“Doutor, estou tendo uma crise de representação”

“Doutor, estou tendo uma crise de representação”

O paciente entrou no consultório com ar desalentado, deitou-se no divã e disse:

— Doutor, estou tendo uma crise de representação.

— Não me diga.

— Ninguém me representa e os que um dia se propuseram a isso, desistiram, mudaram, sei lá.

— Sim.

— Vi que a coisa era grave quando compareci em a audiência nesta semana e não encontrei meu representante, meu advogado. Não sabia mais quem era ele. Se o vi, não reconheci. Voltei para casa desesperado com a derrota na causa e, quando subi as escadas, cruzei com o síndico. Ele me disse que havia um vazamento no meu apartamento, só que, doutor…

psi

— Sim?

— Não votei nele. Ele não me representa.

— Acredito.

Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos até que o paciente disse:

— Meu Deputado Estadual não foi eleito.

— O Federal?

— Também não.

— Senador?

— Perdeu por pouco.

— Presidente?

— Votei na Dilma, que já não me representava.

— Votaste em quem não te representava… Grave… Prefeito?

— O Sr. me toma por quem?

— Desculpe. E Governador?

— O Sr. realmente está me desconhecendo!

— Creio que deve haver pessoas em posições de algum poder que lhe representem. Vereador?

— Sim, votei numa boa menina. Foi eleita.

— Viu?

— É pouco, doutor.

— E o teu trabalho, ele representa tuas capacidades, teu papel e a forma como és necessário à sociedade…

— O que faço representa meu chefe, não a mim.

O médico contém o riso e diz que aquilo é muito comum.

— E as bancadas da Bala, da Bíblia, do Boi, da Bola?

— Nada doutor. Com B só Balzac, Bach, Beethoven e Brahms.

— E os movimentos identitários?

— Meu deus, doutor. Eles chegaram a tal grau de certeza de sua superioridade moral que não posso nem encará-los. Sinto-me indigno. E não poderiam me representar porque é o lugar de fala que garante a verdade do que é dito. Não adianta estudar. E meu lugar de fala é uma bosta: branco, homem, hetero, mesmo que traído pela mulher.

— Opa.

— Minha mulher, poderíamos chamá-la de Molly, elegeu um representante para minha função.

— Ela é mole?

— Meu deus, doutor, falo de Molly Bloom. Cito Ulysses.

— Ah, sim.

O médico se remexe na cadeira.

— Minha mulher tem um amante. Ponto.

O médico queria mudar de assunto. Decidira que representação era o tema daquela sessão. Adultério ficaria para uma ou várias próximas.

— E aqueles teus B`s queridos? Bach, Beethoven, etc.?

— Shostakovich.

— Como?

— Shostakovich. A polícia stalinista vinha buscar as pessoas em suas casas, à noite. Eles não davam tempo para o cara se vestir. Era levado para “prestar seu depoimento” como estivesse, normalmente de pijamas ou cuecas. Era para humilhar mesmo.

— E daí?

— E daí que Shostakovich passou a dormir vestido, preparado, para passar menos vergonha.

— E o que isso tem a…

— Depois ele pensou que seria melhor que não o pegassem dentro de casa. E começou a dormir no corredor. Quando ouvia o som do elevador, pegava a pasta e aguardava.

— Que loucura.

— Mas eles nunca vieram. A NKVD e a KGB nunca vieram.

— …

— E eu tenho medo do MBL, mas não apenas deles. Tenho medo de todos. E todos fazem linchamentos virtuais. Ninguém me representa.

— Escreva um textão no Facebook. Diga que respeita todo mundo. Os identitários, os punitivistas, a puta que o pariu, que cada um deve respeitar o espaço do outro, diga que acredita no diálogo e na democracia, que saúda respeitosamente cada degeneração. Não, não, não faça textão, responda a cada um de cada vez, sempre concordando. Depois volte aqui e vamos tratar do adultério em 30 sessões. Chama a Mole junto.

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