Romeu retornou à casa e procurou imediatamente o telefone para pedir uma pizza. Estava feliz e falou em voz muito alta que queria o mesmo de ontem. A moça disse-lhe o preço e ouviu Romeu perguntar:
– Você sabe qual é a diferença entre Deus e um maestro?
– Não, senhor – disse a atendente brasileira acostumada às piadas de seu consumidor.
– É que Deus sabe que não é maestro!
Ela, excepcionalmente, deu uma autêntica risada. Romeu replicou:
– Depois de meses, consegui fazer-te rir!
– Sim, o Sr. é muito engraçado e hoje o dia está calmo.
– Poucas encomendas? – perguntou Romeu que nunca tinha falado com a moça sobre quaisquer outros assuntos.
– Sim, poucas. Mais tarde começa a correria. O Sr. é músico?
– Sim, toco na Sinfônica do Porto.
– Que interessante! E que instrumento o Sr. toca?
– Viola, sou violista.
– Não sabia que havia violas numa orquestra. Violas são como violões, né?
– Não, viola é um violino maior, de som mais grave.
– Ah, sei. Vocês colocam o instrumento no chão e ficam de pernas ab…
– De pernas abertas? Não, aqueles são os violoncelos… – Romeu tentou resistir… Mas não conseguiu. – Para tocá-lo é necessário ficar como as mulheres gostam de ser tocadas.
Ela não respondeu nem riu e Romeu tentou inicialmente preencher o silêncio com uma risada, depois com um pedido de desculpas. Não houve reação, à princípio, depois – com um tom entre a decepção e a irritação, talvez ambas – ela lhe disse apenas que tinha que trabalhar. Ele insistiu desculpando-se novamente até que ela respondeu com voz tranqüila:
– Não esperava que um brasileiro me tratasse como alguns portugas daqui fazem. Não sou uma prostituta, sou uma brasileira que tenta ganhar a vida neste país. Sou igual ao Sr.
– Desculpe, não foi minha intenção ofendê-la. Por favor, acredite.
Desligaram e ele explodiu:
– Sou um imbecil! Um idiota!
Imaginando a idade e a aparência da moça, Romeu começou a arrumar a casa, retirou o cachecol do Boavista da parede e teve vontade de jogar o rádio alvinegro no lixo. Não o fez, mas tirou ambos de sua vista. Sentou-se na cadeira de sempre, postada no meio da sala, com a caixa da viola sobre os joelhos, achando-se desconfortável. Girou a cadeira até ficar de costas para a televisão e, com um leve sorriso, atacou o Presto, terceiro movimento da Sinfonia Concertante. Sentia-se reconciliado com o instrumento. Tocou de tal forma que agradou até este narrador. Enquanto repetia alguns trechos mais rápidos e difíceis, pensava no conflito com o maestro Tardue. Vários de seus colegas o cumprimentaram ao final do ensaio, parabenizando-o pela coragem de enfrentar o todo-poderoso.
– Deixaste-o com a pata na poça – disse um.
– Ele parvou e te sentiste no dever de fazer-lhe ver a verdade? – riu outro.
Porém, à saída, o maestro olhou-o bem nos olhos e Romeu teve a certeza de que, como as guerras, aquela discussão não finalizaria enquanto o dominado não aceitasse a superioridade do dominador.
Era heróico, talvez, mas não era inteligente um violista desafiar o maestro publicamente, assim como um recruta não deve fazer sugestões ao General em frente à soldadesca. Ele que esperasse. Mesmo refletindo dessa maneira, Romeu sorria, feliz com a vitória parcial. Será mesmo que Tardue se vingaria dele? E quando? Não acreditava numa demissão; afinal, não havia descumprimento nem extraordinária insubmissão. Vamos ver, pensava ele, ainda sorrindo.
O problema resume-se nisto, refletia Romeu: quanto menos tempo temos, menos conteúdo comunicamos ao ouvinte. Acelera-se a música quando ela tenta expressar a alegria, ou o contraste com algum momento anterior; também apressamos o andamento se buscamos o virtuosismo ou o aplauso. Porém, alguns regentes fazem adágios precipitados por pura incapacidade de expressar conteúdo. Quando pressentem que este será inevitavelmente pobre e entediante, aumentam a velocidade da execução da música para que esta cause alguma impressão. Substitui-se a beleza pela habilidade. A lituana era mesmo muito boa, avaliava Romeu, pois sublinhava nuances que ele nunca percebera no movimento lento da Concertante. E mandava em todos, como muitas mulheres conseguem fazer. Afinal, a cada frase que seu violino pronunciava, ela sugeria ou impunha um sotaque à resposta do violista. A luta, na verdade, era entre ela e Tardue, tinha pouco a ver com o novo herói da orquestra. De modo submisso, ele, e depois a orquestra, foram induzidos por Elena que, consciente de que introduziria o tema do Andante, tinha o poder de arrastar todos consigo, não obstante a resistência do regente. Assim, garantiria uma interpretação cheia de intenções e conteúdo; aquilo não era para qualquer um.
A relação entre conteúdo e tempo é mesmo curiosa, às vezes paradoxal, pensava Romeu, e tem de ser levada em conta. Faz parte de nossa época este desrespeito ao conteúdo; a TV mostra diariamente as notícias mais complexas de forma condensada, o que nos torna todos críticos e “sumidades” sobre qualquer assunto, ao mesmo tempo que nos priva dos meios para exercer críticas consistentes. Só agora ele dava-se conta que comprara uma briga que, na verdade, era de Elena Sofonova. Tardue ignora ser impossível fazer aquele Mozart sob o formato tacanho que lhe agrada e Elena Sofonova combatia a superficialidade do maestro.
Porém, no movimento que Romeu ensaiava, a velocidade era fundamental e ele acelerava seu solo ao ritmo de seus pensamentos. Pensava que era um violista rápido e nas piadas que inventaria, ao mesmo tempo que orgulhava-se de saber que estaria acompanhado, no dia seguinte, por uma instrumentista de primeira linha.
Voltou ao telefone a fim de conferir se seu sapato já tinha recebido o salto que o faria acompanhar Elena com mais quatro centímetros de altura. O homem o tranqüilizou. Estava feliz, refletindo que a experiência já valera a pena e que o público aficionado da cidade do Porto reconheceria nele um instrumentista seguro e eficiente.
Não pensou no Boavista nem enquanto devorava a pizza. Esqueceu todos os programas esportivos que normalmente assistia para ficar apenas ensaiando. Tinha a impressão de que o tempo retrocedera e que podia tornar-se aquilo que ambicionara na juventude. Imaginava a formação de um grupo com outros músicos da orquestra para interpretar Hindemith ou, quem sabe, talvez fosse mais fácil criar um quarteto de cordas?
Abaixo, o Presto com Maxim Vengerov (Violino) e Yuri Bashmet (Viola):
Amanhã, às 12h, o final.
O texto está ótimo. Assim como essa interpretação do Vengerov e do Bashmet que eu tive a oportunidade de ver ao vivo em 1996, em Firenze.
Eu realmente não sou invejoso, mas confesso que quase me mordi de inveja desta vez.
Em Firenze, é? Tá bom.
Depois que eu postei o comentário, pensei em como ele poderia soar pernóstico. Mas fiquei realmente feliz em lembrar da experiência vivida por meio do vídeo com o qual você ilustrou o excelente texto.