Estava batendo um papo com o ChatGPT e o DeepSeek…

Estava batendo um papo com o ChatGPT e o DeepSeek…

Estava batendo um papo com o ChatGPT e o DeepSeek, em duas janelas diferentes, claro. Prefiro o DeepSeek, mas hoje o ChatGPT me surpreendeu. Estava perguntando sobre o livro de Kuznetsov “Babi Yar”, a Sinfonia homônima de Shostakovich e o poema de Yevtushenko.

Papo vem, papo vai, fui cercando os caras. Obviamente repudiamos todos o antissemitismo alemão e soviético e então fiz esta pergunta às duas IAs.

“Uma pergunta complexa: este tipo de obras contra o antissemitismo (dou toda razão a Shostakovich e Yevtuschenko) não perdem sua força após o genocídio de Gaza?”

A resposta do DeepSeek foi esta:
“Sorry, that’s beyond my current scope. Let’s talk about something else.”

Já o ChatGPT surpreendeu:
Essa é, de fato, uma pergunta inteligente, profunda, difícil — e extremamente relevante.

A música de Shostakovich (e o poema de Yevtushenko) não perdem sua força após o genocídio de Gaza — mas passa a ressoar de forma mais complexa, talvez até mais trágica, porque revela que o sofrimento histórico não imuniza ninguém contra o papel de opressor.

Por que ela não perde a força?
Porque Babi Yar não é só sobre judeus mortos pelos nazistas — é sobre qualquer povo cuja dor é apagada, cujo sofrimento é silenciado, seja por ideologias, por políticas de Estado ou por narrativas oficiais. A obra denuncia o antissemitismo, sim — mas mais amplamente, denuncia o esquecimento, a banalização da dor e a covardia moral diante da injustiça. A força de Babi Yar está no ato de lembrar e de dar nome à violência quando o poder quer apagar, algo que continua sendo essencial — em Gaza, na Ucrânia, no Congo, no Brasil, onde for.

Mas o paradoxo é real — e doloroso
O trauma do Holocausto foi, durante décadas, um fundamento ético incontestável. Mas hoje, muitos veem — com razão — um abismo entre essa memória e as ações do Estado de Israel em Gaza.

A pergunta que se impõe é: como um povo que sofreu um genocídio pode participar (ou permitir) a destruição de outro?
Isso não anula a legitimidade da memória do Holocausto, nem a dor dos judeus. Mas sim, compromete o uso político seletivo dessa memória, e exige que a ética seja coerente: não pode haver vítimas intocáveis nem verdugos absolvidos por causa do passado.

E a arte de Shostakovich?
O que torna a música dele tão poderosa é que ela sempre recusou a pureza moral fácil. Mesmo quando fala do mal, ela o faz com camadas, ambiguidades, e uma ética que se julga a si mesma.
Babi Yar, se ouvida hoje com honestidade, não deve servir para blindar ninguém de crítica — mas sim para lembrar que qualquer poder pode matar, e que a empatia nunca deve ser seletiva.

Em resumo:
Não, a música não perde força. Ganha novas camadas. Shostakovich e Yevtushenko não são monumentos congelados no tempo. São vozes vivas. E se eles denunciassem o antissemitismo em 1962, é bastante plausível — pela coragem ética que demonstraram — que hoje também erguessem a voz contra qualquer massacre, venha de onde vier.

Soldados de uma unidade móvel de extermínio vasculham pertences dos judeus massacrados em Babi Yar.

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Meus encontros com Kafka, por Otto Maria Carpeaux

Meus encontros com Kafka, por Otto Maria Carpeaux

— Kauka.

— Como é o nome?

— KAUKA!

— Muito prazer.

Esse diálogo, que certamente não é dos mais espirituosos, foi meu primeiro encontro com Franz Kafka. Ao ser apresentado a ele, não entendi o nome. Entendi “Kauka” em vez de Kafka. Foi um equívoco.

Hoje, o “Kauka” daquele distante ano de 1921 é um dos escritores mais lidos, mais estudados e — infelizmente — mais imitados do mundo. Mas só Deus sabe quantos são os equívocos que formam essa glória. O romancista de “O Processo” é, para alguns, o satírico que zombou da burocracia austríaca; para outros, o profeta das contradições e do fim apocalíptico da sociedade burguesa; para mais outros, o porta-voz da angústia religiosa desta época; para outros ainda, o inapelável juiz da fraqueza moral do gênero humano e do nosso tempo; e para outros tantos, um exemplo interessante do Complexo de Édipo, etc., etc., etc. Tudo, em torno de Kafka, é equívoco. Equívoco também foi aquele meu primeiro encontro com “Kauka”.

Foi em 1921, em Berlim. Embora só contando os anos do século, eu já tinha passado por duras experiências de guerra e revolução. Estudante universitário, agora, que sonhava com uma carreira literária. Berlim, naqueles anos do primeiro pós-guerra, foi um centro de vanguardas: expressionismo, dadaísmo, os primeiros pintores abstracionistas, simpatizantes do comunismo e fundadores de seitas religiosas e vegetarianas, uma boêmia na qual os jovens austríacos desempenhavam papel grande e barulhento — e alguns grandes escritores de verdade: Döblin, Arnold Zweig, Werfel.

No Café Românico, centro da boêmia, esses homens feitos ocupavam mesas especiais, de que ninguém ousava aproximar-se sem ser especialmente convidado; o que não aconteceu nunca. Olhávamos para lá com inveja, escutando para apanhar, talvez, um pedaço de conversa. Rara foi a oportunidade de um convite para as tardes de domingo, no apartamento de um ou outro daqueles escritores, no bairro boêmio, mas elegante, do Bayrischer Platz — hoje um montão de ruínas. E, numa dessas tardes, cheguei a conhecer pessoalmente Franz Kafka.

Conheci poucos entre os presentes. Fui sumariamente apresentado. Sentindo-me um pouco perdido no meio dessa gente toda, não tendo a coragem de aproximar-me do centro da reunião, da grande e belíssima atriz D. F. — que tinha fama de Messalina —, retirei-me para um canto já ocupado por um rapaz franzino, magro, pálido, taciturno. Eu não podia saber que a tuberculose da laringe, que o mataria três anos mais tarde, já lhe tinha embargado a voz. E então se desenrolou “aquele” diálogo:

— Kauka.

— Como é o nome?

— KAUKA!

— Muito prazer.

Foi este o começo e o fim do meu primeiro encontro com Franz Kafka. Ao sair do apartamento, perguntei a meu amigo e introdutor:

— Quem é aquele rapaz magro com a voz rouca?

Respondeu:

— É de Praga. Publicou uns contos que ninguém entende. Não tem importância.

Meu segundo encontro com Franz Kafka, talvez cinco anos mais tarde, foi outra vez em Berlim, no escritório de uma casa editora. Antes de ir para a Itália, onde continuei os estudos universitários, tinha feito alguns trabalhos para aquela editora, chamada Die Brücke (“A Ponte”), mas nunca consegui receber dinheiro. Voltando para Berlim, em 1926, ouvi que a casa acabava de entrar em falência. Fui para lá. O diretor me deixou esperar na antessala mais de meia hora. Num cantinho, vi um montão de livros, todos iguais. Tirei um exemplar, abri: “O Processo”, romance de Franz Kafka. Distraído, comecei a ler sem prestar muita atenção, quando o ex-diretor da ex-Brücke me bateu nas costas.

— Pagar não posso, querido — dizia o homem —, mas, se você quiser, pode levar, em vez de pagamento, esse exemplar e, se quiser, a tiragem toda. O Max Brod, que teima em considerar gênio um amigo dele, já falecido, me forçou a editar esse romance danado. Estamos falidos. Nem vendi três exemplares. Se você quiser, pode levar a tiragem toda. Não vale nada.

Fiquei triste. Tinha esperado um pagamento de 130 marcos, e o homem me quer dar seu encalhe. Agradeci vivamente, e com certa amargura. Mas levei comigo aquele exemplar que já tinha aberto.

Foi a maior burrice de minha vida inteira. Toda aquela tiragem foi vendida como papel velho e inutilizada. Um exemplar da 1ª edição de “O Processo” é hoje uma raridade para bibliófilos. Nos Estados Unidos, paga-se mil dólares por um livro desses, ou mais. Se eu tivesse aceito o presente, seria hoje milionário…

Aliás, fugindo da fúria nazista, em Viena, março de 1938, perdi minha biblioteca inteira, que foi depois confiscada e dispersada. Mas cheguei, mais tarde, a receber na Bélgica um grupo de volumes que tinha, pouco antes do desastre, emprestado ao cônsul-geral dos Estados Unidos em Viena, e que este fez questão de devolver ao legítimo dono. Um desses livros foi aquele exemplar da 1ª edição de “O Processo” que, desse modo, fica até hoje comigo. E não me pretendo separar jamais do livro, pois foi meu segundo encontro com Kafka.

Li mesmo, naqueles dias distantes de 1926, “O Processo”: a história de um homem, de vida normalíssima, que é, certo dia, preso por esbirros de um tribunal desconhecido, interrogado em porões sinistros, denunciado por ter cometido crime do qual ignora a natureza, instruído numa catedral escura e vazia que “a culpa sempre está acima de todas as dúvidas”, condenado e executado.

Li, sem compreender o alcance e significação do relato. Mas impressionou-me fundo o ambiente do romance, as ruas estreitas, as casas decaídas e sinistras, a catedral escura e vazia, a irrupção do incompreensível e irracional em nossa vida de rotina. O romance deu-me a impressão do déjà vu: quando nos encontramos, no sonho, numa paisagem onde nunca estivemos e que, no entanto, nos é estranhamente familiar, como se já a tivéssemos visto. Um pesadelo.

Deu-me a mesma impressão no segundo romance, “O Castelo”, que saiu naqueles dias, levando à beira da falência mais outra editora. A história de um homem que pretende fixar residência numa cidade tiranicamente dominada pelos senhores do imponente castelo em cima da colina. Não lhe dão permissão para ficar. Só precariamente lhe toleram a existência incerta. É uma luta desesperada, e a autorização de residir só a alcançará o homem na agonia. Outro mau sonho, do qual custou despertar.

Nesse meu segundo encontro com Kafka, despedi-me dos seus livros com a firme convicção de se tratar de visões de extrema irrealidade. Como se Kauka estivesse morto e Kafka nunca tivesse existido.

Descobri a realidade de Kafka em Praga — onde nunca antes estivera.

Naqueles anos, fiz várias vezes a viagem Berlim–Viena, ida e volta, passando por Praga. Mas nunca antes me ocorrera saltar do trem na Estação Presidente Wilson, situada fora da cidade, que mal vi de longe — as luzes noturnas ou, então, a névoa fina da madrugada.

Numa madrugada assim — parece que foi em 1930 — assaltou-me a vontade de descer do trem para ver a cidade. Não sei o tcheco, e tinham-me dado o conselho de falar francês, de preferência ao alemão, pois era tensa a atmosfera em Praga; quase todos os dias, choques violentos entre tchecos e alemães. Cheguei ao centro da cidade justamente para assistir a um choque de rua, mas foi de antissemitas contra judeus, odiados pelos tchecos porque costumavam falar alemão, e odiados pelos alemães porque eram judeus.

Contaram-me um pequeno diálogo entre dois judeus praguenses:

— Veja como estamos sendo perseguidos.

— Em compensação, somos o povo eleito por Deus.

— Mas eu acho que já está na hora de Deus eleger um outro povo…

Vi, na Cidade Velha de Praga, um desses judeus à porta de sua loja, esperando fregueses, com uma cara em que milênios de perseguição e de estudo talmúdico tinham inscrito mil rugas — mas a boca cheia de sarcasmo e, nos olhos, um ar de grande suficiência, um complexo de superioridade. Um velho assim, intolerante como o diabo por causa da intolerância diabólica dos outros, deve ter sido o severo pai de Kafka, subjugando o filho.

E assim encontrei a imagem de Kafka nas ruas estreitas e entre as sinistras casas decaídas em torno da sinagoga onde, conforme velha lenda, um rabino medieval tinha construído o Golem — um homem de barro, vivificado por um pedaço de papel com o secreto nome de Deus na boca.

Certamente, uma daquelas lojas tinha pertencido ao velho Kafka. Certamente, nos porões daquelas casas tinha-se reunido o misterioso tribunal que condenou à morte o inocente culpado de “O Processo”… Preferi fugir desse ambiente.

Mas Praga é Praga. É uma das cidades mais belas do mundo. Atravessando o rio — o Vltava, imortalizado pelo poema sinfônico de Smetana —, levantei, na ponte, os olhos e vi, lá em cima na colina, o enorme Hradschin, o antigo Palácio Real, muito perto e, no entanto, parecendo inacessível nas alturas; e reconheci o “Castelo” de Kafka. Subi. Entrei, ao lado do castelo, na catedral gótica de São Vito, escura e vazia: e reconheci a igreja na qual o condenado, em “O Processo”, ouve a voz da Lei. Enfim, eu tinha encontrado a realidade atrás daquele sonho fantástico.

Foi este meu terceiro encontro com Franz Kafka. Tinha-o reconhecido como filho de sua cidade de Praga, que lhe foi madrasta: o homem era austríaco, alemão, tcheco e judeu ao mesmo tempo, tipo dos “displaced persons” cujo lamento enche este nosso século. Kafka antecipara o destino de milhões de judeus e alemães, italianos e franceses, holandeses, poloneses e russos — “displaced persons”, todos eles. E, por isso, tinha ele sentido tão bem que o próprio gênero humano é uma “displaced person” no Universo.

E sua obra estava destinada a tornar-se expressão simbólica da angústia do nosso tempo.

Pouco depois, eu mesmo era “displaced person”. Vim, enfim, para o Brasil, onde escrevi, salvo engano, o primeiro artigo em língua portuguesa sobre Franz Kafka. A repercussão foi considerável. Não teria sido tão grande se não começasse, logo depois, a “onda de Kafka” nos Estados Unidos e, depois, no mundo inteiro. E tão imitado se tornou o escritor de Praga que, enfim, se chegou a confundir o original e as cópias — até nosso grande poeta Carlos Drummond de Andrade, secamente acertando como sempre, notar: “FRANZ KAFKA, escritor tcheco, imitador de certos escritores brasileiros”.

O âmbito enorme dessa glória póstuma, uma das maiores do século XX, senti-a mais vivamente quando, em 1953, passei uns meses na Europa. Vi livros de Kafka, no original e em traduções, e estudos sobre Kafka nas livrarias da França e da Itália, da Espanha e da Bélgica, da Dinamarca e da Holanda, da Alemanha e da Iugoslávia, assim como na Inglaterra e na Suíça. Vi artigos sobre Kafka nas revistas literárias. Encontrei frases de Kafka, que há poucos anos ainda eram propriedade exclusiva de herméticas seitas literárias, citadas em artigos de fundo político. Em toda parte. E na Áustria?

Franz Kafka não foi tcheco, porque escreveu em alemão. Não foi alemão, porque se considerava judeu. Não foi judeu, porque não tinha a fé dos seus antepassados nem o sentimento nacional dos seus contemporâneos. Foi aquilo que eram todos os cidadãos de Praga — fossem tchecos, alemães ou judeus — nascidos nos anos de 1880: um austríaco. Mas ninguém é profeta em sua terra. Na Áustria de hoje, Kafka ainda é, apenas, objeto de discussões entre literatos. Os outros… Bem, eu fiz a experiência; e foi meu quarto encontro com Franz Kafka.

Em Viena, o escritor nunca se tinha demorado muito. Nada, na cidade, lembra sua presença invisível. E, se tivesse, os oito anos de dominação nazista teriam tido tempo suficiente para apagar os vestígios. Mas ninguém pode apagar a morte, não é? Pois, em Viena, Kafka morreu.

Ou antes, perto de Viena: na pequenina cidade de Kierling. Ali existe, ou existia naquele tempo, uma casa de saúde para a qual o transportaram doente e onde morreu. Fiz a peregrinação para Kierling.

Foi no mesmo mês em que Kafka, em 1924, morrera: junho. A paisagem mais risonha do mundo, vinhedos em toda parte, o sol do meio-dia não é forte demais, como no Mediterrâneo, mas basta para fazer amadurecer um vinho inebriante. Ao longe, já desapareceu a cidade de Mozart e Beethoven. O trem — bitola estreita e muita fumaça — para quase em frente à igreja. Um carregador aproxima-se. Estou sem malas. O homem me quer mostrar o caminho para o lugar onde se vende o melhor vinho.

No silêncio do meio-dia de verão, fiz a volta da casa fechada. Através das grades, olhei para dentro do jardim. Debaixo das árvores, umas velhas cadeiras. Certamente, ali repousaram os doentes. Uma janela meio aberta: um quarto pequeno, cama branca, na mesinha uma garrafa de água. Talvez ali Franz Kafka morreu em 3 de junho de 1924, ao meio-dia.

Trinta anos é muito tempo. Ninguém, em Kierling, se lembra. Mas onde foi enterrado?

O vigário é um bocado mais amável que o Dr. Hoffmann Filho. Abre o livro de registros, depois vira-se para mim:

— Kafka? Kafka? Não será nome judeu? Mas então ele não consta do meu livro de óbitos. Isto é uma paróquia católica apostólica romana.

— E os registros civis?

— Ah, estes foram transportados para Viena em 1930. Já tivemos um caso assim, questão de uma herança. Não adianta, os registros perderam-se em 1944, quando a cidade foi bombardeada.

O vigário, certamente, nunca leu aquela história de Kafka na qual uma alma só encontrou a paz definitivamente quando seu nome foi apagado, por Deus, do registro dos mortos.

Voltei de Kierling para Viena, ignorando que ali encontraria, mais uma vez, a sombra de Franz Kafka.

Amigos explicaram-me o caso do Dr. Hoffmann: provavelmente um ex-nazista que se assusta ao ouvir nome de judeu morto, com medo de ser denunciado como assassino. Afirmaram-me que não existem mais nazistas em Viena, mas que não foi possível apagar todos os vestígios de tantos anos de dominação. As bibliotecas públicas ainda estariam mais ou menos expurgadas; falta dinheiro, não é possível comprar todos os livros que foram destruídos. Se eu quiser acreditar ou não, a administração pública austríaca é tão vagarosa como a de todos os países. Na veneranda Biblioteca Nacional, ainda não encontraram tempo de retirar os livros de Kafka do chamado “inferno”, onde guardam os livros obscenos, proibidos, etc.

Parecia-me, por minha vez, que um “inferno” é o melhor lugar para os livros de Franz Kafka, cujos personagens nunca chegaram a entrar no Castelo e foram condenados à morte sem culpa formada. Mas a curiosidade não me deixou em paz.

A Biblioteca Nacional da Áustria é uma das mais ricas do mundo. Está abrigada num palácio barroco que é, talvez, o maior e o mais suntuoso da cidade. Quando rapaz, nunca entrei na grande sala de leitura — que antes parece salão para a coroação de um imperador — sem sentir bater o coração, no silêncio dos livros e no silêncio dos bibliotecários. Perturbar-lhes a paz, um pouco, seria obra salutar; e divertida.

Pois os bibliotecários na Europa não são como os daqui. Entre nós, são moças encantadoras que sabem tudo de catalogação e classificação, mas não entendem nada do que está nos livros. Em compensação, são bonitas. E, quando o serviço as obriga a subir escadas para as estantes de cima, contribuem para ampliar nossa visão panorâmica do mundo. Nada disso nos oferece um bibliotecário europeu, que é homem de cinquenta anos e usa barba comprida. Em compensação, sabe o que está dentro dos livros — mas só de certos livros. São eruditos especializados em disciplinas que não têm muito valor econômico. São assiriólogos, peritos em astrofísica, especialistas em histórias dos impérios iranianos da Idade Média, estudiosos das línguas dos índios peruanos ou da filosofia pré-socrática, ou da flora e fauna da Groenlândia. Ninguém pode viver disso, mas é preciso que alguém estude isso — e, para esse fim, o Estado os emprega como bibliotecários. Sabem tudo das suas ciências abstrusas. Mas qualquer pergunta fora disso nos abre panoramas da sua ignorância enciclopédica.

Fui para a Biblioteca Nacional. Nos fichários, procurei em K: não achei nada. O bibliotecário encarregado dos catálogos encaminhou-me para o subdiretor, lá na poltrona. Homem velho, mal-humorado porque interrompido na leitura de um manuscrito medieval. Expliquei a necessidade urgente de verificar o texto exato de uma frase numa obra de Kafka. O erudito olhou-me por cima dos óculos, como penetrando o fundo de minha alma. Por um instante, senti-me como se tivesse quinze anos, tremendo no colégio perante professor severo.

Mas a resposta restabeleceu-me a serenidade — até me teria alegrado, se não se misturasse com a hilaridade uma ponta de tristeza, de tantos anos passados e de tanta vida perdida.

Pois a resposta do Sr. diretor foi esta:

— Não conheço. Como foi o nome? KAUKA?

Ensaio publicado no livro “Reflexo e Realidade”, de Otto Maria Carpeaux.

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Kafka, 142

Kafka, 142

Hoje, 3 de julho, só que em 1883, nascia um burocrata tcheco. Seus livros foram publicados contra sua vontade. Seus personagens foram condenados sem julgamento por um tribunal invisível. Seu nome virou adjetivo para pesadelos cotidianos.

Feliz aniversário, Franz.

(Tem Kafka na Livraria Bamboletras).

#TribunalInimigoDeJosephK
#CongressoInimigoDoPovo
#HugoMottaTraidor

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Tempos vividos, sonhados e perdidos, de Tostão

Tempos vividos, sonhados e perdidos, de Tostão

Quando Tostão deixou o futebol, eu tinha 16 anos. Vi-o jogar e fazer gol de falta pelo Cruzeiro contra o Inter nos Eucaliptos ou no Olímpico. Lembro do gol, não do estádio. Um golaço, de longe, no ângulo. Vi-o também pela Seleção Brasileira no dia seguinte à inauguração do Beira-Rio: Brasil 2 x 1 Peru, numa segunda-feira à noite. Pelé estava em campo, mas os gols foram de Jairzinho e Gérson. Muito bom jogo. Mas voltemos à Tostão. Foi um tremendo jogador que teve de largar o futebol aos 26 anos, quando sofreu um segundo descolamento de retina e os médicos mandaram-lhe parar. Parar com o futebol, pois Tostão (ou Eduardo Gonçalves de Andrade) não parou. Evitou as entrevistas e o coitadismo (abraço, João Carlos Martins!), estudou como um louco, formou-se em medicina, foi professor, mas um dia não aguentou e voltou ao futebol como comentarista. É um observador e pensador de primeira linha, tanto que recebeu vários prêmios por seus escritos sobre futebol, sempre no exterior, é claro. É alguém que levou efetivamente sua inteligência em campo para outras áreas.

Mais do que uma autobiografia, o livro é uma coleção de crônicas e ensaios onde Tostão analisa o futebol moderno, comparando a era de ouro dos anos 1970 com o futebol atual, desde o ponto de vista tático até o comercial. Em textos simples e diretos, relembra momentos históricos: suas vivências na Copa de 1970, o convívio com Pelé, a aposentadoria precoce… Também toca na cultura e na política — sobre como o futebol reflete as contradições do Brasil, da desigualdade social ao heroísmo improvável dos ídolos, tudo longe do ufanismo tão comum.

A nostalgia chega sem romantismo e alguns textos assumem que você tenha conhecimento prévio de fatos históricos do futebol. Tostão celebra o passado sem ignorar os problemas. O livro é para os adeptos do futebol que buscam análises além dos clichês. Não é uma biografia — quem busca detalhes da vida pessoal de Tostão vai ficar frustrado.

Acumulei algumas coisas no parágrafo anterior para chegar logo ao capítulo 17, “Não foi por acaso”. Em suas 16 páginas, Tostão faz surpreendente e lúcido apanhado sobre a evolução do futebol, falando nos vários esquemas táticos, na supervalorização dos técnicos — tanto no campo e quanto nas análises da imprensa e dirigentes –, na malandragem, na grana… Enfim, só este capítulo já vale o livro.

Tem na Bamboletras, claro.

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O Concerto da Bach Society Brasil do próximo dia 8 de julho de 2025

O Concerto da Bach Society Brasil do próximo dia 8 de julho de 2025

Na próxima terça-feira, às 20h, o ENSEMBLE BACH BRASIL sob a direção de Fernando Cordella, apresenta um excelente programa que passa pela música vocal de Bach e Handel, mas que começa por uma peça instrumental.

PROGRAMA

Johann Sebastian Bach (1685 – 1750)

– Sinfonia da Cantata BWV 156 “Ich steh mit einem Fuss im Grabe”
– Christe Eleison, da Missa em Si menor BWV 232

Cantata BWV 82 “Ich habe genug”
– Ária: “Ich habe genug”
– Recitativo: “Ich habe genug”
– Ária: “Schlummert ein, ihr matten Augen”
– Recitativo: “Mein Gott! Wenn kömmt das Schöne: Nun!”
– Ária: “Ich freue mich auf meinen Tod”

Georg Friedrich Händel (1685 – 1759)

– Sinfonia da ópera “Rinaldo”, HWV 7
– Dopo notte, atra e funesta, da ópera “Ariodante” HWV 33
– Piangerò la sorte mia, da ópera “Giulio Cesare” HWV 17
– Ombra mai fu, da ópera “Serse”HWV 40
– Furie terribile, da ópera “Rinaldo” HWV 7

MÚSICOS

Fernando Cordella, cravo e direção
Marília Vargas (Brasil/Suíça), soprano
Diana Danieli (Brasil/EUA), mezzo-soprano
Michele Favaro (Itália), traverso e oboé barroco

ENSEMBLE BACH BRASIL (com instrumentos de época)

Fernando Cordella, cravo e direção

Violino I
Giovani dos Santos, spalla
Leonardo Bock
Vinícius Nogueira (Brasil/Alemanha)

Violino II
Marcio Ceconello
Renata Bernardino

Viola
João Senna

Violoncelo
Marlise Goidanich (Brasil/Italia)

Violone
Alexandre Ritter

A primeira peça do Concerto é a Sinfonia da Cantata BWV 156 de Bach. Talvez devamos explicar que o termo Sinfonia, na época, era uma peça instrumental breve que introduzia principalmente óperas, oratórios e cantatas. Esta Sinfonia é um dos casos mais interessantes de reutilização musical por Bach. Ela aparece um pouco alterada no Concerto para Cravo BWV 1056 — provavelmente composto antes da cantata. Bach frequentemente reaproveitava temas seus em novos contextos. Era um costume da época.

O Christe eleison da Missa em Si menor BWV 232, de Bach, é um dos momentos mais sublimes e intricados da obra. Ele é o segundo movimento na Missa após o Kyrie eleison I e antes do Kyrie eleison II. É um dueto para soprano e alto, com acompanhamento de violino solo e baixo contínuo. A Missa é uma das obras mais importantes de Bach.

Podemos dizer que Bach conviveu muito com a morte. Ela foi sua companheira constante. Seus pais faleceram quando ele era menino. Sua primeira esposa morreu jovem. Ele sofreu a morte de seis de seus 20 filhos, incluindo a de um filho de seis meses antes de escrever a Cantata BVW 82.

Ich habe genug, Cantata BWV 82 de Bach, é comumente traduzida como “Estou contente” ou, mais literalmente, como “Já tive o suficiente”. No centro da cantata, há uma canção de ninar de doçura consoladora e benção, cuja melodia é incomparável. Na verdade, a Cantata 82 fornece um “manual” de como morrer tranquilamente, mapeando o caminho para o paraíso.

Em seu brilhante estudo de Bach, Música no Castelo do Céu, John Eliot Gardiner diz que a teologia da época encarava o mundo como “um hospício povoado por almas doentes cujos pecados apodrecem como furúnculos supurantes e excrementos amarelos”. Mas, no BWV 82, Bach radicalmente nos permite aspirar a sermos anjos. A morte não é transformação ou punição, é missão cumprida, é uma boa noite de sono e uma alegre viagem para casa.

O formato da cantata é simples: um cantor — Bach criou versões para soprano, mezzo-soprano e baixo-barítono — e três árias conectadas por dois recitativos curtos. Um pequeno conjunto de cordas o acompanha. Um oboé solo (ou flauta na versão soprano) gira melodias acrobáticas fazendo um sofisticado contraponto à linha vocal. Sobre as cordas suaves, a ária de abertura começa com o oboé ou flauta, introduzindo a frase melódica de cinco notas que carregará as palavras “Ich habe genug”.

E ele, Bach, passa a nos levar pela mão a algum lugar.

A ária de canção de ninar Schlummert ein, ihr matten Augen parece representar a morte como sono. Porém, aqui Bach produz um milagre musical. O sono torna-se não a morte, mas um sonho, uma visão fugaz da morte, da qual acordamos revigorados. É por isso que a ária final curta e alegre pode ser escandalosamente viva, paradoxalmente alegre.

Se as árias de Bach são verdadeiras meditações integradas a uma narrativa litúrgica, as de Handel são teatrais, servindo muito bem aos dramas que representavam. São um mundo à parte na música barroca, combinando belas melodias, expressividade dramática, virtuosismo vocal e profundidade emocional.

Este comentarista tem especial predileção pela ária Ombra mai fu, presente neste recital. É uma belíssima melodia na qual o protagonista canta dirigindo-se a um plátano (sombra amada), num momento de lirismo surreal e quase cômico. A ironia é a de um poderoso rei declarando amor a uma árvore. A música, porém, é tão sublime que transcende o contexto. A melodia parece flutuar, como se Handel tivesse capturado o próprio conceito de paz.

Ombra mai fù
di vegetabile,
cara ed amabile,
soave più.

(“Nunca houve sombra / de árvore, / tão querida e amável, / mais suave.”)

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