Gosto muito de Kafka, porém, anos atrás, não concordava com esta pequena parábola de Kafka. O fato é que não tinha experiência para poder compreendê-la. Hoje, ela literalmente me arrepia em sua verdade.
Diante da Lei faz parte de um dos poucos livros que Kafka publicou em vida: Um Médico Rural – Pequenas Narrativas (Ein Landarzt. Kleine Erzälungen – 1919). A tradução que copio abaixo é a do escritor Modesto Carone, que foi multi-premiado no início dos 90 por suas traduções de quase todo o Kafka. Não lembro se América foi traduzido. As traduções anteriores eram insatisfatórias; tratavam de “melhorar” a estranha pontuação de Kafka e muitas não eram feitas a partir do original, mas do francês. Minha edição é da Brasiliense (1990), mas penso que a Cia. das Letras republicou tudo há uns quinze anos. Lá vai.
Diante da Lei
Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo chega a esse porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais tarde.
– É possível – diz o porteiro. – Mas agora não.
Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta e o porteiro se põe de lado o homem se inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso o porteiro ri e diz:
– Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala porém existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a simples visão do terceiro.
O homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao examinar mais de perto o porteiro, com o seu casaco de pele, o grande nariz pontudo, a longa barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor aguardar até receber a permissão de entrada. O porteiro lhe dá um banquinho e deixa-o sentar-se ao lado da porta. Ali fica sentado anos e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido e cansa o porteiro com os seus pedidos. Às vezes o porteiro submete o homem a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito de sua terra natal e de muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que os grandes senhores fazem, e para concluir repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que havia se equipado com muitas coisas para a viagem, emprega tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Com efeito, este aceita tudo, mas sempre dizendo:
– Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa.
Durante todos estes anos o homem observa o porteiro quase sem interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos amaldiçoa em voz alta e desconsiderada o acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga consigo mesmo. Torna-se infantil e uma vez que, por estudar o porteiro anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas de sua gola de pele, pede a estas que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião. Finalmente sua vista enfraquece e ele não sabe se de fato está ficando mais escuro em torno ou se apenas os olhos o enganam. Não obstante reconhece agora no escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências daquele tempo convergem na sua cabeça para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido. O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a diferença de altura mudou muito em detrimento do homem:
– O que é que você ainda quer saber? – pergunta o porteiro. – Você é insaciável.
– Todos aspiram à lei – diz o homem. – Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar?
O porteiro percebe que o homem já está no fim e para ainda alcançar sua audição em declínio ele berra:
– Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.