É sabido que a leitura de livros russos oferece alguma dificuldade com os nomes dos personagens. Nas relações formais ele utilizam o sobrenome; nas informais, o nome; nas íntimas, um diminutivo carinhoso e, quando ficam irritados, vão de nome e patronímico. Li rapidamente, sempre em transportes coletivos, a peça A Gaivota de Tchékhov. Mesmo com a facilidade de ter sempre indicado o nome de quem fala, fiz a habitual confusão, toda hora tinha que voltar um pouco para me achar, pois os personagens falavam muito uns nos outros com diferentes nomes, sempre cheios de letras. (E a última vez que resolvi simplificar um sobrenome cheio de consoantes deu no que deu, né?).
Mais um parêntese: (comprei o volume na Beco dos Livros. Fora buscar o Auto da Barca do Inferno para minha filha e dei de cara com uma edição portuguesa de meu autor predileto. A Gaivota e O Cerejal (no Brasil, O Jardim das Cerejeiras) por dez pilas. Editorial Presença, Lisboa, 1963. Na hora de pagar, o dono da Beco me disse que o site MundoLivros é melhor do que a Estante Virtual porque na MundoLivros dá para pagar direto com cartão, como fazemos na Amazon e nos sites de grandes livrarias. Então, os portoalegrenses já sabem: a primeira opção é a Ventura Livros — Rua Marechal Floriano, 439, Centro, Fone 3226.7075 –; a segunda, a MundoLivros). Prometo que vou até o final sem mais parênteses, tá?
Apesar dos personagens debaterem-se com assuntos íntimos e problemas um tanto antiquados, A Gaivota nos dá um quadro muito claro de uma situação histórica. Uma vez, descrevendo os contos do Tchékhov, o escritor e tradutor Rubens Figueiredo disse que ele consegue nos sugerir, através de fatos e diálogos aparentemente simples, outras camadas de experiência. Isso é ainda mais supreendente se pensarmos que Tchékhov é um Bill Evans, isto é, não é um pianista cheio de dedos, via de regra é econômico, discreto. E esta magia parece amplificada em suas peças de teatro. São “audíveis” os subtextos que se movimentam durante os diálogos, ora indo ao encontro da fala e das opiniões que são ditas, ora indo em direção contrária, comentando silenciosamente sua tolice e inutilidade.
O último ato de A Gaivota passa-se dois anos depois da ação dos primeiros atos. É o clássico: na primeira parte é montado cuidadosamente um conflito que explode na tentativa de suicídio de Treplev, após uma desilusão amorosa e literária. Dois anos depois, temos um Treplev razoavelmente bem sucedido, porém casado com uma mulher que despreza, ainda sofrendo com a indiferença da mãe, uma atriz que só pensa em si e em manter seu caso amoroso — de uma forma muito parecida com a personagem de Debra Winger no recente filme O Casamento de Raquel. O desenlace é o desenlace que não vou contar. É simples e não é. Há todo um contexto que parece incontrolável como um mar em movimento. Não é o mesmo mar que sepultou os amigos de minha mulher — Rino Zandonai, Giovanni Lenzi e Luigi Zortea estavam no tal voo da Air France — na volta de Gaspar (SC) para a Itália, eles que tinham vindo rapidamente ao Brasil fazer o repasse de 22 mil euros para vitimas da enchente de 2008. O imprevisível mar de Tchékhov é aquilo que permanece em nossa mente após a leitura, levando vidas de cá para lá, ao acaso, à toa, sem finalidade alguma.
Hoje estou o rei dos tergiversadores.
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Costumo acompanhar meio de longe o grosso da produção literária nacional e de perto seus principais autores. Sei que O último a sair acende a luz é digno de publicação em qualquer lugar do planeta. Mas recuemos…
Marcos Nunes é um habitual comentarista deste blog. Ele me enviou seu romance. Se eu quisesse, leria. Comecei a gostar lá pelo terceiro capítulo. Na verdade, comecei a gostar muito, fato que persistiu até a última linha de um “.pdf” de letra horrivelmente pequena, pois o Marcos quis que eu economizasse em papel e tinta, pensando que meu oftalmologista fosse mais barato. A propósito, não sei dizer-lhes o tamanho que o livro teria com caracteres de tamanho normal, mas acho que dobrariamos as 139 que li.
O que faz um romance ser lido num concurso? Eu suponho que seja um bom começo. É como na Justiça. Um psiquiatra forense me disse que os juízes leem menos que 5% de um processo, eles dão só um “vistaço” (gíria utilizada pelo mesmo profissional). Isto é, informam-se sobre o que desejam os contendores, dão uma olhada nos títulos, no que está em negrito e julgam sem atentar a muitos detalhes. Os julgadores de concursos provavelmente agem da mesma forma. Se o começo não agradar, adeus. Só pode ser este o motivo pelo qual o romance de Marcos Nunes não se classificou nem para a segunda fase de um concurso literário: o primeiro capítulo não é digno do restante do romance. Então é provável que, assim como a maioria dos processos, seu texto tenha morrido na desídia do julgador.
Mas depois a coisa engrena. E como! Ontem, o Marcos escreveu a seguinte frase num comentário: “…só a ficção arranha a verdade. O resto é equívoco”. Tudo a ver. O último a sair acende a luz é um romance que cerca algumas verdades através de um grupo bastante grande de personagens, todos muito próximos do dinheiro — alguns nadando nele — do governo e de sua periferia: os meios de comunicação, os favores, os grandes e pequenos rolos. Se eu escrevesse que quase todos os personagens estão fazendo algum gênero de filha-da-putice, estaria dando uma impressão um tanto tosca de um texto muito sofisticado, então digo que em quase todos eles parece haver um filho da puta que acabará dando o ar de sua graça se tiver chance. Não sou muito de rir enquanto leio, mas Marcos conseguiu me arrancar algumas boas risadas, principalmente com as referências irônicas que faz a seu próprio texto, quase um ritual de fim de capítulo.
É um excelente livro que não busca desvios naquilo que conta. O que tem de ser dito, é dito com as palavras corretas e verossimilhança. O sexo é sexo e as intenções são as intenções. Naturalismo? Não, nem perto. O cinismo de alguns personagens e de suas trajetórias é tal que torna-se outra coisa. Não me façam recorrer aos gregos para explicar que uma das formas de se descaracterizar algo é recorrer à hipérbole, ou seja, intensificá-lo até o inconcebível. É o que ocorre aqui. A sinceridade, a clareza de alguns acontecimentos narrados pelos protagonistas, de seus planos e propósitos é tão clara que torna-se representação das posturas mais comuns de quem, afinal, manda em nós.
Cada capítulo, à exceção do último, foca sua atenção em um grupo de personagens cujo traço como é a fome, seja por dinheiro, poder e eliminação de obstáculos, seja pela Santíssima Trindade: beber, comer, foder. Isto segundo o autor, claro.
O Marcos me disse que eu me irritaria com o final do livro, onde ele dá um fecho nada tchekovniano à história. Nada disso. O final, apesar dos personagens não terem nada em comum com os de Truffaut, parece o fechamento de um de seus filmes. Câmera no alto, música paradoxal de Corelli, narração em off contando-nos o destino dos personagens, um homem à morte e uma última auto-referência do texto. Olha, gostei muito. Não, não serei processado por ter lido este.
Prezado Mr. Ribeiro, como vai?
Conheci seu blog, excelente, por meio do amigo Grijó, prata da casa.
Gostaria de informar que eu e o Jazzseen estamos a seu lado na gigantesca batalha que se inicia nos tribunais. Colocamos a seu dispor nosso blog, um defensor público, duas espingardas papo-amarelo e um cantil da segunda guerra, tudo na esperança de que a liberdade de expressão vença a sangrenta batalha contra Mrs. Choshotowiskaya.
Já enfrentamos animais assim perigosos, sedentos por grana. Mas nunca um que escrevesse tão mal. Então, muy cuidado!
Grande abraço, JL.
Obrigado, JL!
Então, totalmente off-topic, mas eu escrevi um post sobre o teu processo.
Não sei se vc conhece o meu blog. Vira-e-mexe eu falo de questões pertinentes ao feminismo lá. E, nesse post, resolvi discutir se a acusação de misoginia por parte da autora, contra o trocadilho com o sobrenome dela, procede ou não procede. E o texto tem algumas perguntas para você e tal.
Enfim, gostaria que vc aparecesse lá para participar da discussão e dar os seus tostões, claro.
http://marjorierodrigues.wordpress.com/2009/06/09/uma-ressalva-para-milton/
Beijo.
Marjorie,
respondi lá no blog, OK? Meu comentário deve entrar após tua moderação.
Comentar meu livrinho, ok, mas depois do Tchékhov, é maldade, deboche, ou o que? Resta-me, é claro, agradecer-lhe. És um dos meus dois leitores.
O Tchékhov mandava sempre cortar o começo e o fim dos contos, depois enxugar o meio. Descrições excessivas ou sumariamente verdadeiras. Deveriam ser mantidas as falsas, as mentiras. As confissões revelam não o que revelam, mas o que aquele que confessa procura esconder através de sua confissão.
Queria ser Tchékhov, mas sou o Marcos Nunes. Tchékhov é um retrato na parede de minhas pretensões, e como dói.
Não foi deboche, não. Mas sabia que escreverias isso…
O importante é ter escrito um texto franco sobre um livro do qual gostei. O importante foi não envolvido amizade na coisa. Detesto essas troquinhas de favores. Aliás…
Abraço.
Três, Marcos, três…
Você leu o livro?
não. Ainda.
refiro-me como ‘leitor’ de comentários. ahaha. abç
Olha, fiquei com vontade de ler o romance do Nunes. Seus comentários, realmente, tem mantido esse blog no nível que imagino ter sido o pretendido por você, Milton. Pelo que você resenhou, o livro grassa as duas vertentes psicológicas que o Nunes vem demonstrando aqui: uma crueza de proposições negativas sobre a existência, com um humor meio niilista; e, quando pretende escrever comedidamente, uma erudição de ensaísta que mostra que tem nos enganado sobre suas antipatias literárias e cinematográficas, pois basta citar um autor (John Milton, Céline…) ele prontamente afirma não gostar. Suspeito que, secretamente, Nunes se refestele com todas essas sumidades do passado, conhecendo-as bem, e, acometido por um compulsão de ver a insuficiência mesmo em todas as altas manifestações do espírito, se protege contra o engodo de ser levado na conversa e gastar indevidamente o seu deslumbramento. Aliás, do que ele me parece se proteger mais é justamente da capacidade de se deslumbrar com alguma coisa, mantendo uma firmeza estóica diante os sofrimentos desta vida com os quais ele já está suficientemente familiarizado. E é isto que me desperta o interesse de ler esse seu livro, por que a julgar desde já pelo título, Nunes deve ter, de uma maneira ou outra, deixado transparecer aquela sensibilidade latente que ao longo das páginas derruba toda pretensão de fortaleza e revela o elemento humano, e a sua ternura inerente. E não ter sido classificado no concurso é um ponto gigantesco a favor dele. Eu ficaria aterrorizado se, algum dia, me concederem o Jabuti.
Abraço.
Não sei, acho que o Marcos é apenas exigente — inclusive consigo mesmo — e realista.
E peça o livro para ele, MAS COM CARACTERES GRANDES!
Como exercício ficcional a análise do personagem Marcos Nunes é boa. Também gostei da inauguração do “não li mas já gostei”. No mais, continuo nutrindo monumentais dúvidas. Contudo, com minha disposição futebolística, vou na base do “deixa que eu chuto”. A bola é redonda e guarda as dúvidas nela, enquanto gira. Mas isso tem a ver com o que? Com outra coisa, mas deixa pra lá. Tô tentando digerir uns troços antes do almoço, e palavras causam indigestão. Mesmo as mais condescendentes.
Viram!
Charlles, eu tô brincando; aliás, a Rachel me ligou sobre uma questão que não era nada além de outra brincadeira, e tal… Você leva muito a sério o que lê, mas presta atenção: o cara que tá escrevendo não o faz com tanta seriedade, faz com leveza, entre uma tarefa e outra e… se instala uma meia confusão totalmente fora de propósito. Na boa, achei a análise psicológica divertida, só que achei a cara de um personagem, não a minha. Só isso. O resto foi brincadeira com o passado e com outras particularidades minhas, né.
Taí, além do Elie Wiesel, ele gosta do Tchékhov. Mas, Nunes, mencionar o Faulkner como sendo apenas “bom escritor”, aí já é demais!
Bom, eu não falaria mal de Faulkner, mas entendo quem não gosta. Mais: acho até que SEI porque alguém pode não gostar.
Também entendo quem não gosta de Joyce, apesar de eu adorá-lo.
A gente tem que conviver com as discordâncias. O que fazer?
(Ulisses, na tradução da Bernardina, é um dos cinco melhores livros que já li. Na do Houaiss, um dos piores que não consegui passar da página cem)
Ha,ha,ha,ha!
Oh, Marcos. Sem stress! Não levo tão a sério não; aliás tal análise não passou de um rápido exercício de vaidade literária. O charlles campos que escreveu tampouco corresponde ao verdadeiro. Mas você confundiu um ato de gentileza com condescendência. Sem pobrema, mano.
Tchéchov (ou Checov, Tchéckhov,etc) foi o primeiro russo que li. Aliás, um volume de contos selecionados dele, junto com O Muro e O Processo, formaram os primeiros livros sérios que li, aos quinze anos, numa bucólica bibliotecazinha de São Sebastião do Paraíso, em MG. Desde o primeiro conto já vi que seria um casamento pra vida toda_uma peçazinha ilusoriamente inofensiva em que o narrador brinca com os sentimentos de uma moça, ao descerem de trenó, em que diz “Nadja, te amo!” no ouvido dela nas inúmeras vezes em que ela repete a descida, até que, convencida que seu admirador é o vento, ela dança, leve e feliz. (Cara, faz tempo que não leio Chécov, e com certeza vou retirá-lo da estante hoje!)
Bela comparação: Chécov com Bill Evans. Só que, cada conto de Chécov é All Blue, Flaminco Sketches e So What!.
Coincidência comentarem sobre “Ulisses”, do Joyce. Li um artigo, na Carta Capital desta semana, sobre uma análise feita por um irlandês, cujo nome esqueci agora, a respeito do livro. Muito interessante porque o cara desmistifica toda a elocubração desenvolvida até hoje sobre a obra. O autor se pergunta porque as pessoas a quem o livro é dirigido, na sua origem, nunca conseguiram lê-lo e apreciá-lo. Segundo ele, Joyce escreveu uma ode a Dublin, sua cidade natal, e a crítica a transformou numa obra hermética, acessível a poucos iniciados. Vale a pena ler o artigo.
Eu sou o típico “traça de biblioteca” desde que aprendi a ler, mas confesso não ter gosto pela literatura que trata da “condição humana”. Isso eu vejo todo dia, das 08 às 18 (normalmente. as vezes o horário se estende muito). Sou capaz de apreciar Kant, mas não aguento Dostoievski, por exemplo. Defeitos, defeitos…:)
Bem, Jorge. Eu acho Ulisses um livro trabalhoso por sua linguagem, mas incrívelmente divertido e sexual. Aliás, a censura que sofreu foi por aquilo que tinha de sexual, nunca por outra razão.
A forma indireta com que Joyce conta a história, utilizando referências à Odisséia pode muito bem ser ignorada pelo leitor, que pode ficar com aquilo que o livro tem de melhor: a linguagem e a diversão.
Condição humana? Não, em Ulisses há pouco.
Abraço.
Vou tentar achar a íntegra do artigo no site da Carta Capital. Se vc permitir, posto aqui. Acho que é um bom tema para discussão, principalmente para vc e a maioria dos comentaristas do blog, que tem uma tremenda bagagem literária.
Estou desconfiado que o Charlles e o Marcos estão se enamorando.
Não sei, não. Não sei, não. Não sei, não.
Sabe aquela coisa, bate que eu gosto?
Te admirei desde a primeira linha…
” Nunes deve ter, de uma maneira ou outra, deixado transparecer aquela sensibilidade latente que ao longo das páginas derruba toda pretensão de fortaleza e revela o elemento humano, e a sua ternura inerente.”
“Na boa, achei a análise psicológica divertida, só que achei a cara de um personagem, não a minha. Só isso. O resto foi brincadeira com o passado e com outras particularidades minhas, né.”
Não sei, não. Não sei,não. Não sei, não.
o que você acha, tem coisa ou não tem?
Eu sou o ativo.
Observações técnicas:
1) Não tenha orgulho de ser ativo; ativo ou passivo, ambos são homossexuais;
2) De acordo com um amigo gay, tais classificações são anacrônicas. Não existe mais o ativo e o passivo, todos são participativos;
3) Não há qualquer problema na manifestação de carinho por pessoas do mesmo sexo, mas manifestações de ciúme, como as de Ramiro, revelam uma clara disposição de interferir na relação para retomar as rédeas (hum…) da situação dada (hum-hum…).
Marcos, já passei dessa fase. Agora vivo uma relação homoerótica estável. E você tem razão: não existe mais essa coisa de ativo ou passivo. Às vezes se é passivo. Em outras, ativo. Tudo depende do dia e da hora: não é verdade, MILTON (meu periquitinho daltônico da genitália grande…)?
Marquinhos, querido, se você não se importar, tava pensando em chamar o Ramiro prum Ménage à trois neste dia dos namorados. Presente!
Reafirmando: eu continuo sendo o ativo!