A biblioteca perdida de Goran Bregovic

Goran Bregovic está excursionando pela Espanha para apresentar o novo CD, Alkohol, já comentado por mim. Hoje, El Pais publicou uma entrevista sua. Há nela alguns aspectos comoventes e outros que me interessaram muito. Para variar, quem me enviou o link foi Helen Osório. Faço um resumo abaixo:

Goran considera-se iugoslavo: Si tu país desaparece, descubres que no era algo político ni geográfico, sino emocional. No me siento represente de una nación o un Estado. Sólo represento ese territorio emocional que no tiene nada que ver con la política.

O que diz sobre os criminosos de guerra: Creo que conozco a casi todos los criminales de guerra. Conozco a Radovan Karadzic, que antes de la guerra era poeta. Algunos de mis profesores de la Facultad de Filosofía están en La Haya. Eran políticos pequeños que creyeron interpretar personajes históricos. Los seres humanos están condicionados. Si les dejas la oportunidad de convertirse en animales se convertirán en animales. La cultura no nos protege.

Sobre o poder da arte mudar as pessoas: A los artistas occidentales les gusta decir grandes cosas, como que la música puede cambiar el mundo. Vengo de un país comunista y sé dónde está el poder. Aunque trabajo con la misma temperatura que los artistas occidentales, sé que hay un largo camino hasta ser iluminado. Las luces pequeñas ayudan, pero en el fondo no cambian nada.

Sobre uma destas pequenas luzes, ele narra um acontecimento quando de seu primeiro concerto em Buenos Aires: Al llegar al hotel me dieron un sobre que me habían dejado de parte de Sábato. Contenía un libro, Sobre héroes y tumbas, y una carta en la que me pedía disculpas por no acudir al concierto. Me explicaba que mi música le había salvado en momentos de depresión. Lo curioso es que cuando hice el servicio militar en Nis, en la época comunista, robé de la biblioteca del cuartel un ejemplar de ese libro. Lo tuve en mi casa de Sarajevo durante años y lo perdí. Con la guerra perdí todo, también mi biblioteca. Puedes empezar dos veces tu vida, pero no puedes empezar dos veces una biblioteca. Todas las cosas grandes que me han pasado están guiadas por cosas pequeñas que se vuelven grandes, como el libro de Sábato.

Ele surpreende ao falar sobre algumas acusações de plágio: Me llaman compositor porque compongo lo que ya existe. Así ha sido siempre, desde Stravinski, Gershwin, Bono, Lennon… Se trata de un viejo método: tomas algo de tu tradición, robas y dejas atrás cosas para que otros con talento roben también. La cultura es eso, una transformación continua.

E este filho de pai sérvio e mãe croata, casado com uma muçulmana, finaliza: La guerra no es sólo matar gente, quemar casas, la guerra mata una infraestructura cultural, edificada por los hombres con gran dificultad durante mucho tiempo.

É uma boa entrevista. O que me emocionou foi a referência que ele fez a sua biblioteca perdida:

Com a guerra perdi tudo e também minha biblioteca. Podes começar tua vida duas vezes, mas não podes começar duas vezes uma biblioteca.

Eu nunca tinha pensado nisso. Uma biblioteca pessoal é algo que não se recomeça. Ou ela é inteira ou é um amontoado. Uma biblioteca sem as tantas bobagens lidas durante a adolescência, sem as anotações que não consigo deixar de fazer nos livros e sem as anotações dos amigos, deixaria de contar à sua maneira minha história e a de meu tempo. Eu não iria morrer sem esses 3000 ou mais paralelepípedos cheios de pó mal organizados às minhas costas. Mas perderia o meu mais importante meio de recordações, pois só consigo chegar ao Milton de 15 anos quando abro O Lobo da Estepe e constato o quanto amei e manuseei aquele exato livro que hoje leria com enfado. E quando abro Baía dos Tigres sei onde estava e o que pensava enquanto o lia e o mesmo ocorre com quase todos os outros. Sei lá por quê, minha vida tem largos períodos sem fotos e minha memória associa-se sempre aos livros. Não sei se esta é uma sensação comum às pessoas que leem permanentemente. Não sei mesmo. Aliás, antes do dia de hoje nem sabia que uma biblioteca não se recomeçava…

27 comments / Add your comment below

  1. Pois esse post me dá vontade de cortar cabelo e fazer barba.
    Tá eu sei. Isso foi feio!
    Tô brincando, muito lindas tuas reflexões finais sobre tua biblioteca e tuas lembranças. bj, f

    1. Flavia, Flavia, ….

      deixa o nosso cigano na sua própria natureza.
      não viste “A vida é um milagre” do Kusturica?
      Eu deixaria ele exatamente assim, despenteado com a barba um pouco áspera e ainda preferiria vê-lo na saída de um recital, ou seja, cheio de Sljivovica e feromônios…

      1. Pois eu deixei de ver A vida é um milagre no cinema, por me encontrar bastante ocupado naquele então, e uma vez a cada dois meses pergunto na locadora se eles têm, e nada…
        onde acho? em porto alegre…
        ah, rever underground, um dever…

        1. Pô não vi, mas acho que tem gosto para tudo…
          Mas ja que quem avalia é a esposa do bonitão dono da casa, estou disposta a rever meus conceitos…
          KKKKKKKKKKKKKKKK
          bjs para o casal!

  2. Também costumo associar as priscas eras aos livros lidos por lá. Encantei-me com Hesse (carregava Demian e O lobo da estepe como aqueles fanáticos carregam a Bíblia – tipo assim um desodorante). Foi lá pelos 15-16 anos. Não tentaria lê-los novamente: é certo que perderia muito do encanto que permanece em minha memória afetiva.

  3. Primeiro uma coisa engraçada: ontem mesmo me lembrei d’O Lobo na Estepe, por causa da discussão da ópera e das carências de recursos culturais. A passagem de Mozart manipulando o rádio onde sua música toca cheia de interferências. É, quem não amava este livro na adolescência, e hoje morre de vergonha por isso… Mas a memória é seletiva, desorganizada e incontrolável: tenho lembrança dessa passagem do livro e não de muitas outras que poderia jurar, à época, “marcaram minha vida”, e hoje não retornam nem como ruído num pesadelo noturno.

    Do Goran, uma observação análoga feita pelo Tom Jobim acerca da criação musical, algo como “um compositor medíocre cita e credita, um gênio vai lá e rouba mesmo”. Engraçado, Tom roubava e não era um gênio… será Goran?

    Deve ser estranho ser criado em um país que depois se desmembra em microterritórios que insistem no status de nações independentes, mas são, no máximo, colônias exploradas por corporações. Talvez a Iugoslávia de Tito não seja memorável, mas será um país Montenegro?

    Por último, a biblioteca. Penso que as bibliotecas são continuamente refeitas por nós, sem que saibamos. Uns livros se perdem e outros são destacados em nossa estante mental, livros que sequer lemos, mas que nos foram recomendados por peessoas queridas e compõe nossos imaginários de amantes deslocados. Não há “a” biblioteca nem “nossa” biblioteca, isso parece nostalgia de Alexandria, um sonho que a humanidade alimenta sobre compêndios absolutos, algo que nos explique e nos dê sentido, mas estamos, hoje, velhos demais para crer nessas bobagens. As bibliotecas físicas bombardeadas não precisam ser refeitas: elas seguem queimando dentro de nós, lembrança que cismamos em colar com nossas noções de Paraíso Perdido. Talvez por isso o gosto humano pela música, essas substância etérea evocativa que em nós se transforma em química inebriante, a produzir embriaguez mergulhada em memórias, e o ser humano, isso é uma de suas qualidades e o maior de seus defeitos, ama a si mesmo e a tudo que a ele se refira especialmente, principalmente o que não pode ser dito senão pelo neurônio que dispara e ilumina de forma efêmera as vias melancólicas de nossa vida, resultando, paradoxalmente, em fugaz alegria.

    Bem, como queria alguém aí de cima, um quase poema em quase prosa.

  4. Caro Milton, leio o seu blog, mas nao comento nunca. Mas hoje, lendo os trechos da entrevista do Goran Bregovic, parei um pouco a correria aqui em casa para te escrever. Gosto muito do Bregovic, comecei a ouvi-lo em Berlim, onde morei por uns tempos, e a música dele alimentava em mim o pouco saudável de nostalgia dos que moram longe de casa. Mas na verdade, o que ele e eu temos em comum é a perda da biblioteca – é como um trauma. Tudo mesmo eu nao perdi, mas boa parte, nunca consegui contar ao certo quantos volumes: 600, 800? E eu trabalho com livros. Entao, nesse últimos dois anos tenho comprado livros para trabalhar – mas sei que nao é possível, e nem tento, recuperar a antiga bilbioteca. O estranho é que a memória fica: eu tenho esse livro em casa… ah, nao, nao tenho mais. Ainda vai demorar para passar essa sensacao.
    Bem, abraco, obrigada pelo espaco. Andréa.

    1. É triste, Andréa. A gente muitas vezes nem consulta nem reabre o livro, mas sabe que pode. É como ficar sem lastro, sei lá.

      Trabalhas com livros? E qual é o trabalho?

      Beijo.

        1. Sou professora de literatura, ora. Mas mesmo assim, gosto de muito de ler.

          :¬))))

          Compreendo. Os músicos também gostam de dizer que são músicos, mas que ainda assim gostam de ouvir música…

  5. Pois eu gosto muito do Hesse! Acabei de reler o Lobo (tinha lido pela primeira vez também lá pelos meus 16 anos) e acho que gostei ainda mais desta vez.

    1. Eu nunca reli o Lobo, nem Demian, nem Narciso. Meu último contato com Hesse foi há uns dez anos, quando finalmente li O Jogo das Contas de Vidro.

      Um grande livro. Garanto.

      1. também li o livrão do jogo de avelórios, uns dois anos depois do Lobo. É Hesse tentando ascender a Mann, emulando Goethe, etc. Mas, quando li, pude perceber o quão fraquinho era o Narciso e Goldmund e outras obras de Hesse (é melhor nem falar de Sidarta, mas… já falei).

  6. Para não variar, um recorte belíssimo, e ainda por cima fez alguns de meus neurônios fervilharem — o que nem sempre dá bons resultados, diga-se de passagem…

  7. Já eu acho que se recomeça sim. Não sei se tenho pena dos livros perdidos, emprestados e nunca devolvidos, ou levados em uma separação. Acho que a biblioteca segue o mesmo rumo da vida. Minha memória funciona da mesma forma, cada livro está associado a um lugar ou momento específico. Olho para a minha estante e vejo coisas que não deviam estar lá, outras que deviam e não estão. (Exatamente como a vida.) É muito triste comprar um velho livro que se foi, já fiz e isso é realmente triste. Esse comentário está sem pé nem cabeça, acho que eu só queria dizer é que as ausências fazem parte da história. E na lembrança elas podem ser tão bonitas quanto foram quando estavam com a gente. (Enfim, eu me entendo)

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