Finalizamos a primeira parte de nossa abordagem à Sinfonia dizendo que Beethoven foi o abre-alas para uma nova forma sinfônica, diferente do modelo clássico de Haydn – 4 movimentos: um mov. rápido em forma sonata, um mov. lento, o minueto, outro mov. rápido. Também adiantamos que ele fez a substituição do Minueto do terceiro movimento por um Scherzo.
O Scherzo é um movimento curioso. A palavra significa apenas “brincadeira”. Então, a dança aristocrática francesa do Minueto deu lugar a algo muito próximo do chiste, da piada. O Scherzo tornou-se quase obrigatório na música sinfônica do período romântico, e foi se adaptando às novas formas da composição erudita. Nas sinfonias de Brahms, ele se transformou em Allegretto Grazioso, ou Allegro Giocoso; nas de Anton Bruckner, o nome Scherzo foi mantido, mas ele adquiriu um caráter violento, demoníaco e apocalíptico; nas de Gustav Mahler e Dmitri Shostakovich, tomou uma forma grotesca e tragicômica. Já os compositores nacionalistas, como Tchaikovsky e Dvorák, introduziram nele temas populares de suas etnias.
Quando terminamos nosso texto anterior, Haydn, presente na estreia da Eroica de Beethoven, profetizava: A partir de hoje, tudo mudou. E mudou mesmo. O Scherzo da Eroica já tem pouco a ver com o gentil e aristocrático Minueto. Mas o campeão dentre os Scherzi beethovianos é o da Nona Sinfonia. Tenho uma história pessoal que envolve este Scherzo. Em 2010, quando completou 60 anos, a Ospa tocou a Nona de Beethoven sob a regência de Isaac Karabtchevsky. Eu critiquei a forma como a orquestra tocara o Scherzo. Achei a execução muita lenta. Escrevi uma crítica e uma violinista da Ospa discordou de mim no Facebook. Vieram outros concordar ou discordar com mais ou menos veemência. Mas logo a discussão cessou. Teve gente reclamando que eu e a principal discordante éramos muito educados… Bem, hoje, aquela violinista é a minha mulher Elena. Então, aqui temos duas conclusões: (1) O amor é lindo, né, gente? e (2) discordâncias sobre Scherzi podem ser frutíferas.
O romantismo foi impulsionado pelos processos que se desencadearam na vida musical da Europa no início do século XIX, resultando numa nova situação, inteiramente diversa de tudo aquilo que, no passado, fora a história da música. A partir de então, um público que antes era restrito às cortes e palácios cedeu terreno a outro tipo de plateia, numericamente mais importante e formada em sua maioria por burgueses.
A aristocracia foi abandonando aos poucos seu tradicional papel de promotora das artes, afastada por empresários e músicos, profissionais e amadores, que cada vez mais organizavam eles mesmos concertos públicos. Já desde o início do século, alguns teatros e casas de ópera, como os de Munique e de Dresden, antes exclusivos das cortes, se haviam transformado em instituições públicas.
O romantismo também fez com que a atenção dos artistas se voltasse para o passado de suas respectivas nações, privilegiando assuntos que dissessem respeito a elas e ao público que passara a sustentá-los, o que se observa tanto nos grandes países com tradição musical mais rica, como também nos pequenos (os eslavos e escandinavos, por exemplo) ou nos menos desenvolvidos (como a Rússia).
Beethoven já era um desses artistas, ligado tanto a um público que o admirava, como também a aspectos políticos de sua época. Imaginem que a Sinfonia Nº 3 de Beethoven, a já citada Eroica, era para ser dedicada a Napoleão Bonaparte, pois Beethoven admirava Napoleão e os ideais da Revolução Francesa. Porém, quando o corso autoproclamou-se Imperador da França em 1804, Beethoven retirou a dedicatória de forma bastante característica… Foi até a mesa onde estava a sinfonia já pronta, pegou a primeira página e riscou o nome de Napoleão com tanta força que ficou um buraco no papel. Vejam abaixo a partitura original.
Durante o romantismo, iniciou-se um novo ciclo de obras verdadeiramente originais, que cantavam a força da humanidade, a paixão pela liberdade e a grandeza do espírito humano.
O público aumentou em número, principalmente nos grandes centros europeus, como Londres, Paris e Viena. Na época do romantismo, o compositor passou a conhecer um público novo que o via quase sempre como um ser extraordinário, especialmente dotado. Começou a se desenvolver o culto do gênio.
Quando falamos sobre os Concertos de Brandenburgo, dissemos que, na época de Bach, não havia “noção de obra”, que os autores não estavam preocupados em se colecionarem. O culto do gênio mudou tudo isso. As pessoas não queriam mais música para determinada ocasião. Elas iam aos teatros para ver e ouvir o que gostavam, queriam Beethoven ou Schubert, por exemplo. Passaram a nomear e pedir os autores de sua preferência.
Às vezes, a democratização da música fazia que as autoridades políticas alimentassem suspeitas em relação às sociedades musicais de amadores, cujas reuniões eram regidas, aos olhos das autoridades, por um princípio demasiado democrático, com seus diretores e comitês livremente eleitos e seus membros, provenientes de diferentes classes sociais, trabalhando lado a lado. Mas a democratização era irresistível, acabando por tornar necessária a abertura de grandes salas de concerto, capazes de receber centenas de ouvintes, bem como a criação de organizações especializadas na programação.
Registros da época dão conta que o número de concertos, pelo menos em certas capitais como Londres e Paris, triplicou.
Um grande futuro estava reservado aos concertos oferecidos pelas organizações de empresários e músicos profissionais: foram deles que saíram as orquestras sinfônicas ou filarmônicas associadas a teatros que, mais tarde, iriam ocupar um lugar de honra na vida musical dos diferentes países. Sabem qual é a diferença entre uma orquestra sinfônica e uma filarmônica? Quase nenhuma!
Geralmente uma orquestra sinfônica é mantida pelo poder público federal, estadual ou municipal. Já uma orquestra filarmônica é mantida por uma associação de amigos, uma entidade organizada que capta recursos para a manutenção do grupo. Mas isso atualmente não é mais uma regra.
Juntamente com o culto do gênio veio o culto do virtuosismo. O século XIX assinala o começo desse grande acontecimento, particularmente no que diz respeito ao piano. Mas…
Foi no início do século XIX que o mais brilhante dos virtuoses — o violinista Niccolo Paganini — fez sua fulgurante carreira. O fascínio que Paganini exercia era de tal ordem que se chegou a suspeitar que tivesse um pacto com o demônio. E todos os grandes virtuoses do piano romântico foram estimulados à tentação de rivalizar com ele. Então…
Franz Liszt era algo como um rock star do século XIX, famoso pela histeria que induzia. Tudo começou num concerto em Berlim, em 1841. O fenômeno da Lisztomania – termo criado por Heinrich Heine – se caracterizava por uma histérica reação às performances de Liszt em seus concertos e recitais. Sabem a reação que os Beatles provocavam na plateia? Pois é. Relatos descrevem uma espécie de êxtase místico que arrebatava a audiência do concerto, com pessoas brigando fisicamente por seus lenços e luvas e, sempre que uma das cordas de seu piano arrebentava, fans subiam ao palco para conseguir um pedaço, a fim de fazer braceletes. Nas ruas, era possível ver pessoas usando broches e camafeus com imagens do músico. Certa vez, Liszt jogou no chão o resto de um charuto, sob o olhar de diversas mulheres, que lutaram para conseguir o souvenir.
Claro, o movimento romântico constituiu uma reação contra o racionalismo e o classicismo, opondo, à universalidade dos clássicos, o individualismo e o subjetivismo, a expressão do espírito do artista. Enquanto no classicismo havia uma grande preocupação pelo equilíbrio entre a estrutura formal e a expressividade, no romantismo os compositores buscavam uma maior liberdade da forma e uma expressão mais intensa e vigorosa das emoções.
Além da forte expressividade outra característica marcante no período musical romântico é a chamada música programática ou música descritiva. Não que em outros momentos da história da música não houvesse esse tipo de produção, mas no período romântico, essa é uma tendência bastante acentuada. Neste aspecto, muitas vezes, o romantismo literário se confunde com o musical. Muitos compositores românticos eram ávidos leitores e tinham grande interesse pelas outras artes, relacionando-se estreitamente com escritores e pintores.
Beethoven foi saudado pela geração romântica como o maior dos heróis. O compositor foi o primeiro a concretizar a frustrada ambição de seu contemporâneo Mozart. Descontente com as imposições a que suas composições eram submetidas – especialmente pelo controle produtivo por parte da igreja ou da corte –, Beethoven conseguiu uma bem sucedida carreira de compositor free-lancer, autônomo.
Beethoven é a triunfal figura anunciadora de um novo modo de composição. De suas nove sinfonias, a mais conhecida é a Nona, só que esta deve receber um capítulo especial nesta série. Então, mostremos um movimento de sua Sétima Sinfonia que… Bem, certa vez, uma amiga minha me telefonou por volta da meia-noite. Eu achei estranho; afinal, não era muito íntimo dela. É que ela saíra pela primeira vez com um cara, um psiquiatra. Ela queria que eu dissesse para ela ou mostrasse como era um movimento de uma sinfonia de Beethoven, pois, na despedida deste primeiro encontro ele disse a ela: “Se queres me conhecer melhor, ouça o segundo movimento da Sétima Sinfonia de Beethoven. Sou eu”. Francamente… Quanta pretensão!
A intensidade da vida musical na Viena do século XVIII, faz com que a memória musical forme a seguinte sucessão: Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert.
A trágica e breve vida de Franz Schubert (1797-1828), talvez o maior de todos os melodistas, é constantemente encoberta por sua música. Viveu 31 anos, sofrendo de sífilis desde os 25. Morreu provavelmente de febre tifoide. “O músico mais poeta que já existiu”, segundo Liszt. Aos 17 anos, já atingira a maturidade na composição, e sua vasta produção mostra espantosa fluência. Sua Sinfonia Nº 8, a Inacabada, assim como a Nº 9, chamada A Grande, vários ciclos de canções, Quartetos de Cordas, Quinteto para piano A Truta são algumas de suas obras-primas.
Um dos músicos mais dotados e completos da história, Felix Mendelssohn é o mais clássico dentre os românticos. Era um compositor admirado por seu enorme charme e imaginação, sobretudo na Inglaterra. Entre suas obras mais notáveis estão as Canções sem palavras para piano solo, a Sinfonia nº 4, Italiana, e o Concerto para violino em Mi menor. E temos a Marcha Nupcial, retirada de Sonho de uma Noite de Verão, que é ouvida repetidamente a cada sábado nos casamentos.
Robert Schumann (1810-1856) criou uma música ao mesmo tempo introspectiva e bombástica. Viveu na angustia entre ser poeta ou músico. Depois de ter optado pela música, prossegue a divisão, entre duas assinaturas: Eusebius, “o terno”, ou Florestan, o “selvagem”, personagens distintos que se revezam (e que às vezes aparecem simultaneamente) encobrindo a assinatura de Robert Schumann. Também foi crítico musical. Problemas psíquicos surgidos relativamente cedo e a loucura dos últimos anos — que exigiu internação em asilo psiquiátrico — completam o quadro sombrio romântico-romanesco da vida do compositor. Atrevidamente original, Schumann captou, como ninguém, o espírito inocente dos primórdios da literatura romântica alemã. Organizava-se estranhamente. Houve o ano em que apenas compôs Lieder (canções), o ano que em só escreveu da música de câmara, outro só sinfônias, etc. A Sinfonia nº 3, Renana, a suíte Carnaval para piano e o ciclo de canções Dichteliebe são pérolas.
Johannes Brahms. Compositor denso, intenso, do mais alto nível. O pai era contrabaixista de cervejaria, e a mãe completava o orçamento familiar costurando para fora. Desde os dez anos, acompanhava o pai às tabernas, onde também tocava durante uma parte da noite. Esta atividade precoce foi nociva tanto para a saúde quanto para a cultura geral do menino – tendo deixado a escola muito cedo, durante toda a vida iria conservar complexos típicos de autodidata diante da chamada alta cultura. Uma bela amizade desenvolveu-se entre Brahms e os Schumann (Robert e sua esposa Clara). A casa do casal conservou-se sempre aberta para ele, que passava longos períodos na biblioteca de Schumann, que o amava como a um filho. Quanto à relação do jovem e belo “deus louro Brahms” com Clara, muitas hipóteses são possíveis, mas uma só coisa é certa: Brahms e Clara Schumann destruíram a maior parte dos documentos que lhes diziam respeito. Ele era homem de temperamento difícil, compôs obras-primas em todos os gêneros – excetuando-se a ópera –, como as Sinfonias Nº 1 e Nº 4, o Concerto para violino, o Réquiem Alemão e os Concertos para piano. Brahms é, juntamente com Bruckner, o último grande sinfonista da pura tradição germânica. Depois dele, a sinfonia mudou cada vez mais, fosse para tomar o caminho do poema sinfônico (Richard Strauss), fosse para ganhar outras e novas dimensões com Mahler. Sua Sinfonia n° 1 foi chamada de a Décima de Beethoven. Bobagem, é puro Brahms. Somos apaixonados pelo primeiro movimento da Sinfonia N° 4 que, em seu final, presta uma monumental homenagem a Bach.
Antonín Dvorák foi um compositor tcheco que usou nas suas obras muitas melodias populares da Morávia e da Boêmia, onde nasceu. Era filho de um estalajadeiro e estava destinado a suceder o pai no negócio da familia. Tomou-se de paixão pela música tocando violino com seu professor primário. Um de seus tios ajudou-o a inscrever-se no curso de órgão do Conservatório de Praga. Em suas melhores e mais conhecidas obras incluem-se as Sinfonias N° 8 e 9, as Danças Eslavas, o Quarteto de Cordas Americano e Concerto para Violoncelo. Dvorák compôs nove sinfonias, das quais a última, Sinfonia N° 9, foi composta em 1893 durante sua estada em Nova York. Ela é conhecida pelo nome de Sinfonia do Novo Mundo.
Deixemos Tchaikovsky, Bruckner e Mahler para a terceira parte, certo?
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Sensacional vídeo da Classic FM pergunta: Que peça faz os maestros reagirem assim?
Fontes:
— A Música do Romantismo, de Frederico Toscano (http://revistasera.ne10.uol.com.br/a-musica-do-romantismo-1810-1920-frederico-toscano/).
— História da Música Ocidental, de Jean & Brigitte Massin.