Admirador de Gustav Leonhardt e de Glenn Gould, Jacques Drillon abre mais uma vez o debate, não se afastando de nenhuma das interrogações estilísticas, práticas e mesmo morais.
Tradução de Evandro Martini, a partir do original na Diapason francesa.
Há cerca de 40 anos, uma questão espinhosa era debatida: Bach deve ser tocado no piano ou no cravo? A verdade estava escondida em algum lugar, e precisava ser descoberta. A questão se colocava à parte do debate sobre instrumentos antigos e orquestras historicamente informadas. Como se Bach tivesse um lugar especial na história, e merecesse um tratamento especial. É verdade que ninguém teria a ideia de escolher Kandinsky ou Mondrian para ilustrar a capa de um registro de Couperin ou Buxtehude, enquanto com a Arte da Fuga — música “abstrata”, “Feita para ser lida mais do que tocada” — isso acontecia regularmente…
Assim como a dimensão política do debate sobre os instrumentos antigos (conservadorismo / progressismo, direita / esquerda) era evitada, e como a dimensão econômica também nunca foi tocada (e eram enormes os interesses financeiros em jogo), o aspecto estilístico de “Bach-no-piano” foi cuidadosamente evitado. Como se Bach estivesse fora dos estilos, fora da história, fora da geografia: como se sua música, e Gould o afirmou, “transcendesse questões de evolução”. É por isso que tudo era “possível” com Bach: tocá-lo com vibrafone, orquestra, quarteto de saxofones. Sua música “resiste a tudo”, lê-se ainda às vezes
Aprendemos, nos últimos quarenta anos, que não era verdade. Nós sabemos hoje o quanto a Itália e a França entram na música de Bach, que é possível classificar por épocas, cidades de residência. E a Arte da Fuga pode ser vista como uma homenagem ao contraponto do passado, contra a música da moda no fim da vida de Bach.
Portanto, a questão permanece: piano ou cravo? Os argumentos se empilham: a polifonia seria mais clara no piano, a dança seria mais natural ao cravo; os ornamentos vêm mais facilmente para o cravo, no piano parecem fora de lugar; a dinâmica está presente na própria escrita da música para cravo (três notas tocadas juntas soam mais alto do que uma), e o piano adiciona dinâmicas artificiais, ou então se limita a um mezzo forte constante e entediante; o temperamento desigual do cravo melhor reflete os tons que o temperamento equalizado do piano; o baixo continuo no piano é simplesmente ridículo, e cantores ou instrumentistas preferem o acompanhamento do cravo; a música de Bach é essencialmente articulada enquanto o piano prefere o fraseado. E por aí vai…
O piano é derrubado por essa série de argumentos. O único aparentemente em seu favor, a clareza da polifonia, não resiste por muito tempo: Leonhardt, ou Koopman, ou Hantaï fazem uma polifonia perfeitamente clara no cravo.
Várias respostas são fornecidas pelos defensores do piano:
1. Não importa, eu faço como eu quiser.
2. Um bom pianista é melhor do que um mau cravista.
3. Eu tenho um piano em casa, não tenho um cravo.
4. É possível tocar Bach no piano de forma “historicamente informada”.
5. Colocar um instrumento de salão no Carnegie Hall?
E nossos debatedores não se entendem. Só que Glenn Gould não se importa. Enquanto outros pianistas passaram a nos servir um Bach morno, preocupados com um estilo “correto”, Gould negou a sua existência. Para ele, o estilo não existe. E é porque ele o declara ilegítimo, como um tribunal é declarado incompetente, que Gould é interessante. Outros pianistas sabiam e ainda sabem que o olho do estilo os examina. Eles tocam Bach com medo e fazendo concessões (por exemplo se abstendo do pedal e seguindo o tratado de C.P.E. Bach). Gould considera os críticos com indulgência e diversão: há muito tempo ele se liberou desse superego esterilizante, triste, mal humorado. Gould está tão longe destas questões! Ele não faz parte do debate, ele o recusa, foge. Na realidade, é o único pianista a interpretar Bach no piano: os outros tocam no não-cravo.
Mas Gould não pode ocupar todo o horizonte: nós continuamos a ouvir outros artistas, a ir ao concerto. É preciso agir como se Gould não existisse: temos de voltar para a terra e considerar a questão sob o ângulo trivial do trabalho, da rentabilidade musical, do custo-benefício. No piano, tocar sem dinâmica exige um investimento técnico considerável, articular sem afetação é um desafio, tocar rapidamente sem legato é horrivelmente difícil. Em suma, entendemos que o investimento pianístico para se tocar Bach é de ordem diferente do investimento cravístico. No cravo, basta encostar nele para encontrar o que procuramos. Ao piano, é preciso cavar profundamente. A rentabilidade é baixa, quase insignificante, mas a exploração da matéria-prima Bach tem esse preço. É uma situação comparável ao mercado de petróleo: antes, a exploração de alguns campos não era rentável; o preço do petróleo subiu, a exploração se tornou viável e todo o mundo compra gasolina mais caro. Se alguém quiser Bach no piano, tem que pagar o preço.
Decididamente, o piano. Por que? Sou um apaixonado por Johann Sebastian Bach, e acho que a música de Bach é, de tal ordem, essencial no mundo musical, seja erudito ou não, que deve ECOAR (e escrevo, aqui, em maiúsculas). O piano ressoa mais, a música de Bach vai mais longe, chega a ouvidos mais distantes. Ouço a extraordinária pianista russa Polina Ossentskaya executando o belíssimo Piano Concerto em D menor e sinto que, alí, sim, vejo a música de Bach à altura do que merece. Polina toca com tamanha técnica, suavidade, virtuosismo e feminilidade (por que não?!), que sinto na interpretação dela, AO PIANO, a fiel dimensão que Johann Sebastian Bach merece. Ah, mas a peça foi feita prá cravo!!! esbravejam os puristas conservadores. Ora, bolas! na primeira metade do Século XVIII não havia piano! Bach usou o que ele tinha à mão: o cravo, além, é claro, do excelente som do violino, viola e demais instrumentos. Mas não tinha o piano! Se o tivesse, tenho certeza de que lhe daria preferência absoluta e a adaptaria a peça às características do piano. É só perceber que, em muitas peças de Bach, dependendo da posição em que se localiza o cravo, no palco, a orquestra “engole” o som do cravo, mesmo quando ele desempenha o papel apenas de baixo contínuo. A flauta doce, a mesma coisa. POR QUE INSISTEM EM UTILIZAR FLAUTAS DOCES, MUI
TAS DELAS DE MENOR POTENCIAL SONORO EM PEÇAS DE BACH, SE HÁ A FLAUTA TRANSVERSA? Percebe-se isso, visivelmente, no Concerto de Brandemburgo número 4: em todos os 3 Movimentos. o violino e, depois, no Tereceiro Movimento, a Orquestra “engole” o som da flauta doce, quase anula sua fraca potência sonora. Amigos, maestros e diretores musicais, deixemos o purismo de lado e façamos ressoar a magnífica música de J S Bach! Ela merece! Tenho certeza de que O Pai da Harmonis irá agradecer!