A Autocensura

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Post publicado em 24 de maio de 2007 e republicado agora com adaptações e cortes. É que ontem soube de mais um processo de separação que utiliza como provas o conteúdo de um blog. Desta vez de uma mulher. Quando publiquei este post, recebi dois comentários que achei notáveis e os publico ao final do post.

A moda está pegando. Como todos os posts confessionais dizem a verdade (?); então qualquer advogado lê um texto que escrevemos e o utiliza num processo familiar. Mas não é bem assim. Acreditar em nós é perigoso por várias razões.

A primeira razão é a mais humana: num texto confessional e mesmo naqueles de aparência visceral, o blogueiro ou escritor está publicando o que decidiu publicar. Os posts são seletivos como nossa memória, que arquiva os acontecimentos com alterações que podem deixá-los no formato de livros com belas capas para serem colocados na estante — podendo descer dela a qualquer momento — , ou ficam impressos com sangue, lágrimas ou lama para reaparecerem quando do Grande Ressentimento ou da Grande Irritação. Há infinitas formas de arquivamento, tudo depende do caso contado e da personalidade e honestidade de quem conta. E vêm misturados com sentimentos. Não são como os antigos diários, são diários ou textos ou ficções ou resenhas ou crônicas para serem expostas e, portanto, recebem tintas de exagero, contenção, poesia, educação, correção, escatologia, putaria, etc. Respondam: são prova de alguma coisa? Não há outro modo de se produzir provas?

Uma vez, estava no telefone conversando com o Carpinejar e lamentei sinceramente alguns graves problemas que o poeta tinha relatado em seu blog. Ele me respondeu:

— Problemas? Que problemas?
— Pô, cara. Aqueles lá com a tua mulher.

Ele ficou hesitante e, inesperadamente, estourou numa gargalhada. Depois, respondeu:

— Então, tu acreditaste naquilo? — disse ainda rindo.
— Mas…
— Milton, é tudo mentira. Teve gente que me ligou, ligaram até para a minha mãe perguntando. É normal, já aconteceu muitas vezes. Eu uso pessoas da vida real, só que as histórias são inventadas.

Se houver difamação é outro problema — e isso o Fabrício não fez. Estamos aqui discutindo a veracidade de textos que estão entrando em processos judiciais. Por quê?

Anteontem, uma amiga que descreve seus casos amorosos num blog foi acusada de puta e vagabunda num processo. O pai de seu filho quer a guarda da criança. As provas? Ora, os poemas e textos publicados em seu blog, que narram “experiências diárias”. Piada, né? Suas experiências diárias ocorrem na frente do computador, sozinha, insone, enquanto o filho dorme. Senão não passaria tantas horas no twitter…

De minha parte, já falei o que considerava as maiores verdades, procurando ser frio, claro e racional, mas também já casei com Juliette Binoche (nosso caso era puro sexo e durou anos, nunca tivemos problemas, apesar de eu não falar francês), já mantive diálogos com outros Miltons que eram eu mesmo, só que uns anos antes ou depois e ,ah, no meu aniversário do ano passado estava namorando Sophie Marceau, lembram? (Sempre o problema do francês, merde!) É claro que estou utilizando exemplos extremos nos quais só um idiota acreditaria, porém como ficam os casos intermediários, aqueles em que as confissões são romanceadas com jeito e cheiro de verdade, mas que talvez sejam apenas desejadas?

Minha ex fez isso num processo. Lá, havia trechos escolhidos deste blog. Em um deles, o mais importante, meu filho protege sua mãe de mim. Estou a sós com ele. Duas frases são trocadas num post sobre rock. Eu começo a falar mal de Pâmela (ou Suélen, não lembro) e ele interrompe dizendo que aqueles são problemas nossos. Só. Era uma forma de mostrar que o Bernardo sabia das coisas. Ele sabe mesmo e minha intenção apareceu nos comentários dos leitores: disseram que ele tinha mais bom senso do que eu. Porém, no processo, foi uma atitude de mau pai… Claro, tive de responder com o blog inteiro, com todos os posts. Na metade do ano passado eram mais de mil páginas. Muita gente sabe de minhas opiniões sobre Suélen (ou seria Pâmela?), mas não sou louco de preencher a vida de meus filhos com reclamações contra sua mãe. Eles me detestariam. (A propósito, as mulheres do “Porque Hoje é Sábado” foram para o juiz? O doutor achou essa aqui gostosinha?)

Bem, mas há mais: o fato de manter um blog “bem montado” – expressão de sua advogada – seria prova de que passo muito tempo trabalhando nele e, se acrescentarmos a isto algumas viagens que faço, pronto!, chegamos à conclusão de que tenho largo tempo livre e um estilo de vida, digamos, confortável. Lendo aquilo, senti-me como um malandro da velha guarda carioca.

Cervantes reclamava que não lhe davam muito dinheiro, mas admite que, se lhe dessem, iria se divertir mais e escrever menos. Queixava-se que seus mecenas sabiam disso e o mantinham à mingua. Interessante. (Oh, sei. Comparar Milton Ribeiro e Miguel de Cervantes é caso de internação.)

Neste ínterim, tenho exercitado a autocensura. O blog piorou, também sei. Entre alterar meu texto em função de um advogado e não publicá-lo, tenho escolhido a segunda opção. Então substituo o post previsto por algo sobre futebol ou tiro sarro da Igreja Católica. Afinal, o Papa não pára de dizer besteiras nem o Inter de fazê-las. Permanecerão no micro até não sei quando. Ou será que tudo isto é mentira e não tenho textos por publicar nem ex-esPosa? (Pronunciem esPosa com pê cuspido, por favor.)

E agora, publico este ou não? Assim mesmo, cheio de parênteses?

Comentário do Dr. Claudio Costa:

Já aprendi – com Lacan, veja só! – que o significado do que se diz é dado por quem escuta e não por quem fala. Freud, muito antes, já descobrira que a chave da interpretação está com o analisando, não com o analista. Este, quando não atrapalha, oferece a escuta e… aí o analisando diz e exclama: -“Eu sabia!”. Assim vivemos: num mundo imaginário onde até mesmo a imagem de si mesmo é constructo imaginário, putz! Por isso acredito piamente em TUDO que você escreve – o que é a mesma coisa que dizer: “não acredito em NADA” disso.

Comentário de Maria Elisa Guimarães, a Meg:

MILTON, Olha, não entendo de muita coisa, mas algumas, as de que vou falar aqui, pelo menos, ENTENDO e não é POUCO, entendo muitíssimo. 1- Muito embora, hoje em dia, um email seja aceito com prova num processo e qualquer bom advogado já saiba disso – felizmente, ainda não mudou absolutamente NADA, a respeito da questão da VEROSSIMILHANÇA, conceito este que não significa e à vezes é muito diferente da VERDADE ou pelo menos da *relação* desta com a realidade.. 2- Textos literários ou poéticos trabalham com o simulacro, (e muita gente desconhece o real sentido dessa palavra) e não com fatos. O *simulacro* , grosseiramente simplificando, é a MÍMESE, uma espécie de representação livre do que se viu ou se vê na realidade. Nesse caso, seria muito bom que todo mundo lesse as tragédias gregas. Há muito o que aprender lá. Por outro lado, uma crônica, um conto, um romance, ou um texto que se pretenda literário, tanto que se publica, não é notícia , é literatura!! Boa ou má, mas sempre literatura e não jornalismo investigativo. Nem depoimento. 3- E mais uma coisa, e disso entendo mais ainda: o “mundo não é dos inocentes”, e definitivamente, “justiça é balela, é conto de fadas”. Parece, só parece, pelo que tenho visto, na História antiga ou recente, que sai-se melhor SEMPRE quem está ou ao lado dos poderosos ou ao lado de quem lhe oferece mai$$$. Ou dos que parecem poder oferecer. Espero que te saias muito bem nesse caso que já se arrasta (e estou falando na condição de leitora e portanto quem lê teu blog sabe algo sobre esse caso, pelo menos o que permitiste que soubéssemos). Um dia as chateações todas acabam! Um dia tudo acaba. E de preferência, antes que nos tornemos ressentidos ou amargos. Solidarizo-me contigo: eu sei o que é a injustiça: dá vontade de morrer. Um beijo M.

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8 comments / Add your comment below

  1. Rapaz, EXCELENTE a do Cervantes mas… NÃO ESPALHA! NÃO ESPALHA!!

    (E que a golpes de P, de Pé, de Pão, de Parecer Poder
    essa manhã desanoiteça, o chê!)

  2. Esse é um dos problemas de uma mídia que ainda não está definida. O que é um blog? Confissão, reportagem, literatura, besteirol? Lembre-se que um diário_ o diário nos moldes tradicionais, feito em livro particular_ inúmeras vezes já contou como prova cabal em processos judiciais. Cadernetas de balanço de compradores já colocaram muito traficante na cadeia. Numa recém condenação aqui em Goiás de um pedófilo, valeu-se apenas do diário sentimental de uma garota de 9 anos, em que, ao lado de desenhos da Barbie relatava-se circunstâncias repletas de dubiedade entre ela e seu padrasto.

    Cabe aqui uma acusação batida de nosso maleável código penal, ou civil, em que os doutos procuradores querem a coisa desprovida de qualquer sutileza para alimentar as estatisticas de eficiência?

    Ontem li um quadrinho do Robert Crumb, em que ele sequestra ninguém menos que Donald Trump, faz tortura psicológica contra o milionário e acaba por o afogar numa privada. Na conclusão, seu amálgama ficcional velho e encurvado diz: só aqui na América podemos fazer isso sem sermos perturbados pela lei. O máximo que pode nos acontecer é o Trump determinar que nunca trabalhemos mais em qualquer revista num raio de Los Angeles ao Alasca.

      1. E os decendentes das vítimas, Ramiro? Os tão belos quanto o Albert e tão inteligentes quanto a Monroe.

        Brincadeira. Dizem que a MM tinha QI privilegiado.

  3. O que eu percebi é que você está sendo excessivamente rigoroso em sua autocensura. Não tem nada de processável criticar posicionamentos públicos acerca de questões políticas, sociais ou estéticas. Ironia até vale, só não valem trocadilhos infames. Ningiém é obrigado a gostar, por exemplo, de um crítico de cinema que não compreende a matéria mesma de sua crítica. Ele pode ser nomeado e criticado pelas coisas que escreveu, destacando-se parte dos textos dele e suas concepções, sem problema algum. Insultos não devem ser nem cogitados, que dirá publicados. Mas você imagine se nós trocamos ideias acerca de qualquer coisa e uma das partes, por se considerar excessivamente vilipendiado, resolve processar o outro… É possível, há gente louca para tudo, até para referendar mentiras absurdas, defendê-las com garbo e irritar-se quando é contraposto…

    O que existe é o assédio moral via Internet, com implicações absurdas, atos grotescos de quem perde mulher, marido, cliente, emprego, etc., e utiliza o meio ccomo forma de vingança torpe. Daí qualquer manifestação em blogs, por mais inocentes que sejam, ou mero debate de ideias, termina como material de prova… é o cúmulo.

  4. Milton, estamos na Era do Politicamente Correto. Dizer que bebe, que fuma, que não gosta da ex, que fala palavrão, que gosta de bunda grande, que toma cachaça.. tudo te torna um marginal, um proscrito, um inimigo da nação.

    Lembra que usaram o Orkut contra mim em meu processo (aliás em dois, separação E guarda) mas o bom senso prevaleceu, porque se estamos numa nação livre, eu ainda poderia fazer uma foto com um amigo fantasiado no carnaval e nem por isso viraria um travesti.

    Agora, o que é muito curioso, é que ao mesmo tempo em que é necessário uma autocensura, ou um autocontrole, as pessoas (o mercado) pedem e valorizam quem é capaz de assumir e defender um ponto de vista qualquer, além da cômoda neutralidade. Ou seja, é mais dos modelos de ideias paradoxalmente opostas a que somos obrigado a (não) entender e utilizar.

    Mas quer um conselho que fará toda da diferença?

    Mude de time. 😀

    Abs!

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