2666, de Roberto Bolaño (2ª Parte – La parte de Amalfitano)

Benno Von Archimboldi? Esqueçam. Seu nome nem é citado. A segunda é a parte mais curta de 2666 e se a violência e a morte são os panos de fundo do romance, esta é a parte em que a morte domina sozinha. Domina a primeira metade do capítulo, onde o professor de filosofia Amalfitano dedica-se a evocar sua ex-mulher Lola, uma bicho-grilo das mais radicais que o deixa sozinho com a filha Rosa em Barcelona para ir atrás, ir atrás e ir atrás — como tantos personagens de Bolaño — de um poeta, enquanto o melancólico Amalfitano instala-se com a filha na cidade de Santa Teresa, na fronteira do México com os EUA. E domina também a segunda metade, em que ficamos incomodados pelos sintomas de uma loucura que começa a insinuar-se em Amalfitano, o qual ouve vozes, comete pequenas esquisitices, preocupa-se com a segurança de Rosa numa cidade de repetidos assassinatos e sonha, sonha muito.

O personagem Oscar Amalfitano tem na decadência física sua dimensão trágica. A descrição que Bolaño realiza ao descrever rapidamente suas aulas e seus diálogos com a “voz” é comovente. Também o aparecimento de um livro do qual absolutamente não lembrava — O Testamento Geometrico, do galego Rafael Dieste — e seu entorno são narrados de forma inalcançável por autores menos capazes, a grande maioria. Inspirado por Marcel Duchamp, Amalfitano pendura o livro no varal de sua casa, de forma que este possa aprender sobre a vida cotidiana de Santa Teresa e proteger sua filha, tudo isso dentro de uma série de livres associações que funcionam espetacularmente neste capítulo que é finalizado por mais um sonho. Aposto que a história de Amalfitano e de seu destino serão deixados assim mesmo, no máximo ele reaparecerá como personagem secundária. Afinal, estamos lendo Bolaño e cabe a nós dar continuidade ou nexo à superfetação de ficções.

E aqui está o final de A parte de Amalfitano (trad. portuguesa de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, copiada daqui e “tropicalizada” (ho, ho, ho) por este abusivo resenhista:

… Amalfitano sonhou que via aparecer num pátio de mármore cor-de-rosa o último filósofo comunista do século XX. Falava em russo. Ou melhor dizendo: cantava uma canção em russo enquanto o seu corpanzil se deslocava, fazendo esses, até um conjunto de majólicas (azulejos pintados) listadas de vermelho intenso que sobressaía no plano regular do pátio como uma espécie de cratera ou latrina. (…) Quando o último filósofo do comunismo estava finalmente chegando à cratera ou à latrina, Amalfitano descobria estupefato que se tratava nem mais nem menos de Boris Yeltsin. É este o último filósofo do comunismo? Em que espécie de louco me estou a transformar se sou capaz de sonhar tais disparates? O sonho, contudo, estava em paz com o espírito de Amalfitano. Não era um pesadelo. Além disso, proporcionava-lhe uma espécie de bem-estar leve como uma pluma. Então Boris Yeltsin olhava para Amalfitano com curiosidade, como se fosse Amalfitano a irromper no seu sonho e não ele no sonho de Amalfitano. E lhe dizia: escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou te explicar qual é a terceira perna da mesa humana. Eu vou te explicar. E depois me deixa em paz. A vida é procura e oferta, ou oferta e procura, tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia nas lixeiras da História, que por sua vez está permanentemente a se desmoronar nas lixeiras do vazio. Por isso toma nota. A equação é esta: oferta + procura + magia. E o que é a magia? Magia é épica e também é sexo, e bruma dionísiaca e jogo. E depois Yeltsin sentava-se na cratera ou latrina, mostrava a Amalfitano os dedos que lhe faltavam e falava da sua infância e dos Urais e da Sibéria e de um tigre branco que errava pelos infinitos espaços nevados. Seguidamente tirava uma garrafa de vodka da bolso e dizia:

— Acho que é hora de beber um copinho.

Obs.: A Livraria Cultura (link acima, na coluna do meio) tem 2666 na edição espanhola da Anagrama. Pelo que é, custa bem baratinho, R$ 71,34. Afinal, veio de um país onde as edições são enormes. A propósito, lançado em 26 de setembro em Portugal, 2666 já vendeu 23.000 exemplares. Pobre Brasil-sil-sil…

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  1. 2999

    Acordo em um sonho; tanto faz que esteja em Paris, Madri, Barcelona ou Londres – vejo apenas o teto de um quarto despido de mobiliário. Há apenas o colchão onde estou deitado, sustentado por uma estrutura invisível aos meus olhos. Descubro no segundo seguinte que estou na cidade do México, pelo sotaque de algumas pessoas que conversam na rua, vozes que me chegam das janelas abertas. Tento levantar para alcançar meus cigarros mas, além de não conseguir movimentar as pernas, percebo a estupidez da procura do fumo em um quarto onde não há mesa de cabeceira ou armários.

    Deve ser um sonho, é a hipótese mais correta, mesmo que seja estranho o fato de que estou consciente e não encontro, diante dos meus olhos, as incoerências normais dos sonhos, e o próprio fato de estar consciente conspira contra meu suposto estado onírico.

    As pernas não se mexem porque estão atadas por correias que envolvem a cama. Meus próprios braços estão presos – sim, numa camisa-de-força. Fecho os olhos esforçando-me para despertar desse sonho que me parece, agora, a realização dos temores que transformaram minha vida nesses últimos vinte anos num andar a esmo, inútil e solitário.

    – Amalfitano! Amalfitano!

    Reconheço a voz de Rafael Dieste; diante de mim está um velho livro de poemas, e, sim, ora bolas, é mesmo um sonho, pois as ruas da cidade do México tem os nomes das avenidas de Barcelona, e nelas procuro por Lola como se Lola fosse outra mulher, Rosa, como se Rosa fosse minha mulher e não minha filha e se minha filha com Lola nunca tivesse existido. Faço um novo esforço e fecho os olhos novamente, o que me faz tropeçar em um pedestre que seguia logo à minha frente, e que reage de maneira amável, socando minha boca, mas não com muita força.

    – Amalfitano! Amalfitano!

    Recordo-me que o quarto é o de número 2999. Recordo-me que vivo hoje em 2666. recordo-me que morri em 2003, e que escrevia compulsivamente para satisfazer necessidades que já não eram mais minhas. Por uma, duas, três devoções. Mas que preciso levantar da cama, ignorar a camisa-de-força, as correias e desse sonho onde sou outro que não eu, mas quem disso trata é ainda outro, e ele ri, debochado, dos esforços que faço neste sonho que, agora tenho certeza, é dele.

  2. Comprei essa edição na Livraria da Vila em SP por 48 reais (mas era a última).

    E a Livraria Cultura está com a maioria dos preços dos originais importados mais baratos que as traduções brasileiras…

  3. Estou lendo exatamente este capítulo do 2666. Autor de múltiplos recursos, Bolano nos prende de tal forma ao seu texto que quando sento e começo a ler me desligo totalmente do mundo ao redor. Descobri este autor com o Milton, que ainda informou que a Cia das Letras deve lançar este livro em maio.

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