Os livros modernos que mais amamos nascem da confluência e do choque de uma multiplicidade de métodos interpretativos, maneiras de pensar e de estilos de expressão. Ainda que o desenho geral tenha sido cuidadosamente planejado, o que conta não é a construção de uma figura harmoniosa, mas a força centrífuga que libera, a pluralidade de linguagens como garantia de uma verdade imparcial.
ITALO CALVINO, Seis propostas para o próximo milênio
Roberto Bolaño é fácil de ler. Sua prosa é fluida e bem humorada até quando descreve o bizarro, a desgraça e o patético. Só que esta opção pela clareza parece ser um artifício para nos colocar problemas abismais e demonstrar uma realidade dividida e ramificada de tal maneira que precisei recorrer a esquemas gráficos para entender quem conhecia quem e o que quando li Os Detetives Selvagens. Mas a tentativa não melhorou minha leitura e desisti. É estranho como a orelha da edição da Companhia das Letras involuntariamente diminui a obra. Dizer que o livro é sobre a procura de dois poetas, Arturo Belano e Ulises Lima, por uma terceira, a misteriosa Cesárea Tinajero, é o mesmo que dizer que Os Irmãos Karamázovi discute apenas quem, afinal de contas, teria matado o velho Fiódor…
Os Detetives Selvagens tem 3 partes. A primeira, de mais ou menos cem páginas, uma longa segunda parte de 500 páginas e uma terceira, um epílogo curto. Apesar da esplêndida introdução, o que interessa está na segunda parte: esta é formada de textos escritos na primeira pessoa do singular. São mais de 50 narradores que se alternam para contar a história dos personagens e outros fatos que aparentemente não tem muito a ver. Eles são extremamente envolventes, apesar de quase sempre finalizarem de forma abrupta, como um Tchékhov enlouquecido que resolvesse retirar não um, mas os dois ou três últimos parágrafos. A gente fica… com vontade de ler o próximo, que é, normalmente, sobre outro assunto envolvente e que novamente nos deixará na mão. É claro que nos acostumamos e acabamos por achar divertido o autor que nos tira o pão da boca. Só que o efeito geral da obra é devastador. Quando você se afasta do livro, acaba descobrindo que as narrativas complementares estão se afastando do plot, ao invés de formar um todo tranqüilizador. O romance é minuciosamente descontrolado por um homem de visão nada indulgente para com toda aquela turba. O resultado de toda a alegria de viver demonstrada é o desencanto e é mais, é o horror do vazio.
Tudo é parcial e tem múltiplas significações no mundo falsamente simples de Roberto Bolaño. Para referenciar o vazio, Bolaño recorre, como me ensinou a Meg, à hipérbole, ou seja, a intensificar a vida de forma inconcebível, de forma a negá-la. Explicando melhor, Bolaño escreve infinitamente suas belas histórias sem origem nem fim, preenchendo infinitamente todos os espaços ficcionais com sua prosa agradável e de inícios e finais abruptos, conseguindo, com isso, negar seu preenchimento, mostrando o inconsolável vazio de seus inteligentes e simpáticos personagens. De que outra forma apreenderíamos o vazio senão valendo-se da hipérbole? Mais: Bolaño utiliza-se brilhantemente de repetições, só que elas são normalmente imprecisas, diferentes, perturbadoras.
Não estou com o livro a meu lado, mas creio que a única história onde o horror é descrito de forma direta é uma das mais belas que já li: o episódio de Auxilio Lacouture. Trata-se do seguinte: quando a Universidade Autônoma do México foi invadida pelo exército em setembro de 1968, Auxilio decidiu permanecer no banheiro, onde já estava, resguardando o último reduto de autonomia universitária. Ela lê um volume de poesias, e às vezes observa e ouve os militares que cuidam para que ninguém entre na Universidade. Permanece ali por vários dias (não lembro quantos), em plena resistência e com “uma certeza meio vaga” de que ia morrer. Não morreu, tornando-se uma heroína aos olhos de alguns amigos, enquanto outros duvidavem da história. (Depois, a uruguaia Auxilio transformou-se em protagonista do romance Amuleto (1999), mas este é outro assunto).
Mas por que, céus, escrevi quatro posts sobre Bolaño? Porque acredito que seu projeto literário seja realmente importante e pode ter continuidade sob a mesma ou outras formas; porque acho que os jovens que o lêem com tanta dedicação têm razão; porque acho que Bolaño é um escritor que finalmente escreve para o futuro e não repisa experiências gastas; porque tenho certeza que ele desejava ser popular e lido; porque ele foi um vanguardista que se preocupava em não ser um serial killer de leitores e porque ele era humano o suficiente para dizer que escrever era…
Correr por el borde del precipicio: a un lado al abismo sin fondo y al otro lado las caras que uno quiere, y los libros, y los amigos, y la comida.
ROBERTO BOLAÑO – Discurso quando do recebimento do Prêmio Rómulo Gallegos
Obs.: As citações de Calvino e Bolaño constantes neste post foram retiradas deste trabalho de Rafael Gutiérrez Giraldo.
1. Flávia
agosto 1st, 2008 �s 0:58 edit
E porque movido pela paixão! ora, Milton. Paixão selvagem de pensador selvagem pela literatura do autor de detetives selvagens! Elementar!
Não sei o livro, mas a resenha é brilhante, caríssimo! Parabéns!
bj, f
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2. Meg
agosto 1st, 2008 �s 1:45 edit
Putzgrilo!
Nem a propósito, nem que fosse de propósito, estou fazendo uma apresentação (ou prefácio) para um livro e estou me socorrendo de Blanchot, exatamente como o Rafael Gutierrez Giraldo.
Agora, uma coisa importante: eu pensei ter há algum tempo antes, lido um post teu sobre Bolaño, que achei fantástico.
Não sei se o reaproveitaste agora, nestes cinco outros, magníficos também.
Uma coisa, porém, é certa: lembras aquela história da “polinização musical”? Não poderia classificar de outra forma, o que vens fazendo com Bolaño. E olha que isso está muito longe de ser de pouca monta. E olha que que fazer isso num país como o nosso, em que dizem que se lê pouco e mal, mas todo mundo já leu tudo (ou pelo menos diz que leu) esse teu feito é admirável, absolutamente impensável, caso não o visse realizado, aí, escrito, publicado.
Mais uma coisinha: me criei na literatura latinoamericana, o amor pelos europeus veio antes na adolescência com Kafka e Thomas Mann e daí deu lugar a Garcia Marquez, Cortázar (de quem creio ter lido praticamente tudo) Vargas Llosa -independente da conotação política é muitíssimo bom escritor quando não se repetia- até os menos votados como Arreola, Manuel Scorza, José Donoso (com seu magnífico livro “O Obsceno Pássaro da Noite – se não leste, corre e lê)- o Osvaldo Soriano, sim por que não?, e os grandes como Juan Rulfo e Fuentes. Borges não conta: é mais que demais.
Com a Filosofia, depois, fiquei mesmo apegada à Poesia e caí de boca;-) nos clássicos. E o que daí decorre.
Tudo isso para dizer que encomendei meu(s) Bolaño, agora há pouco, antes da greve dos Correios, e ainda estou esperando.
E se vou lê-lo(s) devo-o inteiramente a ti!
Obrigada, Milton. Muito obrigada.
Foi uma bela exegese, uma completa apresentação, um trabalho de verdadeira sedução.
É por isso, de resto só por essas coisas valiosas, que aconteça o que acontecer jamais posso deixar de dar a devida importância aos blogs. Como o teu , claro.
bj
M.
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3. Milton Ribeiro
agosto 1st, 2008 �s 9:17 edit
Puxa, obrigado, Flávia.
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4. Milton Ribeiro
agosto 1st, 2008 �s 9:17 edit
Ah, exato. E pela paixão, sem dúvida!
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5. Milton Ribeiro
agosto 1st, 2008 �s 10:07 edit
Meg.
A informática é meio burra e deixou teu comentário para aprovação… Vi-o apenas agora.
Obrigado e, sim!, a parte III desta série tinha sido publicada no outro blog em 2006 (?).
Beijo.
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6. Flávia
agosto 1st, 2008 �s 11:22 edit
Mudando de assunto…
há uns 2 ou 3 dias, eu acho, eu entro aqui com o coração cheio de (aflições por outros motivos), mas sempre cheia de pressa e vejo esse coração aí em cima e do lado envolto em espinhos (numa das figuras, dentro de um cabeludo fazendo paz e amor). Eu entro e saio daqui pensando na próxima eu clico para ver o que é essa gozação. Talvez por hoje andar com mi corazón ainda mas espinado, cliquei! Cara, que é isso? Campanha Nacional de Divulgação da Devoção ao Sagrado Coração de Jesus? É sério! E, olha só:
“As pessoas que propagarem essa devoção terão os seus nomes inscritos para sempre no meu Coração”.
Isso parece aquele lance de venda de indulgência! Mas é de graça! Vou receber a imagem pelo correio, de graça, e olha o detalhe: a imagem “já benta”!
Devoção selvagem… mi corazón espinado agradece.
bj, f
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7. Milton Ribeiro
agosto 1st, 2008 �s 11:30 edit
Eu, tão devoto, fico com o coração alegre de ver Cristo em meu blog.
Bem, o OPS, principalmente após a mudança de servidor, tem que fazer frente a seus custos — a coisa está enorme — e precisa faturar. Então, ao lado de um post anti-religioso e anti-clerical, ao lado de alguém que rima religiosidade com insanidade e filha-da-putice, teremos Ele, o Salvador.
Flávia, fique na Paz de Cristo. Saravá!
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8. Flávia
agosto 1st, 2008 �s 12:32 edit
O pensamento selvagem prima pelo pensamento mágico! Que venham as chagas e suas bençãos!
E que nosso senhor Milton Ribeiro seja louvado!
bj, f
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9. Meg
agosto 1st, 2008 �s 13:20 edit
Sim , Milton, mas não será o fato informático;-) (btw, observa sempre pois outros comments podem estar ou não em moderação) que irá apagar a essência do que comentei.
E mais: a referência a já ter lido um post antes só reforça o que digo: foi a partir de um post teu que conheci o Bolaño.
E isso pode ter acontecido não apenas comigo.
Qundo saí daqui ontem, após ler os posts todos fiquei pensando nas repetições e vários narradores à maneira de Rashomon, mas também à maneira de Italo Calvino no seu fantástico e brilhante e inovador(embora tão pouco valorizado, isto é subestimado) “Se um viajante numa noite de inverno”.
Aliás o melhor de Calvino é o que foi *PUBLICADO* antes da infortunada viagem aos USA.
E sempre é bom saber que “Seis propostas..” era um texto acadêmico, teorizado para um evento literário. Não é um texto literário, se vale o oxímoro.
Outro beijo
M.
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10. Milton Ribeiro
agosto 1st, 2008 �s 15:19 edit
Céus, Meg! “Se um viajante numa noite de inverno” é uma obra-prima! O melhor Calvino, em minha opinião!
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11. isaac castro
agosto 2nd, 2008 �s 20:14 edit
valeu, milton. grande abraço.
vou comprar os noturnos no chile e as putas assassinas, que ainda não tenho. existe a esperança de todos os seus livros serem traduzidos?
***
uma dúvida. o que será que bolaño achava de juan carlos onetti? é um dos meus escritores favoritos. gostaria de saber o que ele achava, caso ele disse alguma coisa sobre onetti, já que ele desmistificou os gênios de papelão latino-americanos. enquanto os bons, morreram pobres, mas fortes( rulfo, córtazar, borges, onetti e poucos outros)
isaac.
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12. Cláudio Costa
agosto 3rd, 2008 �s 14:06 edit
Tô de volta. Começo, agora, a atualizar as leituras.
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13. Milton Ribeiro
agosto 4th, 2008 �s 21:44 edit
Bem, Isaac, não sei te responder. Apesar disso, arrisco-me: ELE ADMIRAVA ONETTI!!!
Só pode, né?
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14. gugala
agosto 7th, 2008 �s 10:18 edit
milton, “matou à pau e mostrou o foie gras.”
abç
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Olá Milton,
passo aqui para deixar meu agradecimento sobre os posts, pois foram eles que me motivaram a ler Los Detectives Salvajes no mês passado. Eu tenho aquela Ñ com o Bolaño na capa, mas o estímulo de encarar decididamente os detetives veio desta série de posts.
Além disso, não sei se você viu Coraline, que está em cartaz nos cinemas, mas o pai da menina é a lata do Bolaño. Dá uma olhada nesse post meu: http://vinhal.blogspot.com/2009/02/coraline-tinajero.html
Abraços,
Vinhal
Eu adoro esse tipo de livro!Fabiana!