Pra lavar a alma

Gustav Mahler

Lamento muito não ter podido escrever anteontem à noite, ainda sob o calor (sim, calor) do concerto, mas faço-o agora. Terça-feira, a OSPA apresentou a primeira sinfonia de Mahler sob a regência de Ira Levin no Salão de Atos da UFRGS. Olha, a tese de que é melhor para a orquestra não ter um regente titular torna-se cada vez mais vencedora. O concerto foi esplêndido e tudo o que aconteceu estava refletido nas caras de felicidade dos músicos logo após o titânico desempenho. A única coisa a lamentar foi o pequeno público. O gaúcho — e a tendência parece acentuar-se nas novas gerações — se borra ao menor friozinho, desistindo das poucas boas oportunidades culturais que a cidade oferece. Será que trocam Mahler pela TV? Céus…

Falar sobre Mahler falo outra hora. O momento é de saudar a orquestra que, animada, levou a sinfonia forma muito satisfatória e entusiasmada. Mahler é um problema: ele propõe grandes e súbitas alterações de humor. Passa do sublime à bandinha, da expansão ao intimismo, do desespero e da tragédia à mais pura alegria. Tudo em segundos. Não sei como Alma aguentava… Como se não bastasse, aprecia orquestrações rarefeitas, premiando muitos instrumentistas com solos que se alternam em ritmo que, se para nossos olhos já parece variado e rápido, imagina para quem tem de interpretar. Por mais paradoxal que pareça, ele dá um tratamento camarístico a suas enormes orquestras, fazendo-as tocar em pequenos grupos. Ou seja, nunca uma sinfonia sua é de execução trivial.

Por mais estranho que pareça, a puramente instrumental Sinfonia Nº 1 de Mahler é programática. Sim, o nada modesto compositor baseou seu programa no romance Titã, de Jean Paul. A história é a da tomada de consciência, por parte de uma criança, da fragilidade da condição humana e de sua morbidez atávica. Não é nada casual que o terceiro movimento — interpretado magnificamente pelo primeiro contrabaixista da orquestra (Walter Schinke?) — seja composto sobre a canção infantil francesa Frère Jacques.

Ira Levin

Então, quando a OSPA tira tudo isso de letra, apenas reafirma o que sabemos: a orquestra tem um bom grupo de músicos merecedores de uma sede, de novos concursos, de nosso respeito, gratidão e o resto da ladainha espero que meus sete leitores já tenham decorado.

P.S. — Ah, o regente Ira Levin? Podia vir mais vezes, não? Além de ser muito competente e de ter demonstrado domínio do repertório, é uma pessoa respeitosa e solidária. Como sei? Vou contar um segredo de concertos para vocês. Notem o momento dos aplausos. Se o cara primeiro destaca os músicos e, na hora de ser saudado pelo público, desce de sua bancadinha para receber o aplauso no mesmo nível do restante da orquestra, demonstra (1) não ter complexo de deus e (2) considerar que é um do time. Ira Levin, mesmo sendo um nanico, recebeu a saudação entusiasmada dos poucos e bons que lá estiveram bem ao lado do spalla.

P.P.S. – Peço-lhes desculpas pela nota rápida escrita sobre a perna. Deve conter erros. Corrijam!

14 comments / Add your comment below

  1. Nada está sendo mais difícil para mim do que meu conhecimento de Mahler. Você e seu filho, o Bernardo, impuseram-me um barreira espessa que procuro superar: a de Mahler e de Zappa. A cada dia coloco, nas amplas horas de recreação que tenho aqui em casa, uma obra de cada um deles para tocar, dos downloads das obras completas que peguei via torrent e PQP Bach. E olha que sou expert em coisas herméticas, sentindo o maior prazer por Ulisses e Coltrane (Ascension).

    Empreguei até um bom dinheiro nisso. Lembra do MP3 do Mahler que certa vez disse ter comprado. Não sei se chegou a ir atrás da dica. Os nomes envolvidos,_ algumas gravações são do começo do século passado e de péssima qualidade, como a da sinfonia nº 8_ são: Kerstin Thorborg, Heinrich Schlusnus, Kathleen Ferrier, Dimitri Mitropoulos, Oskar Fried, Willem Mengelberg, Bruno Walter, etc…

    (Estou prosperando, ainda que que não tenha dissociado o início dessa primeira sinfonia com a conhecida marcha nupcial dos filmes.)

    1. Meu método com Mahler foi o de ouvir todo ele de enfiada, várias vezes, incluindo os ciclos de canções. Um belo dia, o troço assentou de tal maneira no cérebro que hoje sou viciado e dependente.

      Agora, não o acho tão hermético. E acho que as gravações de Mahler não são para qualquer um. É muito fácil de fazer porcaria e A Canção da Terra é a maior prova disso. Bernstein é o campeão. Rattle tb tem uma integral de respeito quando trabalhava na CBSO. A de Kubelik é sensacional.

      É estranho, mas Mahler e Shosta devem ter tantos detalhes e nuances que são impermeáveis a regentes menos compreensivos.

      Bem, o trabalho me chama…

  2. Bom dia, meu caro!
    Acabei de ler teu texto sobre o concerto da OSPA
    o Mto Levin é um graaaande cara!
    Quando ele esteve a frente do Teatro Municipal de São Paulo a programação era de títulos como Jenufa e Lohengrin passando longíssimo dos lugares comuns.

  3. Concordo totalmente. Saí emocionado. Achei uma bela noite da OSPA, ainda mais sendo o único Mahler do ano. Lamentei também o publico reduzido, mas a orquestra foi imponente.

  4. Incomodam-me, porém, as “orquestrações rarefeitas”, às vezes a soar repetitivas em peças diferentes, talvez pelo velho hábito de todos os compositores do reprocessamento de materiais antigos, ou mal explorados em peças anteriores, de si mesmos ou dos outros. Tem algo também nas alternâncias de motivos e exploração variada da orquestra que me causa algum incômodo; para mim demonstram a exigência da marca pessoal, do ineditismo à fórceps, enfim, males (desculpe, Milton!) que se tornaram mais patentes à medida em que os anos passaram e os velhos mestres ficaram para trás com suas formas acabadas e infinitas, e os novos compositores encontraram o infinito como barreira, daí que partiram para tergiversações diversas, cada vez mais desinteressantes, e isso, óia aí, me parece, Mahler anuncia – parece o Leverkuhn (é assim que se escreve?) que, depois de escrever uma “peça descritiva” – Fosforecências do Mar, creio eu – debanda para o dodecafonismo. Bom, certamente cê num concorda com nada disso, mas nós tem direito a divergências douvido.

  5. Pois é, era meu aniversário e minhas filhas “cobraram” uma janta em casa.
    O problema destas coisas é que acontecem simultâneamente.
    Sou puvinte de Mahler há apenas uns três ou quatro anos, antes ^disto, não gostava da sua grandiosidade. Talvez a experiência nos ensine alguma coisa..

  6. Caro Milton,
    muito obrigado pelo elogio em relação ao solo do contrabaixo executado por mim, pincelando a primeira idéia do tema tão simples e lúdico porém belíssimo que em sequencia é repetido por muitos outros instrumentos e naipes. Aliás, esse tema vem do folclore da Europa central e Mahler se inspirou nesse tema e na bela imagem de um quadro pintado no qual se observa justamente o funeral do caçador sendo carregado pelos animais. Nada mais inspirador! E cada vez mais nos sentimos agradecidos pelas vozes, ainda poucas infelizmente, que reconhecem o valor da OSPA e da necessidade de dotá-la de condições mínimas para que todos os apreciadores desse patrimônio cultural ímpar usufruam de mais qualidade ainda! Teatro novo e concursos já!!!
    Abraço,
    Walter Schinke.

  7. Oi Milton,

    Tive a oportunidade de ver a estréia da Marin Alsop na OSESP, conduzindo a 5a de Mahler. Foi fantástico e comovente. É engraçado como, a cada vez que tenho a chance de assistir música ao vivo, sempre volto a me surpreender com o fato – como é prazeiroso e emocionante. E como é diferente (e melhor!) que simplemente ouvir as gravações. Lembro de uma discussão por aqui a respeito disso, tempo atrás, não?

    Aliás, pegando a deixa do Charles aí encima, acho a 5a um ótimo ponto de entrada para Mahler, não?

    Quanto ao Ira Levin, tenho boas lembranças dele da sua época no Teatro Municipal daqui. Bons tempos em que havia programação ativa por ali. Tenho a impressão que isso foi há séculos.

    Fico feliz de ver voltar seu entusiasmo com a OSPA aí por essas paragens. Aqui em São Paulo vi as pessoas muito entusiasmadas com a Marin Aslop. Gostei muito da condução e postura dela. É uma baixinha espivetada, conduz com entusiasmo e tesão. Contagia e faz a audiência sentir-se presente sempre. Já é um ótimo começo.

    1. andré, dava de “um tudo” para ter presenciado esta estréia de Alsop com Adams e Mahler!

      só me resta ter esperança de que essa nova fase da orquestra tenha entre suas prioridades a realização de excursões pelo país, como foi o último ano de Neschling passando aqui por Salvador. Já o picolé de chuchu do Tortelier eu tive a oportunidade de ver na sala são paulo, num concerto histórico na minha vida, ok, mas eu queria mais!

      aquilo tem que sair e tocar pelo país! Neschling ganha ponto comigo pois teve esta postura também na CBO. se não for com este tipo de trabalho, como é que as pessoas terão acesso? quem dirá a sensibilização do olhar artístico e o maior apreço pela qualidade musical…

      em tempo: é impressionante e notório a revolução musical de repertório sinfônico que o NEOJIBÀ vem realizando aqui na Bahia! As noites de música clássica agora são lotadas, contagiantes e mais frequentes…tanto aqui como no mundo! Já estão indo para sua segunda turnê fora do país, depois de terem tocado no royal festival hall com Lang Lang, essa nova sensação do piano que vem da china…(hahahah)

      abraços,

      rodrigo

      em tempo: revol neojiba

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