Modesta reflexão sobre a “arte” de ver filmes

Modesta reflexão sobre a “arte” de ver filmes

Dia desses, em questão de minutos, entraram em meu esquecido Feedly duas críticas acerca do filme argentino O Cidadão Ilustre, de Gastón Duprat e Mariano Cohn. Uma tinha sido publicada domingo e outra segunda-feira. A do domingo era constrangedora. A de segunda-feira era excelente. O fato da primeira ser contrária ao filme não significa nada, há críticas devastadoras que demonstram extrema compreensão de quem viu a obra, assim como é normalíssimo vermos elogios que mal tocam sua superfície. Meus 59 anos me mandam dizer que, quem não sabe ver filmes, habitualmente não sabe ver peças de teatro, e pior, não sabe interpretar livros. Sim, o pacote parece vir instalado completo, sem personalizações, à exceção do caso da música, que merece outro post.

Ontem, apesar da chuva, caminhei bastante pela rua, e pude pensar sobre as armadilhas que os alguns autores modernos exigem de seus leitores-expectadores. Mesmo um filme aparentemente simples como Cópia Fiel, está cheio de armadilhas para serem destrinchadas por um expectador que não seria mais um mero receptor e sim um intérprete que tem de trabalhar um pouquinho para entender o filme. No caso do citado filme de Kiarostami, o quebra-cabeça começa pelo título do filme. O nome original está em italiano, Copie Conforme. Em italiano Copie significa Cópia, mas Coppie é Casal, enquanto Conforme pode ser Fiel ou Conformado. É muito mais do que um trocadilho idiota, tem tudo a ver com o filme.

Refleti principalmente sobre o cinema porque ele é a arte mais pública e comum que temos. É difícil de se encontrar com alguém que leu há pouco exatamente o livro que a gente quer comentar. Já com os filmes é simples. Como estão em cartaz, todos os meus amigos viram O Cidadão Ilustre ou Perdidos em Paris. Dá para trocar ideias. O cinema é a grande cultura pública de nosso tempo.

O problema de certa crítica é não causado pela falta de inteligência, mas antes de falta de vivência ou pura desatenção para com a coisa artística. Lembrei dos ensaios de Bakhtin sobre Dostoiévski e de como O Idiota passou a figurar automaticamente ao lado de Os Irmãos Karamázovi como meu livro preferido de Dostô — sempre acompanhado do primeiro que conheci (a primeira vez a gente nunca esquece), Crime e Castigo. Quando li o que escrevera Bakhtin, tive que voltar a O Idiota e pensar que o título referia-se a alguém como eu… Hum… Ontem, enquanto caminhava, ri sozinho ao lembrar que Marcelo Backes cometera EM LIVRO o erro de deixar por escrito que eu seria o melhor leitor não-profissional que ele conhecera. Acho que dou a impressão de ser alguém mais inteligente do que sou. Que siga assim…

Mas avancemos: considerando aquele comentarista constrangedor e pensando que praticamente todos os grandes cineastas realizam/realizaram trabalhos sobre a linguagem, gente como ele está a ponto de dizer que — para citar apenas os vivos — Sokúrov, Kusturica, von Trier, Lynch, os irmãos Cohen, Moodysson, Sorrentino, Hartley, Polanski, Vinterberg, Haneke, P. T. Anderson são ruins, pois abusam de situações que representam outras.

Não é um assunto que me faça morrer, o que escrevo é uma reflexão vagabunda que é, para mim, nada mais do que uma curiosidade. É que quando li a primeira crítica me pareceu que o cara estava decididamente em outro mundo, numa faixa própria de esquizofrenia e estupidez. Será que ver certos filmes requer alguma especialização?

O cidadao ilustre

A acadêmica é a mais violenta das vaidades

Cartaz de Nota de Rodapé. O filme só está no Guion Center, em Porto Alegre.

O filme Nota de Rodapé, de Joseph Cedar, acendeu todas as minhas luzes internas de “Perigo, perigo!”, como dizia o robô de Perdidos no Espaço. É uma produção israelense absolutamente atemporal e universal, nada tendo a ver com a nojenta política do país. Eliezer e Uriel Shkolnik são pai e filho, ambos  acadêmicos, que dedicam a vida ao estudo do Talmude, o livro sagrado dos judeus. O pai Eliezer é um turrão deprimido que se sente rejeitado pelos colegas. Apesar de passar seus dias estudando em bibliotecas com tapa-ouvidos para não ser perturbado pelo mundo, publicou pouco e apenas pode ser orgulhar de uma nota de rodapé num trabalho seminal de sua área de estudo. É o homem de muitos livros (ou papéis) que se vê no cartaz. Por outro lado, Uriel é uma estrela ascendente bajulada por seus pares, um bando de inexplicáveis semideuses. Também publica muito, vende muito e é sempre reconhecido.

O filme inicia justamente com a cena de umas das premiações recebidas pelo filho. O pai assiste irritado, suportando com dificuldade o desajeitado elogio que o filho lhe faz. Sei que na vida acadêmica, ambiente de estabilidade empregatícia onde grassam paixões e vaidades oceânicas, algumas pessoas — nem todas — cultivam espetaculares ódios. Meu interesse pelo filme acendeu-se de forma ainda mais feérica por ter vivido — ou ter sido casado — com duas mulheres extremamente competitivas na vida universitária. Ou seja, quando o filme começou, logo concluí através de minha experiência: que legal, esses caras vão se matar. Ajeitei-me na cadeira porque sabia que veria gente efetivamente decidida a envenenar a vida do próximo sem a menor compaixão. Não me decepcionei.

Tudo vai caminhando pessimamente na família até que Eliezer, o pai, recebe o Prêmio Israel, a maior distinção acadêmica do país. Como assim? O pai e não o filho?

ATENÇÃO: A partir deste ponto, haverá um alto grau de spoilers. Se você os evita, volte a ler somente a partir do próximo parágrafo em itálico.

Eliezer recebeu a notícia da própria Ministra. Ele, de seu modo discreto, avisou a família e até comemorou. Também muito discretamente, o filho ficou contente por ver o trabalho de seu pai enfim reconhecido, mas, opa, houve um terrível engano. O filho é chamado à Comissão e fica sabendo que o prêmio era para ele, que a secretária errou de Shkolnik na hora de ligar. Em atitude mais ou menos digna, o filho não aceita o prêmio, diz que vai “matar o pai de desgosto” se aceitá-lo. Só que o presidente do juri diz que em hipótese alguma dará o prêmio para Eliezer, com o qual tinha antiga desavença… Numa cena patética e habilmente dirigida por Cedar, dentro de uma pequena sala totalmente inadequada, Uriel e o presidente do juri trocam empurrões. Todos se detestam.

Enquanto isso, em sua casa, Eliezer dá uma entrevista a um jornal onde, instado pela repórter, acaba desajeitadamente demonstrando seu desprezo pelo trabalho do filho, que faria pesquisas sem nenhuma profundidade e critério. Coisinhas superficiais.

Mesmo assim, Uriel volta a se reunir com o principal jurado e o último força um acordo.

— Certo, eu dou o prêmio a teu pai, mas, primeiro, com a condição que você, e não a Comissão Julgadora, escreva o texto laudatório que apresentará Eliezer como vencedor e, segundo, que você nunca mais concorra ao Prêmio Israel, mesmo depois de minha morte.

A surpreendente condição o deixa desesperado. A necessidade de vingar-se, de prejudicar alguém, obriga o presidente do juri a ver Uriel desistindo de outro título, do principal deles. E o que são os acadêmicos do gênero carreirista sem títulos? Com muita raiva, chutando tudo o que vê pela frente, o filho aceita as condições e escreve o texto para seu pai Eliezer. O pai, pesquisador experiente, desconfia que aquelas palavras não são de outro que não de seu filho. Comprova o fato exercendo sua especialidade: compara textos de Uriel, do presidente do juri e da carta recebida e…

Fica absolutamente quieto, indo receber o prêmio. Afinal, é uma distinção.

A partir daqui, no more spoilers.

Não afirmo que todos os acadêmicos tenham este comportamento, mas conheço vários casos. Ah, as viagens, as bolsas, as negociações para assinaturas em trabalhos — tudo conta, tudo conta! — , as escalas. Céus, que dramas! Houve tempo que em todos os sábados à noite eu ouvia fofocas da ADUFRGS (esta sigla, a do Sindicato dos Professores das Instituições Federais do Ensino Superior de Porto Alegre ou Associação dos Docentes da UFRGS, causa-me calafrios). Só eu sei o tédio que passei e os absurdos planejamentos, muitas vezes postos em prática, que ouvi. Um mundo peculiar. Tenho a impressão que o de padres e freiras é semelhante.

O filme de Cedar acerta em resumir grandes partes da história de Nota de Rodapé de forma gráfica e com sons de violinos em pizzicatto. Todas aquelas relações são farsescas e eu, sinceramente, não sei como se faz para produzir conhecimento nestes caldeirões de ódios, vaidades e invejas. Talvez seja necessário, sei lá.

Por falar em prêmios, Nota de Rodapé disputou e perdeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para o iraniano A Separação. Ambos são grandes filmes, mas Hollywood acertou ao escolher o filme de Farhadi, com seu tema muito mais relevante. Não penso que Cedar queira matar o diretor iraniano por causa disso. Quem faz Nota de Rodapé — melhor roteiro no Festival de Cannes de 2011 (ufa, pensa Cedar, ao menos este eu ganhei…) — é superior às questiúnculas vitais, importantíssimas, dos “departamentos”.

Uriel e Eliezer Shkolnik