Dmitri Shostakovich (I)

Pois hoje é o Dia Mundial da Música! Então inicio uma série sobre Dmitri Shostakovich que publicarei a cada sexta-feira, OK?

A música pode ser amarga, jamais pode ser cínica.

DMITRI SHOSTAKOVICH


Muitíssimas vezes, quando ouvimos Shostakovich (1906-1975), sentimos certa estranheza, notamos intenções ou um torna-se palpável uma enorma revolta e desconforto. Percebe-se que o drama e os contrastes apresentados referem-se a acontecimentos externos, sejam de ordem pessoal ou não. Em contato com essas obras firmemente assentadas sobre os ombros de Bach, Beethoven, Mahler, Tchaikovsky e Mussorgsky, somos, de alguma forma muito particular, solicitados a conhecer mais das circunstâncias em que foram compostas e da vida pessoal do compositor. Isto já pode ser notado desde a sua Sinfonia Nro. 1, composta antes dos vinte anos e que o deixou célebre internacionalmente antes mesmo de finalizar seus estudos.

Vamos começar esta série pela parte mais difícil: as relações do músico com o poder. Aqui há três pontos importantes para a compreensão de Shostakovich. O Ocidente costuma simplificar os fatos conferindo ao autor a condição simples de mártir e dissidente do regime. Tais “enganos” datam dos tempos da guerra fria e persistem até hoje. Aqui, procurarei equilibrar as coisas através de leituras mais recentes que fiz. Procurarei expor os fatos políticos e tomarei partido apenas da obra do compositor, a qual amo apaixonadamente.

O Comunista: Shostakovich foi, certamente, um comunista sincero, não obstante suas divergências com uma doutrina oficial que nem sempre seguiu um caminho retilíneo. Sem seu engajamento nítido em favor dos princípios originais que criaram a União Soviética, seria impossível inventar o sopro lírico e épico que atravessa algumas de suas composições. Mas há o verdadeiro e o forçado, ou o espontâneo e a encomenda, ou a alegria e  o sarcasmo. A segunda de suas sinfonias (A Revolução de Outubro, de 1927), apesar de fraca, pertence às obras autênticas, já a décima-segunda (À Memória de Lênin, de 1961) parece ter sido obra de um autor amargo, sarcástico e que  estava mandando provisoriamente sua obra às favas.  No início de sua carreira de compositor, Shoatakovich tinha aquele entusiasmo que foi próprio de uma geração de criadores que — como Eisenstein e Maiakovski — , em determinado momento, acreditou ser para amanhã o paraíso terrestre, antes de renunciarem a suas esperanças, às vezes de forma trágica. Não obstante o que era dito durante a Guerra Fria, Shostakovich não estava preso à União Soviética e teve inúmeras oportunidades de fugir. Quando sua doença começou a prejudicá-lo como intérprete, ele estava fora do país, também esteve algumas vezes com Britten na Inglaterra … Ou seja, Shostakovich teve numerosas oportunidades que o compositor teve para emigrar – não o fazendo nunca. Houve declarações anti-soviéticas? Mas é claro, ele foi massacrado por Stálin e depois, mas nunca foi o dissidente típico. Seus problemas eram relativos às arbitrariedades dos dirigentes do país e não com aquilo que a imprensa ocidental desejava.

A Morte: Após a doença, Shostakovich era obcecado pela idéia da morte. Não devemos colocar toda a sua psicologia na conta do geopolítico. Ele possuía muito daqueles niilistas russos do século XIX, tão bem retratados nos romances de Dostoiévski. Há algo de Kirilov nele… Confundir isso com as torturas morais causadas pelos comissários políticos soviéticos é aplainar a grandiosa obra do compositor e é fatal para quem queira compreendê-lo. Obras como o Trio Nº. 2, Op. 67, de 1944, a Sonata para viola e piano, Op. 147, de 1975 ou a Sinfonia Nº 15, de 1974, todas com suas “Canções da Morte”, são inequívocas, assim como a Sinfonia Nº 14. As trevas sem fim que emanam destas composições e a melancolia por vezes desesperada só podem surgir de uma personalidade permeável a pensamentos macabros. Porém, até hoje, costuma-se esquecer demais da história pessoal de Shostakovich e colocar todos os seus momentos de depressão numa conta do geopolítico…

O Artista: como os verdadeiros artistas e, principalmente, os músicos, Shostakovich pensava que o estatuto particular de sua arte desobrigava-o a seguir palavras de ordem como aquelas que eram impostas aos operários, aos mineiros ou aos camponeses da União Soviética. Sob este aspecto, era ele quem enganava-se. Os sucessivos dirigentes jamais esqueceram de intervir diretamente nas orientações estéticas a serem seguidas por pintores, escritores, cineastas e… músicos. Sempre esteve fora das cogitações governamentais a existência de uma vanguarda artística na União Soviética, pelo menos depois da morte de Lênin.

Shostakovich sofreu gravemente três vezes os efeitos de restrições a seus trabalhos. 1936 pode ter sido um ano péssimo para ele, porém, em minha opinião, os detalhes jocosos da primeira proibição superam em muito o que ela tem de funesto para sua carreira. Ele havia composto sua segunda e última ópera — a primeira fora O Nariz, baseada no conto de Gógol — quando Stálin foi assisti-la. Lady Macbeth de Mtsensk — baseada na esplêndida novela de Nikolai Leskov e só encontrável em espanhol (recomendo a leitura) — conta como uma mulher se tornou assassina por amor e demonstra que, se ela foi levada a cometer crimes, a causa estava no comportamento odioso de suas vítimas, na realidade autênticos carrascos. Sim, uma distorção pero no mucho do Macbeth original. Stálin, que era um grande apreciador de óperas e ouvinte de música erudita, detestou-a. Mostrou-se chocado com o erotismo de certas cenas, com a complicada escrita vocal, com o uso brincalhão e extravagante dos instrumentos e o ritmo esbaforido da música. Chamou Lady Macbeth de “pornofonia” — termo surpreendente em qualquer época — e baniu-a de todos os teatros soviéticos. Foi preciso esperar 27 anos para retornar à cena e, ainda assim, com a supressão do episódio orquestral que descrevia uma cena de sexo… É curioso que as eructações, flatulências e gargarejos de O Nariz nunca tenham sido alvo de censuras. Talvez Gógol imponha mais respeito que Leskov…

A segunda vez que Shostakovich entrou no index ocorreu independentemente de qualquer obra. Logo após a notoriedade internacional da Sinfonia Nº 7 — que descreve com pungência inalcançável o sofrimento passado pelo povo soviético durante o cerco de Leningrado — foi baixada uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista Soviético que depois foi conhecida por “Relatório Jdanov”. Isto ocorreu em 10 de fevereiro de 1948 e colocou no mesmo saco Prokofiev, Khatchaturian, Shostakovich e quase todos os artistas do país. Shostakovich foi o mais atingido, pois negara-se a fazer de sua Sinfonia Nº 9 um elogio a Stálin e ao Exército Vermelho, publicando em seu lugar uma piada musical, que foi recebida com alegria e aplausos no Ocidente, tendo em Leonard Bernstein seu maior divulgador. O que Bernstein só soube depois é que a nona sinfonia deixara Stálin novamente furibundo com Shostakovich, ao ver suas ordens desobedecidas. Como resultado, suas peças sumiram do repertório.

Mas ele seguiu produzindo e, quando Stalin morreu, em 1953, Shostakovich tinha as gavetas lotadas de novidades. Havia, inclusive uma vingança contra o ditador.

O terceiro e maior desentendimento aconteceu em 1962. Neste ano, aparecia a Sinfonia Nro. 13, para solo de baixo, coro masculino e orquestra. Os textos cantados vinham do poema Babi Yar, de Evgueni Ievtuchenko e, em lugar de cantar o porvir, o poema denunciava os crimes nazistas cometidos naquela cidade perto de Kiev, onde 34 mil judeus foram assassinados. Denunciar os crimes nazistas não seria problema, mas o poema de Ievtuchenko fala sobre como os soviéticos insistiam em considerar russos e ucranianos os mortos, em vez de judeus. É claro que o motivo de suas mortes era a etnia judaica e não outro. É claro, que aquele foi um episódio meio obscuro, onde há indícios de colaboração. Ele e Ievtuchenko, celebridades internacionais, foram fortemente repreendidos pelas autoridades, que exigiram a substituição completa dos textos, sob pena de a música não vir a ser executada. A Sinfonia nunca foi alterada.

Bibliografia: grande parte das informações históricas foram obtidas em incontáveis discos, CDs e outras publicações, mas foram  um pouco sistematizadas pela leitura do texto de Philippe Olivier, dentro da História da Música Ocidental, Nova Fronteira, 1997, assim como de Shostakovich – Vida, Música, Tempo, de Lauro Machado Coelho, Perpectiva, 2006.

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  1. Notas:

    1) O livro do Leskov foi recentemente lançado no Brasil pela Editora 34, sob o título de “Lady Macbeth do Distrito de Mtzansk”;

    2) Penso que a Revolução Russa fala para além da verdadeira Revolução Russa, principalmente por inserir-se no contexto mais amplo do desenvolvimento ocidental em contraste com uma Rússia atrasada economicamente mas intelectualmente avançadíssima; os artistas russos ficaram para a História, assim, como os únicos sobreviventes da vaga visionária soterrada pela burocracia unida ao terror pelo “gênio” de Stalin;

    3) É impossível para um artista com um mínimo de sensibilidade não fundir o ontológico com o ôntico, de tal forma que temos dificuldade em perceber, tantas vezes, se a dor que ele inventa de fato é a dor que ele sente ou a dor que ele inventa sentir quanda a sente no sentir dos outros;

    4) Ser avesso ao “realismo socialista” não demonstra um distanciamento do artista dos cidadãos de seu país, só aversão a um programa estético que tem por principal objetivo minar a estética e impor um programa – sendo este só uma ilustração de intentos tão somente político-partidários, de poder;

    5) É um lugar comum quanto aos artistas russos em geral: se emigram, passam o resto da vida repetindo as lembranças da Rússia, isso quando conseguem sobreviver ao “axílio”, ou simplesmente nada mais conseguem fazer de bom; se não emigram, necessitam de forças de um Hércules para superar os 12 trabalhos de encomenda do regime; nos dois casos, algo se perde, ou melhor, se transforma, em alguns casos produzindo obras interessantes, outras vezes descendo á caricatura. Algumas exceções, como Nabokov, compreendem-se por: a) partiram para o exílio jovens demais, e pouco possuem de lembranças da Rússia; b) eram desde sempre russos europeizados e nobres, que já viviam mais em Berlim ou Paris do que em Moscou ou São Petersburgo;

    6) Por fim, a sugestão de não ouvir Shostakovich em apartamentos sem fone de ouvido: os vizinhos odiarão você caso saiam das caixas o som mínimo necessário para ouvir os vários tons de suas sinfonias.

  2. 1. Excelente! Principalmente porque as traduções da 34 são diretas.

    2. Assino embaixo e por todos os lados.

    3. Based on Pessoa. Mas tu tens razão, claro.

    4. Exato. Imaginar Shosta a fazer coisas quadradinhas não é nada crível. Mas aer um cara tão ligado às coisas do país que seu sonho era… jantar com Yashin, goleiro de seu time, “feito” que conseguiu e repetiu.

    5. É pouco humano dizer isto, mas Shosta seria um pouco menor não fosse seu país. Se Mozart é maior do que Haydn por causa das dívidas, o mesmo vale para os dramas vividos por Shosta, não?

    6. Moro em casa. Volume é fundamental para as sinfonias de Shosta, Bruckner e Mahler. Se houver pessoas hostis, compre a briga ou fones. Vale a pena.

  3. 1) Mas, de fato, Leskov é um perfeito desconhecido da língua portuguesa. Essa tradução da Editora 34 é recentíssima, e não conheço uma única outra obra sua que esteja disponível em português. Bem que o Benjamin avisou que o cara ia ficar no ostracismo mesmo.

    Esse pessoal que “simplesmente fala a verdade”…

  4. Excelente intento, Milton! Lerei doravantemente todos os textos. Sou um apaixonado pela música de Shosta. Conseguimos ouvir a alma do russo por intermédio de sua música atordoadora. Foi a forma que encontrou para dizer ao mundo aquilo que sentia.

    O texto ficou muito bem escrito.

    Parabéns!

    Abraços, grande Milton!

  5. “Se eu fizesse uma comparação entre os autores eruditos e a gastronomia, Mozart seria no máximo um McDonald’s”.
    Norman Lebrecht

    Conforme entrevista na Veja do crítico inglês Norman Lebrecht, autor do livro O Mito do Maestro.

    http://veja.abril.com.br/200607/entrevista.shtml

    Eu, Beto Toda Música, concordo com o Mister Norman!

    Gênio, Gênio é o Haydn, e ponto final!

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