A Ospa trouxe o pterodáctilo para o paraíso

A Ospa trouxe o pterodáctilo para o paraíso
A Tempestade de Tchai chegando...
A Tempestade de Tchai chegando…

A noite era perigosa. Era necessário todo o cuidado. Concertos em igrejas deixam nossas bundas quadradas e as costas doendo. Sei por experiência própria que a Igreja do Colégio Anchieta tem cadeiras especialistas nestes quesitos. Acho que elas foram compradas do DOPS nos anos 80. O sofrimento foi amenizado pela presença amiga do Gustavo Melo Czekster, que pegava fogo — suando com um condenado — no banco atrás de mim. Ele tinha dois desconfortos; eu, inexplicavelmente, não sentia calor. Pingando, ele me disse que estas crônicas que escrevo sobre a Ospa são a continuação natural dos concertos e que ele as lia sempre. Como veem, um cara de bons hábitos. Mas, minha nossa, sei que nem todos gostam disso aqui!  Ele completou dizendo que apreciava as descrições do ambiente e eu pensei: como não fazer isso se aquele ventilador ali à esquerda mia como um gatinho faminto?

A última vez que tinha visto o Réquiem de Fauré fora na Saint-Martin-in-the-Fields em fevereiro de 2013. Saudades daquela viagem com a Bárbara. Mas não pensem que a versão ospiana da peça estava pior. Talvez estivesse até melhor que a versão londrina. O Coro Sinfônico da Ospa e o trabalho do pequeno efetivo orquestral utilizado garantiu uma bela viagem pelo peculiar universo de Fauré. Seu Réquiem não é nada desesperado e indica o caminho de um descanso eterno no paraíso. O Coro foi magnífico em toda a peça, mas especialmente na abertura do último movimento In Paradisum, quando anjos nos levam para lá pela mão. Não é um Réquiem para ser gritado e tal concepção da obra foi respeitada. O soprano Elisa Machado esteve um degrau acima de seu partner Daniel Germano. Elisa foi perfeita, demonstrando compreensão do estilo do Réquiem. Discreta, a orquestra esteve impecável.

No intervalo, a situação era a que segue: ainda embalados pelo Réquiem e em pé, tentando fazer nossas bundas retornarem a seus formatos originais. Tudo era alívio. Então, o paraíso foi invadido, mas não por trombadinhas fazendo um arrastão na praça de alimentação de um shopping, mas por algo muito mais primitivo e agressivo.

O maestro Manfredo Schmiedt, tão mansinho e compreensivo na primeira parte do concerto, começou a mexer os braços chamando os pterodáctilos para invadirem o paraíso. A tal Fantasia Sinfônica A Tempestade, Op. 18,de Tchaikovsky, era inédita em Porto Alegre. Deveria ter permanecido assim para sempre. Trata-se de bombásticos temas russos batendo firme nos personagens da última peça de Shakespeare. Pobre Próspero, pobre Miranda, coitado de Ferdinand, só o deformado Calibã pode ter gostado. Fiquei pensando que a tempestade que trouxera Alonso e Antônio para a ilha de Próspero talvez estivesse na música, mas não, nunca, a magia de Próspero e nem, jamais, nunca, haveria espaço para a gloriosa frase dita pelo pai de Miranda: Nós somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos; com nossa curta vida cercada pelo sono. Ou, em tradução mais completa e competente que a minha: Esses atores eram todos espíritos e dissiparam-se no ar, sim, no ar impalpável. Um dia, tal e qual a base ilusória desta visão, as altas torres envoltas em nuvens, os palácios, os templos solenes, e todo este imenso globo hão de sumir-se no ar como se deu com esse tênue espetáculo. Somos feitos da mesma substância dos sonhos e, entre um sono e outro, decorre a nossa curta existência. 

Onde estava o genial Próspero, Tchai?

No final do concerto, estava com desejo de música, claro. O Tchai tinha me matado. A noite acabou no Café Fon Fon, na festa de aniversário da Isolde. Bem tarde, com o bar quase vazio, acomodados naquele ambiente tranquilo, largado e risonho de fim de festa, a Elena foi sentar-se no lugar da Bethy Krieger para tocar — sim, no piano —  Beatles (Here, there and everywhere e Because) e, a meu pedido, de Bach, o BWV 639, Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ, que ela toca maravilhosamente e que deixo para vocês com a Lisitsa:

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Ospa, gingando na chuva sob a malemolência argentina do maestro suíço

Ospa, gingando na chuva sob a malemolência argentina do maestro suíço
Nicolas Rauss: o homem do bom trenzinho veloz
O suíço Nicolas Rauss: trenzinho veloz

Sem dúvida, o suíço Nicolas Rauss é um excelente regente. Trabalha em Rosário, na Argentina, desde 2008, o que explica nosso título. Ontem, para além dos raios e da chuva lá fora, o concerto do Ospa foi cheio de contratempos — até um microfone, que ficou aberto por um erro operacional, começou a cuspir ruídos pelas caixas bem no coração da Sinfonia de Schumann, a qual teve de ser interrompida! –, mas a música sempre saiu soberana. Rauss viu coisas em Villa-Lobos que estão fora de nosso padrão de deixar nosso maior compositor descer a ladeira na banguela. E Carrara tocou muito. E Rauss fez um grande Schumann. E o suíço gingou e dançou com Gnatalli e Villa. Eu vi. Todos os que estavam lá viram.

A noite começou com o Concerto Noel Rosa para piano e orquestra (1978), de Radamés Gnattali. Seus movimentos são arranjos sobre três clássicos de Noel: As Pastorinhas, Feitio de Oração e Conversa de Botequim. André Carrara esteve perfeitamente à vontade, principalmente na melhor das peças, uma encantadora Conversa de Botequim, onde pode demonstrar uma antes insuspeitada faceta: a do jazz sem glúten by Carrara. Um belo início de concerto.

Mais ambiciosa, depois veio a Bachianas Brasileiras nº 2 (1930), de Heitor Villa-Lobos. Não sou muito apaixonado pela obra, feita de movimentos rearranjados a partir de peças mais antigas, escritas originalmente para piano solo ou para violoncelo e piano. Nos três primeiro movimentos, eu ouvia a música com meia atenção. Na verdade, estava observando os músicos da Ospa, desejando saber quais deles eram ou tinham se filiado ao PP ou a um de seus coligados nas próximas eleições estaduais. Não, não desejo a Ana Amélia nem ao pior de meus inimigos, mas sei que quem tiver feito isso, é sério candidato a um CC, creio. Deus me livre!

Mas voltamos a Villa. Não dá para negar que as locomotivas suíças são mais velozes e confortáveis do que os trens do interior do Brasil. Rauss acelerou o O Trenzinho do Caipira já de cara, ficando muito mais próximo da interpretação cantada por Edu Lobo (com letra extraída do Poema Sujo de Ferreira Gullar) no disco Camaleão, do que do comum dos regentes. A ousadia foi premiada, a peça ficou linda e a Reitoria do UFRGS veio abaixo em aplausos.

Após o intervalo, tivemos a ultra-romântica Sinfonia Nº 4 de Robert Schumann. Restabelecidos do choque — jamais Schumann deveria suceder Villa — pudemos até curtir a complexidade da obra que não foi, cronologicamente, a última sinfonia a ser composta por Schumann e sim a segunda. Tal como a primeira, a sinfonia foi composta em 1841, mas a sua instrumentação foi revista em 1851 (quando já tinham sido estreadas a segunda e a terceira). O seu título original dizia Fantasia Sinfônica. É a mais original das sinfonias de Schumann, uma vez que os quatro andamentos se encadeiam sem interrupção, pondo em prática o procedimento cíclico que viria a ser utilizado depois por outros compositores, onde os temas vão reaparecendo ao longo dos vários andamentos.

A Ospa foi digna de uma obra difícil e estranha, que parece mais adequada ao piano do que a uma orquestra. Pois, não adianta, Schumann escrevia para orquestra pensando em seu piano.

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