Sobre Ernesto Sabato, autor de duas obras-primas, falecido hoje

Faleceu hoje um dos três maiores escritores vivos: o argentino ERNESTO SABATO — os outros dois seriam, por ordem, Ismail Kadaré e Philip Roth. O realmente grande Sabato, autor de pelo menos duas obras-primas (“O Túnel” e “Sobre Heróis e Tumbas”) iria completar 100 anos no dia 24 de junho próximo.

(Fernando Monteiro)

Com a morte de Sabato, o país latino-americano mais esquecido, humilhado e ofendido pela indiferença dos acadêmicos suecos que decidem o Nobel, passa a ser a Argentina. Deixaram de premiar Borges e Sabato, nem mais nem menos.

(Fernando Monteiro)

Fernando, acrescente Saer na listinha do país ofendido.

(MR)

CONCORDO inteiramente com vosmicê, Milton. Juan José Saer estaria na ordem direta de grandeza de Borges e de Sabato, neste momento, caso não houvesse falecido relativamente moço, ainda. Atenção, Feicebuque: LEIAM J. J. SAER!

(Fernando Monteiro)

Sabato foi um grande físico, chegando a trabalhar no Laboratório Curie, em Paris. Nos anos 40, depois de questionar esse mundo tão racional — que lhe provocava, segundo suas palavras, “um vazio de sentido” — , abandonou a ciência para se dedicar à literatura e à pintura. Publicou livros de ensaios e romances, poucos em quantidade — só três romances — , mas de uma qualidade incontestável. Destaca-se nesse conjunto a obra-prima Sobre heróis e tumbas, lançado em 1961 e com edição recente no Brasil pela editora Companhia das Letras, com tradução de Rosa Freire d’Aguiar.

O romance é dividido em quatro partes, mas antes há uma nota, supostamente tirada de um jornal de Buenos Aires, pela qual ficamos sabendo que Alejandra matou seu pai, Fernando Vidal Olmos, e depois ateou fogo no próprio quarto, se suicidando. Na primeira parte, “O dragão e a princesa”, passamos a conhecer melhor essa impressionante personagem a partir das percepções de Martín, jovem que se apaixona por ela. Misteriosa, imprevisível e de personalidade forte, Alejandra só não é mais estranha do que os parentes que habitam a casa, gente ligada à antiga aristocracia argentina, cujos antepassados participaram da luta pela independência do país. Esses antepassados podem ser os heróis do título no que seria uma interpretação político-social da obra, colocando Alejandra como metáfora para a própria Argentina. Prefiro, no entanto, a chave mais existencial, sendo que o título dessa segunda parte nos leva a esse sentido. Seria o dragão Martín e a princesa Alejandra? Ou seria a jovem uma princesa-dragão, soltando fogo através de suas duras palavras?

Na segunda parte, “Os rostos invisíveis”, a história se desenvolve com mais comentários sobre a história da Argentina, inclusive sobre a era peronista, as paixões anteriores de Alejandra e aparece pela primeira vez Fernando Vidal Olmos, esse o rosto invisível em boa parte do enredo, mas que começa a se revelar. É dele o manuscrito que seria encontrado posteriormente no quarto incendiado e que corresponde à terceira parte, talvez a mais perturbadora de todo o enredo: “Informe sobre cegos”.

O texto é uma narrativa enigmática, que reflete a mente perturbada de Fernando em sua tentativa de encontrar a Seita dos Cegos. Percorre, inclusive, os esgotos subterrâneos de Buenos Aires, como a descida de Ulisses ao Reino de Hades em busca das respostas do cego Tirésias, contada na Odisseia, de Homero. Paradoxalmente, busca a luz nas trevas. Na verdade, a busca representa a jornada nas tumbas da nossa mente, por isso as menções ao sexo desenfreado, aos canalhas de todas as estirpes, ao lixo produzido pelo homem. Tudo alegorias das questões morais do ser humano. Mais do que isso eu não falo sobre o “Informe”. Leia-o. Repito, leia-o. E mais uma vez: leia-o, mesmo que seja só essa parte. Vai te deixar perturbado durante dias, mas é esse o objetivo de todas as grandes obras literárias.

[…]

(Cassionei Petry)

Al llegar al hotel me dieron un paquete sobre que me habían dejado de parte de Sabato. Contenía un libro, Sobre héroes y tumbas, y una carta en la que me pedía disculpas por no acudir al concierto. Me explicaba que mi música le había salvado en momentos de depresión. Lo curioso es que cuando hice el servicio militar en Nis, en la época comunista, robé de la biblioteca del cuartel un ejemplar de ese libro. Lo tuve en mi casa de Sarajevo durante años y lo perdí. Con la guerra perdí todo, también mi biblioteca. Puedes empezar dos veces tu vida, pero no puedes empezar dos veces una biblioteca. Todas las cosas grandes que me han pasado están guiadas por cosas pequeñas que se vuelven grandes, como el libro de Sábato.

(Goran Bregovic)

Neste momento em que andam ensinando tantas tolices, principalmente em “oficinas” literárias que começam por duvidar da eficácia do narrador na primeira pessoa, Ernesto Sabato dá sua lição de graça: “Adotei a narrativa na primeira pessoa em O Túnel, depois de muitas tentativas, porque era a única técnica que me permitia passar a sensação da realidade externa tal como a vemos, a partir de um coração e de uma cabeça, a partir de uma subjetividade total…”

(Fernando Monteiro)

Ernesto Sabato não escreveu muitos livros de ficção, talvez tenha escrito três ou quatro, mas os que li foram muito marcantes: O Túnel e Sobre Heróis e Tumbas.

O Túnel é de 1948 e insere-se decidamente no existencialismo. Albert Camus era um entusiasta da obra e recomendou sua tradução para a Gallimard, o que tornou Sábato uma celebridade da noite para o dia. Lembro que gostei demais daquele vertiginoso monólogo escrito na primeira pessoa por um narrador que resolve contar o ato que cometeu. Traz perturbadores — esta é a palavra qiue mais descreve Sabato — debates de consciência, demonstrando as dualidades e desvios que empurram os seres humanos a pensamentos e atos nem sempre justificáveis.

Porém seu grande romance é Sobre Heróis e Tumbas de 1961. São três narrativas que se completam: a do amor algo doentio de Martín por Alejandra — esta uma das maiores personagens que já conheci — ; a da morte no exílio do general Juan Lavalle, heroi da independência argentina; e o melhor de todos: O Informe sobre Cegos, que chegou a ser publicado separadamente há alguns anos. As duas primeiras, apesar de totalmente diversas entre si, são clássicas histórias de decadência de uma certa aristocracia, contadas sob a perspectiva da morte. Já O Informe está no limite do fantástico e é a respeito de uma seita maléfica dotada de poderes esotéricos e que une todos os milhões de cegos do mundo.

[…]

(MR)

Eu tenho aqui um volume de diálogos entre o Sabato e o Borges que é delicioso, editado pela Globo. Numa das conversas, o moderador os recebe em um bar de Buenos Aires; Borges pede água e Sábato whisky. Sábato fala da mitificação inconsequente dos leitores superficiais, e cita alguém da crítica que disse ser o Dashiel Hammet tão bom quanto Faulkner. Quem diz isso, continua, só pode ser um leitor esporádico, alguém pronto para escrever para periódicos, não um leitor profissional. Mas o melhor é ver Borges tão cordial, de certa forma infantilmente indefeso, o que se vê pouco entre grandes escritores (que se preocupam em passar uma imagem de rigidez literária como se pronunciassem sentenças imortais no simples ato de irem ao banheiro). Perguntado sobre música — Borges também era compositor de tangos, reunidos nos quatro volumes da Globo numa seção de milongas — , disse que uma sobrinha ou uma outra menina de sua família, ligou o rádio para que ele escutasse uma canção. Era uma canção tão linda e tocante que ele não resistiu ao choro. Terminada, perguntou quem cantava, ao que a menina respondeu: mas valha-me deus, o senhor nunca ouviu os Beatles?

Semana passada mesmo sublinhei essa frase, de um dos Prólogos dos Prólogos: “Nada mais distante da beleza que a simetria perfeita”.

(Charlles Campos)

Professor de escola pública quando jovem na “Era Perón, Ernesto Sabato foi demitido por ter assinado documento de repúdio à violência policial contra estudantes dispostos a comemorar a vitória das Forças Aliadas sobre o nazi-fascismo. Era, então, sua única fonte de renda. Muito bem. Quando caiu o regime de Perón, e Sábato ficou sabendo que muitos peronistas (seus antigos inimigos) estavam sendo torturados em nome do movimento “libertador”, o escritor sem medo assumiu o ônus de condenar a prática da violência contra os ex-violentos. Será preciso dizer mais sobre as imposições da consciência a este “homem que lutou só”?

(Fernando Monteiro)

González recordó que en los ’40 publicó “El Túnel”, que había sido elogiada por Albert Camus en Francia, “el escritor más leído en aquella poca”. Y señaló que “también Camus veía un orden moral agredido por la civilización contemporánea tecnológica y había pensado en una suerte de estadío intermedio entre los movimientos de liberación nacional, las izquierdas y las posiciones de derecha”. “‘El Túnel’ de Sabato era una novela inspirada un poco en Camus, que también buscaba en medio de la oscuridad el sentido de la vida”, planteó.

Luego, `Sobre Héroes y Tumbas` en los 60 “fue su novela conmocionante”, definió el titular de la Biblioteca Nacional y agregó que fue “una novela sobre la Argentina, una búsqueda también del sentido de la verdad y la existencia, pero a través de distintos personajes”. “Fue una novela que realmente conmocionó la literatura argentina, también en medio de un mundo sin valores o sin sentidos, sobre todo la ciudad de Buenos Aires, que él pinta con cierto sentido metafísico interesante”. También agregó que “los personajes son como sonámbulos que se buscan a si mismos en medio de una sociedad que les da la espalda y esa novela durante muchos años fue la marca que dejaba Sabato a los nuevos lectores, y no pocas otras escrituras se inspiraron en `Sobre Héroes y Tumbas`”.

(Horacio González, no Página 12)

O poeta e jornalista Franco Mogni – um dos jovens escritores dos quais Sabato jamais se apartou, ao longo do tempo – fez-lhe justiça nesta apresentação de entrevista para a revista Che, nos anos de 1970:

“Está sentado num dos últimos cafés de ar verdadeiramente portenho, com uma camisa azul escura que reforça o seu ar de monge e de anarquista ao mesmo tempo. Sábato é o último dos moicanos da retidão que não nega encarar os dilemas. Ele os vê com os olhos ziguezagueantes atrás dos óculos, num rosto que mescla traços de Chestov e Kierkegaard. E diz: ‘Se o homem é mortal em qualquer parte do mundo, aqui é muito mais mortal’. Tira os óculos e sorri meio de lado, acentuando as linhas do rosto sofrido. Vê-se, então, que é um homem só. O último dos moicanos.”

(Fernando Monteiro)

La ardua gestación de la mejor novela del Siglo XX

Compleja y extensa como pocas resultó para Ernesto Sabato la gestación de “Sobre héroes y tumbas”, considerada por los críticos como la mejor novela del siglo XX y en la que conjura sus obsesiones autobiográficas para reflexionar sobre la historia argentina y avanzar en la investigación de la relación entre la conciencia y el mundo exterior al sujeto.

Publicada en 1961, “Sobre héroes y tumbas” mutó sus variables literarias en numerosas oportunidades desde el primer bosquejo ideado por Sabato en 1938 bajo el título de “La fuente muda”, inspirado en un poema del poeta español Antonio Machado que dice “está la fuente muda y está marchito el huerto”.

La escritura de esta novela fue abandonada durante años, hasta que el desaparecido diario Sur publicó un fragmento en el que se percibe cómo el escritor inaugura con ella un curioso experimento, con páginas a dos columnas: la izquierda utilizada para lo que el personaje va soñando y la derecha para narrar los hechos que le suceden.

De esta historia, Sabato retomó algunos elementos con los que construyó el primer bosquejo de “Sobre héroes y tumbas”, al que le anexó fragmentos de otra novela, “Memorias de un desconocido”, sobre los pensamientos delirantes de un nihilista -que sustentaron el “Informe sobre ciegos”. Y de una tercera, “El desafío”, acerca de un joven solitario que se encierra a esperar que aparezca Dios.

La versión definitiva de “Sobre héroes y tumbas” es el resultado de un proceso en el que desaparecieron capítulos enteros -además de diluirse personajes y cambiarse el nombre de familias enteras- y sufrieron transformaciones radicales los recursos narrativos: aún así, las alteraciones rindieron a favor de la historia, considerada la mejor novela argentina del siglo XX.

[…]

(Julieta Grosso)

O homem é feito não apenas de desesperança, mas também, e fundamentalmente, de fé e esperança; não somente de morte, mas também de ânsias de vida; tampouco unicamente de solidão, mas também de comunhão e amor. A obra de Saint-Exupéry mostra como a literatura pode ser profunda e, não obstante, estar impregnada de cálidos sentimentos positivos. Disse Nietzsche que um pessimista é um idealista ressentido. Se modificarmos levemente o aforismo, dizendo que é um idealista desiludido, daí poderíamos passar a sustentar que é um homem que não termina jamais de se desiludir, pois há na condição psicológica do idealista uma espécie de ingenuidade inesgotável. E assim como a desilusão nasce da ilusão, a desesperança surge da esperança; mas uma e outra, desilusão e desesperança, são curiosamente o signo da profunda e generosa fé no homem.

(Ernesto Sabato)

Porto Alegre Em Cena abre em clima de celebração

Publicado originalmente no Sul21.

Com um estupendo show do sérvio Goran Bregovic and His Wedding & Funeral Band foi iniciado ontem à noite o Porto Alegre Em Cena 2010, que vai até o dia 27 de setembro.

Filho de um croata e de uma sérvia, Bregovic é um bósnio de curiosa trajetória no mundo da música popular de seu país. Originariamente violinista, trocou o violino pela guitarra e, nos anos 70, influenciado pelo Led Zeppelin e Black Sabbath, participou de um grupo de rock do qual era a grande estrela. Depois, foi lentamente se aproximando da música dos Bálcãs, tornou-se um importante compositor para filmes – escreveu várias trilhas para Emir Kusturica – e hoje diz ser o maestro de um Frankenstein, fazendo uma mistura de música cigana e de tudo o que há nos Bálcãs.

Bregovic descreve sua obra atual como “feita nos Bálcãs, dirigida aos Bálcãs”. Conforme a célebre frase de Tolstói – “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia” – , o maestro que era uma celebridade roqueira em seu país, só tornou-se universal ao focar sua obra em suas origens.

A formação da Wedding & Funeral Band diz muito sobre a sonoridade da música de Goran. São 18 músicos: Bregovic na guitarra, um cantor-baterista, um naipe de 5 metais (2 trompetes, 2 trompas e sax), um coral masculino de 5 vozes, duas extraordinárias cantoras búlgaras e mais um quarteto de cordas (2 violinos, viola e violoncelo). Só esta descrição já demonstra o gênero de Franskestein montado. O resultado é uma música exuberante, de ritmos empolgantes, dançantes e nada simples.

Misturando temas do CD Alkohol com anteriores – Karmen with a happy end, Underground, Tales & Songs from Weddings and Funerals, Queen Margot e da liturgia leiga My heart has become tolerant – , Bregovic dá uma ampla noção do caráter e da grandeza de suas composições. Aliás, o maestro costuma avançar lentamente em sua discografia apresentando, a cada CD, seis ou sete canções novas e outras tantas releituras de canções já apresentadas, sempre em versões inteiramente modificadas e às vezes radicalmente ampliadas. Foi o caso do show de ontem em que mesmo suas mais conhecidas melodias receberam nova roupagem.

A música de Bregovic pode ser quase erudita em alguns momentos, mas basicamente é feita para a dança e a bebida. Como ele mesmo diz, a música dos Bálcãs não nasceu para acompanhar a religião ou o trabalho em campos de algodão, mas para servir de acompanhamento à bebida e, como tal, é feliz, exagerada e louca. O tamanho do concerto também revela a imoderação balcânica: ontem, tivemos 2h50 de música sem intervalos. Como disse a atriz Mirna Spritzer à saída do Bourbon Country ontem à noite: “Depois disso, assistir o quê? Só não sei como eles aguentam tocar todo esse tempo…”.

Importante: apesar do anúncio de “lotado”, havia cortesias à venda por R$ 20,00 ontem, minutos antes do concerto. É de graça.

Goran Bregovic está em Porto Alegre e a terra vai tremer

Pois é. Goran Bregovic fará hoje e amanhã, 8 e 9 de setembro, a abertura do Porto Alegre Em Cena de 2010. Ele já veio a Porto Alegre, todo mundo que eu conheço parece tê-lo visto, menos eu… Eu apenas tenho todos os discos. Mas, desta vez, já tenho garantido meu ingresso e os de toda a família. Vamos vê-lo hoje.


O show é Alkohol, cuja história já foi contada neste post. Bregovic vem com grande banda, a Wedding & Funeral Band — são os habituais metais, a guitarra, os tambores, o sexteto de vozes masculinas e as tais loiras búlgaras de cujas vozes meus amigos tanto falam. Sua chegada a um hotel qualquer de Porto Alegre poderá não ser tão feliz quando esta…

Al llegar al hotel en Buenos Aires me dieron un sobre que me habían dejado de parte de Sábato. Contenía un libro, Sobre héroes y tumbas, y una carta en la que me pedía disculpas por no acudir al concierto. Me explicaba que mi música le había salvado en momentos de depresión. Lo curioso es que cuando hice el servicio militar en Nis, en la época comunista, robé de la biblioteca del cuartel un ejemplar de ese libro. Lo tuve en mi casa de Sarajevo durante años y lo perdí. Con la guerra perdí todo, también mi biblioteca. Puedes empezar dos veces tu vida, pero no puedes empezar dos veces una biblioteca. Todas las cosas grandes que me han pasado están guiadas por cosas pequeñas que se vuelven grandes, como el libro de Sábato.

… mas espero que todo o enorme grupo tenha chegado bem e animado. Além das músicas de Alkohol, Bregovic e sua banda, em show de 2h30, vão tocar músicas de discos anteriores como A Divina Comédia: Inferno, o livro da alma e Karmen com Final Feliz.

Domingo, ele esteve em Brasília. O que houve? Ora…

Alguns juram ter sentido um tremor de terra na região do Museu da República na noite de domingo (5/9). O epicentro do fenômeno era a agitação de cerca de 6 mil pessoas pulando durante a performance do músico sérvio Goran Bregovic. O show de encerramento do Cena Contemporânea 2010 começou com Gas, gas, gas, do álbum Alkohol. Daí para a frente, a performance de Bregovic oscilaria entre momentos festivos até a bela eloquência de uma ópera. “Vamos executar algumas coisas que fiz para o cinema, ópera e músicas dos meus discos. Espero que gostem do meu show”, declarou em inglês.

Acompanhado da Orquestra para Casamentos e Funerais, formada por sete cantores, cinco instrumentistas de sopro, três violinos e um violoncelo, o músico segurou uma apresentação de mais de duas horas de duração. “Nós podemos nos apresentar em funerais de um político ou de gente comum. Mas não morra. Nosso cachê é mais alto em funerais”, brincou Bregovic. Em Kalashinikov, a plateia era convidada a gritar em coro: “Atacar!”. Momentos instrospectivos também tiveram espaço como em In the deathcar, do filme Arizona dream – Um sonho americano, uma das várias trilhas sonoras assinadas pelo músico para o cineasta conterrâneo Emir Kusturica.

Pela primeira vez em Brasília, o sérvio se apresentou justamente no dia mais seco do ano, com a umidade relativa do ar a 12%. “Eu ainda não pude fazer um passeio. Mas é quase um milagre que essa cidade exista. Não existe nada parecido no mundo”, concluiu. Como todo músico estrangeiro, Bregovic fez uma observação. “Venho ao Brasil sempre para saber que os músicos brasileiros são muito bons. Bem melhores do que eu”, declarou ainda no camarim.

“Para vocês, pode parecer que o nosso repertório é tradicional. Mas o que faço é música contemporânea”, comentou o artista sobre o próprio trabalho adotado por DJs do mundo inteiro. Na plateia, o músico Vavá Afioni analisava a apresentação. “Apesar do clima festivo, eles têm canções com cadências bem complexas. Todos são exímios instrumentistas”, observou. Mesmo depois do fim da apresentação, o público não arredou pé do museu.

Do Correio Braziliense.

Hoje, a Terra vai tremer em Porto Alegre.

A biblioteca perdida de Goran Bregovic

Goran Bregovic está excursionando pela Espanha para apresentar o novo CD, Alkohol, já comentado por mim. Hoje, El Pais publicou uma entrevista sua. Há nela alguns aspectos comoventes e outros que me interessaram muito. Para variar, quem me enviou o link foi Helen Osório. Faço um resumo abaixo:

Goran considera-se iugoslavo: Si tu país desaparece, descubres que no era algo político ni geográfico, sino emocional. No me siento represente de una nación o un Estado. Sólo represento ese territorio emocional que no tiene nada que ver con la política.

O que diz sobre os criminosos de guerra: Creo que conozco a casi todos los criminales de guerra. Conozco a Radovan Karadzic, que antes de la guerra era poeta. Algunos de mis profesores de la Facultad de Filosofía están en La Haya. Eran políticos pequeños que creyeron interpretar personajes históricos. Los seres humanos están condicionados. Si les dejas la oportunidad de convertirse en animales se convertirán en animales. La cultura no nos protege.

Sobre o poder da arte mudar as pessoas: A los artistas occidentales les gusta decir grandes cosas, como que la música puede cambiar el mundo. Vengo de un país comunista y sé dónde está el poder. Aunque trabajo con la misma temperatura que los artistas occidentales, sé que hay un largo camino hasta ser iluminado. Las luces pequeñas ayudan, pero en el fondo no cambian nada.

Sobre uma destas pequenas luzes, ele narra um acontecimento quando de seu primeiro concerto em Buenos Aires: Al llegar al hotel me dieron un sobre que me habían dejado de parte de Sábato. Contenía un libro, Sobre héroes y tumbas, y una carta en la que me pedía disculpas por no acudir al concierto. Me explicaba que mi música le había salvado en momentos de depresión. Lo curioso es que cuando hice el servicio militar en Nis, en la época comunista, robé de la biblioteca del cuartel un ejemplar de ese libro. Lo tuve en mi casa de Sarajevo durante años y lo perdí. Con la guerra perdí todo, también mi biblioteca. Puedes empezar dos veces tu vida, pero no puedes empezar dos veces una biblioteca. Todas las cosas grandes que me han pasado están guiadas por cosas pequeñas que se vuelven grandes, como el libro de Sábato.

Ele surpreende ao falar sobre algumas acusações de plágio: Me llaman compositor porque compongo lo que ya existe. Así ha sido siempre, desde Stravinski, Gershwin, Bono, Lennon… Se trata de un viejo método: tomas algo de tu tradición, robas y dejas atrás cosas para que otros con talento roben también. La cultura es eso, una transformación continua.

E este filho de pai sérvio e mãe croata, casado com uma muçulmana, finaliza: La guerra no es sólo matar gente, quemar casas, la guerra mata una infraestructura cultural, edificada por los hombres con gran dificultad durante mucho tiempo.

É uma boa entrevista. O que me emocionou foi a referência que ele fez a sua biblioteca perdida:

Com a guerra perdi tudo e também minha biblioteca. Podes começar tua vida duas vezes, mas não podes começar duas vezes uma biblioteca.

Eu nunca tinha pensado nisso. Uma biblioteca pessoal é algo que não se recomeça. Ou ela é inteira ou é um amontoado. Uma biblioteca sem as tantas bobagens lidas durante a adolescência, sem as anotações que não consigo deixar de fazer nos livros e sem as anotações dos amigos, deixaria de contar à sua maneira minha história e a de meu tempo. Eu não iria morrer sem esses 3000 ou mais paralelepípedos cheios de pó mal organizados às minhas costas. Mas perderia o meu mais importante meio de recordações, pois só consigo chegar ao Milton de 15 anos quando abro O Lobo da Estepe e constato o quanto amei e manuseei aquele exato livro que hoje leria com enfado. E quando abro Baía dos Tigres sei onde estava e o que pensava enquanto o lia e o mesmo ocorre com quase todos os outros. Sei lá por quê, minha vida tem largos períodos sem fotos e minha memória associa-se sempre aos livros. Não sei se esta é uma sensação comum às pessoas que leem permanentemente. Não sei mesmo. Aliás, antes do dia de hoje nem sabia que uma biblioteca não se recomeçava…

Alkohol (Sljivovica & Champagne), de Goran Bregović

Minha mãe divorciou-se de meu pai porque, como muitos oficiais, ele bebia exageradamente a Sljivovica (*). Depois que ela o deixou, ele começou um tratamento a fim de livrar-se da bebida. Pelos 15 anos seguintes ele não bebeu. Minha mãe morreu de leucemia.

A segunda mulher de meu pai contou-me que ela algumas vezes o seguia secretamente pelas ruas. Noite após noite, meu pai podia ser visto sentado, fumando até o nascer do sol debaixo da janela do hospital onde minha mãe agonizara no terceiro andar. Era um hospital militar localizado em Split.

Depois, ele retornou a sua vila na fronteira com a Hungria e plantou vinhedos com os quais produzia 1000 litros por ano. Ele sobreviveu 20 anos a minha mãe e bebia seus 1000 litros mais ou menos sozinho.

Eu dedico ALKOHOL a meus pais.

Texto introdutório do último CD de Goran Bregović, traduzido meio de qualquer jeito por mim.

Eu gosto muito de Goran Bregović. Como todo mundo, conheci-o como autor das trilhas sonoras de alguns dos principais filmes de Emir Kusturica. São trilhas alucinadas, de uma criatividade absolutamente estupefaciente — se há alguma dúvida, ouça a de Underground e a de Black Cat, White Cat –, sempre levadas por ritmos ciganos cujas melodias são ou conduzidas ou ornamentadas por um naipe de metais de contínuo e desencontrado vibrato. Um espanto. Depois de baixar uns dez de seus CDs na rede e de comprar outros seis, descobri que Bregović é menos prolífico como compositor do que eu imaginava e que a área onde é imbatível é a dos arranjos. Por exemplo, neste Alkohol há treze faixas, das quais 4 já estiveram em CDs anteriores e outras duas são de temas tradicionais sérvios. Só que as canções repetidas – e cada canção do CD – recebem uma roupagem tão diferente, original e individual que é impossível não admirar a arte de Bregović. O homem faz três ou quatro arranjos para cada uma e a gente gosta de todos.

Para seus padrões habituais, é um disco de camarístico: esta versão da Wedding and Funeral Band conta com apenas 5 metais (dois trompetes, sax, trompa e tuba), duas cantoras, um percussionista, um baixo e a guitarra e a voz de Bregović. Os destaques ficam para Yeremia, Truckers` song, On the back-seat of my car, Streets are drunk e Gas gas gas. Num disco chamado Alkohol, só há lugar para uma balada: For Esma. O resto é uma paulada atrás da outra.

Filho de um pai croata e uma mãe sérvia, Goran Bregovic nasceu em Sarajevo, é casado com uma bósnia mulçumana. Ou seja, a Guerra dos Balcãs poderia ter ocorrido dentro de casa… Sua música tem enorme influência cigana: “uma música moderna que reúne fusões diversas e que espelha o ecletismo natural da sua cultura” – mas ele também fez parte de um grupo de rock na ex-Iugoslávia… Na verdade, Bregovic alterna loucura cigana com momentos quase eruditos e umas pitadas de rock. É popularíssimo em toda a Europa. Os ingressos para seus concertos são disputados.

Para quem desconhece Bregovic, coloco abaixo a versão original do clássico Kalashnikov (sim, uma “homenagem” à arma favorita de nove entre dez guerrilheiros, criada por Mikhail Timofeevich Kalashnikov). A canção foi utilizada por Kusturica em Underground e esta interpretação é a mais indicada para quem não a conhece:

A versão do Wedding atual, ao vivo.

E uma inacreditável versão sinfônica deste hino da Sérvia.

Para baixar a bola, Cesária Évora cantando Ausência em seu português de Cabo Verde:

E finalizando, uma explicação sobre a Sljivovica:

(*)
Autumn has arrived, along with the need for comfort, delicious rich foods and of course hot plum brandy “sljivovica”. Before 5PM it is medicine, after 5PM it’s alcohol.

Como preparar:

Things you’ll need:

* 2 cups of plum brandy (Serbian or Croatian)
* 2 tbs. of sugar
* 1 tbs of water

Step1: Place sugar and water in a small-medium size pot. Cook it on medium temperature until golden brown. Stay next to the pot, since it may burn quickly.

Step2: Pour 2 cups of plum brandy over caramelized sugar. Turn the heat down a little.

Step3: Begin swirling the pot to slowly melt the sugar. This may take couple of minutes.

Step4: When sugar melts, pour into small glasses.

Step5: Serve with a smile.