

    Aliás, acho que vou fazer um projeto de Mestrado a respeito de Saramago, discutindo justamente o que é o romance político após a queda do Muro de Berlim.

    É algo sintomático cair um muro e vinte anos depois Obama ordenar o fechamento da Baía de Guantánamo. Sinais de democracia ou de decadência de um outro Império? O que importa, neste caso, é o fim de algo por que vocês passaram e a mim veio a oportunidade de ver apenas o final do filme: a Guerra Fria. Nasci em 1981. Lembro de Gorbatchev.

    Digo isso porque Saramago é criticado por alguns filósofos, tanto dentro da área de filosofia quanto da própria área de literatura. Ele seria herdeiro dessa visão marxista dos tempos da Guerra Fria. Pode-se notar isso quando ele fala a respeito do socialismo.

    De qualquer forma, com todos esses erros, há algo de interessante ainda na visão marxista. Não derrubamos nossas elites ainda.

    Abraços.
    Bruno

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