Para Elena, em seu aniversário

Para Elena, em seu aniversário

Elena, sei que tu estás te desintoxicando da internet. Estás vindo pouco aqui.

Durante este difícil ano, tirei mais fotos de teus pães do que de ti. Te vi mais em roupas de casa, em velhas camisetas minhas.

(Digo a vocês todos que nestas roupas ela parece uma rainha camuflada de contos de fadas. Pois, mesmo no à vontade dos trajes, é clara a nobreza, elegância e a beleza (rimou). E quando ela fala só melhora. Digo-lhe isso da rainha escondida e ela faz aquela cara de quem está ouvindo a maior idiotice).

Cioran disse que a arte de amar é saber unir o temperamento de um vampiro à discrição de uma anêmona. Esqueça, Elena, é muita habilidade para um cara desajeitado como eu. Só que tenho fotos, palavras, histórias, viagens, amor, decisões, planos.

Sabes, hoje, observei como minha mão denuncia a idade. Olhei bem pra ela, frente e verso. Quem ousa ler mãos e traçar destinos se elas se modificam? Vi duas linhas separadas que passam a ficar lado a lado. De repente se cruzam. E depois seguem juntas novamente. O que será aquela intersecção? Algum mal? Iam distraidamente paralelas, se cruzaram, e voltaram a andar lado a lado.

Melhor te dizer logo no ouvido aquelas três palavras simples que somam sete letras e dar fim ao textão.

Acrescento duas fotos tuas. A primeira é engraçada. Por algum motivo, adoro a segunda, um daqueles bonitos erros fotográficos.

Eu e Elena

Eu e Elena

Primeiro, eu vi Elena com seu violino na Ospa e fiquei boquiaberto. Como ela é linda! Eu não sabia que ela lia o meu blog, que ainda existe — como iria imaginar? Depois, há exatos 9 anos, ela me pediu amizade no Face e começamos uma educada querelinha sobre música. Quando conversamos ao vivo, fiquei duplamente besta. Muito inteligente, bela voz, uma piadista de primeira. Sou um idiota sonhador e sempre acreditei que acabaríamos juntos. Às vezes acerto.

Fico sempre muito feliz ao vê-la, o que ocorre a toda hora. Por exemplo, se eu for na sala agora, ela estará vendo SVU. Se o filme não estiver muito tenso, vai sorrir pra mim.

O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman

O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman

Ia escrever hoje sobre obra-prima de Bergman, que revimos neste fim de semana. Mas este artigo me pareceu tão explicativo que resolvi apenas copiá-lo. Até porque não gostaria de perdê-lo. As fotos foram colocadas por mim. (MR)

Por Cibele Carvalho Quinelo

O Diretor

Ernest Ingmar Bergman nasceu em Uppsala, na Suécia, em 1918. Filho de um pastor luterano, teve uma infância rígida, marcada por castigos psicológicos e corporais, temas freqüentes em seus trabalhos.

Começou a fazer e dirigir teatro ainda adolescente. Tornou-se famoso como roteirista na Suécia, escrevia para os maiores cineastas da época, e, com Sorrisos de Uma Noite de Amor fez seu nome como diretor de cinema, mas foi com O Sétimo Selo que ganhou fama internacional.

Foi o principal responsável pela recuperação, para o cinema sueco, do prestígio que este perdera na década de 20, com a partida de importantes cineastas para Hollywood.

Fez um total de 54 filmes, 39 peças para o radio e 126 produções teatrais, onde seus temas principais eram Deus, a Morte, a vida, o amor, a solidão, o universo feminino e a incomunicabilidade entre casais, tema onde foi pioneiro no cinema. Tornou-se autor completo de seus filmes e renovou a linguagem cinematográfica. Seus primeiros filmes trazem com frequência influências do naturalismo e do romantismo do cinema francês dos anos 30. Alguns chegaram a ser repelidos por causa do erotismo e expressionismo.

Bergman batendo um papo com a morte
Bergman batendo um papo com a morte

É muito conhecido por seu domínio do métier, por seu conhecimento técnico de câmera, luzes, processos de montagem, criação de personagens e qualidade de celuloide e som. Sempre trabalhava com a mesma equipe técnica e atores.

Ganhou Oscar com os filmes A Fonte da Donzela e Fanny e Alexander.

Da peça ao filme

Bergman dava aulas na Escola de Teatro de Malmö, em 1955. Procurava uma peça para encenar para alguns jovens. Acreditava que essa era a melhor maneira de ensinar. Nada encontrou e então resolveu escrever ele mesmo, dando o titulo de Uma pintura em madeira.

Era um exercício simples e consistia num certo numero de monólogos, menos uma parte. Um dos alunos se preparava para o setor de comédia musical, tinha uma aparência muito boa e ótima voz quando cantava, mas quando falava era uma catástrofe, ficando com o papel de mudo, e ele era o cavaleiro.

Trabalhou bastante com seus alunos e montou a peça. Ocorreu-lhe um dia que deveria fazer um filme da peça e tudo aconteceu naturalmente. Estava hospitalizado no Karolinska, em Estocolmo, o estomago não estava muito bom, e escreveu o roteiro, passando o script para o Svensk Film Industri, que não foi aceito, e só quando veio o sucesso Sorrisos de uma noite de amor (filme que recebeu um premio importante no festival de Cannes) que Ingmar obteve permissão para filmá-lo.

Bergman disse em uma entrevista “Foi baratíssimo e muito simples”, mas na biografia critica de Peter Cowie, a origem de O Sétimo Selo é tratada de modo a aparecer um pouco menos simples. Cowie fornece mais pormenores do que Bergman sugere, diz, que a peça original é um ato para dez estudantes, entre eles Gunnar Bjornstrand, e foi levada a cena pelo próprio Bergman em 1955. Mas a encenação que arrebatou a critica ocorreu em setembro do mesmo ano quando um outro elenco, que contava com a presença de Bibi Anderson dessa vez, representou no Teatro Dramático Real de Estocolmo, sob a direção de Bengt Ekerot (ator e diretor renomado que interpretou a Morte em O Sétimo Selo).

Apenas alguns elementos foram aproveitados no roteiro final do filme: o medo da peste, a queima da feiticeira, a Dança da Morte. Mas a partida de xadrez entre a Morte e o Cavaleiro não havia, e, nem existia o artístico-bufanesco “santo casal” Jof e Mia com seu bebê. Somente Jons, o Escudeiro, não sofreu mudanças.

vamos jogar o setimo selo

Bergman retornou a Suécia, reescreveu o roteiro e reuniu a equipe. Deram-lhe trinta e cinco dias e um orçamento apertado. Foram gastos cerca de 150 mil dólares e o diretor manteve-se dentro do cronograma e do orçamento. O filme foi feito em 1956 e estreou na Suécia em fevereiro de 1957.

Contexto Histórico

O século XIV, que é a época diegética de O Sétimo Selo, assinala o apogeu da crise do sistema feudal, representada pelo trinômio “guerra, peste e fome”, que juntamente com a morte, compõem simbolicamente os “quatro cavaleiros do apocalipse” no final da Idade Média.

Inicialmente, a decadência do feudalismo resulta de problemas estruturais, quando no século XI, a elevada densidade demográfica na Europa, determinou a necessidade de crescimento na produção de alimentos, levando os senhores feudais aumentarem a exploração sobre os servos, que iniciaram uma série de revoltas e fugas, agravando a crise já existente.

As cruzadas entre os séculos XI e XIII representaram um outro revés para o sistema feudal, já que os seus objetivos mais imediatos não foram alcançados: Jerusalém não foi reconquistada pelos cristãos, o cristianismo não foi reunificado, e a crise feudal não foi sequer minimizada, já que a reabertura do mar Mediterrâneo promoveu o Renascimento Comercial e Urbano, que já contextualizam o “pré-capitalismo”, na passagem da Idade Média para a Moderna.

cavaleiro o setimo selo

O trinômio “guerra, peste e fome”, que marcou o século XIV, afetou tanto o feudalismo decadente, como o capitalismo nascente. A Guerra dos Cem Anos (1337-1453) entre França e Inglaterra devastou grande parte da Europa ocidental, enquanto que a “peste negra” eliminou cerca de 1/3 da população européia. A destruição dos campos, assolando plantações e rebanhos, trouxe a fome e a morte.

Nesse contexto de transição do feudalismo para o capitalismo, além do desenvolvimento do comércio monetário, notamos transformações sociais, com a projeção da burguesia, políticas com a formação das monarquias nacionais, culturais com o antropocentrismo e racionalismo renascentistas, e até religiosas com a Reforma Protestante e a Contra Reforma.

O filme toca imaginativamente nesse mundo antigo, saturado de feiticeiras, cavalos, fome, peste e fé, depositando confiança em nossa imaginação.

bruxa o setimo selo

O filme

Foi o décimo filme que Bergman dirigiu e é uma de suas poucas tramas não-realistas. O roteiro original se lê como peça de teatro e poderia, com alguns retoques, ser montada como tal. Não se encontra nenhum Plano Geral, Zoom ou Pan, nada de Exterior Dia Floresta; nem Interior Dia Taverna; é como uma peça, com relativamente poucas rubricas. Podemos encontrar muitas influências culturais tanto no filme como no próprio roteiro: o quadro dos dois acrobatas de Picasso; A Saga dos Folkung e O Caminho de Damasco de Strindberg; os afrescos religiosos que Bergman viu na Igreja de Haskeborga.

Houve apenas três dias de locação nas filmagens: a sequência de abertura e as tomadas na encosta do morro. As condições atmosféricas, a locação e a luz eram perfeitas e não foi preciso repetir as tomadas. Foi um filme cheio de improvisações, a maior parte filmado nos estúdios, em Rasunda (Suécia). Bergman conta que em uma sequência na floresta, olhando com muita atenção podemos ver as janelas envidraçadas de um bloco de apartamentos, e a torrente na floresta era o transbordamento de um cano solto que ameaçava inundar o local.

A velocidade do andamento das cenas , como uma cena passa para a outra dizendo tudo o que precisa e encarando grandes e pequenas questões com a mesma seriedade, buscando o óbvio, fazem parte do mundo bergmaniano. A clareza dos diálogos, a maneira teatral como são utilizados, também fazem parte desse mundo.

O filme, assim como toda a obra do diretor no seu início, é considerado neo-expressionista. Os cenários são muito rústicos e simples, a maquiagem é impressionante, e muitas vezes os atores aparecem machucados, ou com dentes podres, desprovidos de qualquer regra de higiene atuais, o que dá mais realismo ao filme.

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O Sétimo Selo foi dedicado a Bibi Andersson e ela, assim como Max Von Sydon, Erland Josephson, Ingrid Thulin, Liv Ullman, Harriet Anderson e Gunnar Bjosrnstrand, que começaram com ele no teatro, se tornaram para sempre “atores bergmanianos” e seguiram carreiras internacionais.

O título é uma referência ao capitulo oito do livro das revelações. A história é simples. Um Cavaleiro e seu Escudeiro voltam das Cruzadas. O país está assolado pela peste. Eles se encontram com a Morte e o Cavaleiro faz um trato com ela: enquanto conseguir contê-la numa partida de xadrez, sua vida será poupada. Na viagem pela terra natal, encontram artistas, fanáticos, ladrões, patifes, mas por toda parte a presença da Morte, empenhada em ganhar o jogo por meios lícitos e ilícitos. No fim, todos, menos os artistas, são arrebanhados por ela. Intelectualmente a trama do filme é entretecida com dois: o da busca, pelo Cavaleiro já desesperado, de alguma prova, alguma confirmação de sua fé, e o da atitude do Escudeiro, para quem não existe nada, para além do corpo em carne e osso, senão o vazio.

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O filme articulou perguntas que não se atrevia fazer: quais eram os sinais verdadeiros de que existia um Deus? Onde estava o testemunho coerente de qualquer benevolência divina? Qual era o propósito da oração? A dúvida do Cavaleiro, sua determinação de se apegar aos exercícios exteriores da crença quando o credo interior estava esmigalhado coincidia com a situação de muitos. Mostrou com uma visão simples e totalmente moderna para a época, o relacionamento de Deus com o Homem.

A natureza religiosa da obra de Bergman se manifesta de imediato no filme. Em uma entrevista declarou que utilizava seus filmes para encarar seus temores pessoais, disse ele: “Tenho medo da maior parte das coisas dessa vida” e “Depois daquele filme ainda penso na morte, mas não é mais uma obsessão”, e em O Sétimo Selo ele enfrentou o seu medo da morte. A Morte está presente todo o tempo, e cada um reage de maneira diferente a ela. Deus e a Morte são os grandes pilares do filme, e em grau menor, mas essencial, mostra seus sentimentos sobre o Amor e a Arte.

A tela destinava-se ao divertimento, quem estivesse em busca da verdadeira substância do pensamento abria um livro. Bergman botou isso de pernas para o ar nesse filme, mostrando um cinema não somente para a diversão, mas também para a reflexão.

As pessoas são geralmente muito sérias acerca do que o diretor considera serem questões sérias: Amor, Morte, Religião, Arte. Sua resoluta preocupação com assuntos sérios, mesmo em suas poucas comédias, o distingue e talvez explique porque em certo sentido ele saiu de moda. Ele insiste em enfrentar o todo da vida com seriedade, aborda o total da existência e o que está acima dela, junto com sua religiosidade, transformando-o num estrangeiro de um mundo pós-moderno e em maior parte descrente.

O senso de humor aparece, às vezes sutil e às vezes mais ostensivo como quando a Morte serra árvore para levar o artista, é a cena mais engraçada do filme. Finamente bem humorado – sobre desafios, negociações e as eternas dúvidas e curiosidades em torno de questões metafísicas que atormentaram, atormentam e atormentarão o ser humano. Acredito que Bergman está presente no filme na angústia do cavaleiro que vê sua vida destituída de sentido, e também no ateísmo de seu fiel amigo Escudeiro.

more Ingmar Bergman, Seventh Seal and 1,000,000 more pictures at www.morethings.com/pictures
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O encontro com a Morte

A cena de abertura dá o tom: antes de qualquer imagem a música Dies Irae começa solene. A tela se ilumina, uma nuvem esbranquiçada que se não estivesse ali deixaria tudo cinza e turbulento. O coro interrompe no corte: uma dramática reelaboração da música de Dies Irae. Uma ave aparece pairando quase imóvel no céu, e o pink noise (silêncio), que é muito usado nos filmes de Bergman, dá ainda mais suspense. Outro corte mostra uma praia pedregosa e uma voz calma e suave lê um trecho do apocalipse, ouve-se o barulho das ondas batendo nas pedras.

O Cavaleiro descansa sobre as pedras e um plano mais fechado nos leva para mais perto da ação: tem um tabuleiro de xadrez ao seu lado, e ele segura uma espada na mão. O Escudeiro também dorme e seu amigo abre os olhos e observa o céu.

O dia está nascendo e Antonius se levanta para lavar o rosto. Logo após ajoelha sobre as pedras e faz uma oração, num intenso plano americano, mas seus lábios não se mexem, talvez não saiba mais rezar. Ele vai até o tabuleiro de xadrez, onde as peças já estão montadas, o silêncio traz uma figura parecida com um monge, um fantasma. O Cavaleiro arruma uma sacola e vê aquela figura. Começam a dialogar (uso de planos gerais): “Quem é você?”, “Eu sou a morte”.

E a morte aparece como um homem, uma presença. Segundo Bergman “Essa é a fascinação do palco e do cinema. Se você pega uma cadeira perfeitamente normal e diz “Eis a cadeira mais cara, fantástica e maravilhosa já feita em todo o mundo”, se você diz isso, todos acreditam. Se o Cavaleiro diz “Você é a Morte”, você acredita nisso” .

confessionario o setimo selo

Em outro plano a Morte abre seu manto a fim de levar o Cavaleiro, sua pele é muita branca e a “música medieval” impulsiona a ação.

Após o trato sentam-se para jogar xadrez. Antonius parece estar muito calmo diante da tão aterrorizante Morte. Há até um pouco de ironia quando as peças negras são sorteadas para serem jogadas pela morte, que diz para o Cavaleiro, “Bem apropriado não acha?”.

A imagem se dissolve e vemos Antonius numa igreja, olhando uma imagem de Jesus Cristo. Seu rosto, e o talento naturalmente, mas a seriedade e a capacidade também de serenidade desse ator valorizam o filme. É um rosto pensante, a procura de um entendimento da vida, uma indagação antiga, às vezes banal que nos convence. Seus momentos de extrema emoção são quando geralmente ele se vê só, salvo, talvez, por Deus.

As sombras aparecem muito, há muito contraste de claro e escuro e os closes nos personagens são muito usados. Bergman usava muito o close-up porque acreditava que eles mostravam muito da personalidade dos personagens. O sino da igreja toca sem parar, a imagem de Cristo aparece novamente, mas não é uma imagem comum, parece deformada e sofredora.

O Cavaleiro revela sua fé, sua busca. As imagens que estão por perto dele são difíceis de identificar por causa da sombra. Ele confessa esperar o conhecimento da vida, e nós vemos, entre as grades do confessionário que a Morte é quem o ouve. Ela não quer ser reconhecida e nos mostra suas más intenções. O sino cessa e eles continuam a falar de Deus e agora da Morte. Antonius está nervoso, revela sua estratégia para vencer a Morte e mostra todo seu desespero e sua surpresa ao ver que ela o enganou. Um primeiro plano mostra a expressão de seus rostos. As sombras e a escuridão tomam conta de quase toda a tela, e vemos apenas o vulto dos personagens e as grades do confessionário. A Morte vai embora, e ele observa sua mão, o sangue que pulsa nela. Antonius Block se apresenta para os espectadores junto com sua fé, coragem e satisfação, talvez até orgulho de jogar xadrez com a Morte.

morte o setimo delo

Os flagelantes

A cena com os flagelantes é maravilhosa. Começa com a apresentação dos artistas, numa inocente maneira de divertir o público do vilarejo. Eles dançam, cantam, brincam, tocam instrumentos quando a música entra, dando um clima de terror a cena. É um contraste ver a alegria dos artistas seguidas de tanta dor, culpa, desespero e fé dos torturadores: “Eles acreditam que a peste é um castigo de Deus por eles serem pecadores”.

Os olhos de Jof e Mia se enchem de espanto, assim como a de todas as pessoas que vêem a procissão. A música é apavorante.

Eles passam por uma porteira carregando Imagens e Cruzes. Pessoas deficientes, muito magras e idosas impressionam. Estão vestidos como monges, com roupas esfarrapadas, se ouve os gritos e o barulho dos chicotes. Os closes aparecem freqüentemente mostrando o espanto das pessoas que vêem os flagelantes passar.

Essa cena foi feita em um só dia, os extras foram feitos em clinicas geriátricas da cidade.

flagelantes o setimo selo

A dança da Morte

Após todos serem arrebanhados pela Morte, o plano que segue é o de Mia, olhando para o céu com seu filho Mickael e Jof ao seu lado, dentro da carroça. Ela acorda o marido e se vêem a salvo. O céu está claro e a cena é a mais iluminada do filme. Eles parecem felizes, os pássaros cantam e, saindo da barraca, jof observa a montanha. Sua expressão é de espanto ao ver todos eles, o ferreiro e lisa, o Cavaleiro, Raval, Jons e Skat, na mais famosa cena do filme, a Dança da Morte. A imagem do ator se difundi com a da dança. “Dançam rumo a escuridão e a chuva cai nos seus rostos”, “No céu tempestuoso”, diz Jof. A trilha impressiona.

“Você e suas fantasias” diz Mia sorrindo, acredita que tudo não passa da imaginação de Jof. Eles vão embora por uma trilha da encosta, os pássaros voltam a cantar e a música agora transmite paz e alegria.

Essa cena foi feita com muita improvisação, tão em cima da hora que um dos atores (o ferreiro) precisou de um dublê. As condições do tempo eram perfeitas e Bergman não precisou repetir a tomada.

danca da morte o setimo selo

O que o Facebook vê quando nos apaixonamos

O que o Facebook vê quando nos apaixonamos

via Fernando Guimarães
tradução e adaptação libérrimas de Milton Ribeiro

Durante os 100 dias antes do início da relação, observamos um aumento lento, mas constante, no número de postagens compartilhadas entre o futuro casal. A outra notícia é que os cientistas do Facebook sabem mesmo demais a nosso respeito.

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Viram? O Facebook pode entender muito bem suas intenções e perspectivas românticas.

Em um post publicado pelo Facebook Data Science, um grupo de cientistas da empresa anunciou que há evidências estatísticas que sugerem claramente o surgimento de relacionamentos antes que eles ocorram.

“Como os casais tornam-se casais”, escreve o cientista de dados Facebook Carlos Diuk, “as duas pessoas entram em um período de aproximação, durante o qual o tempo de Facebook aumenta. Depois que o casal torna-se oficial (em relacionamento sério), seus posts diminuem drasticamente, presumivelmente porque os dois estão felizes e passam mais tempo juntos”.

No post, Diuk dá números claros:

Durante os 100 dias que antecedem o início da relação, observa-se um aumento lento, mas constante, no número de postagens compartilhadas entre o futuro casal. Eles se curtem, chamam a atenção um do outro. Quando a relação começa (“dia 0”), os posts começam a diminuir. Observamos um pico médio de 1,67 postos por dia 12 dias antes do início da relação e depois os números começam a cair. Entendemos que os casais decidem passar mais tempo juntos e as interações on-line dão lugar a interações no mundo físico.

Você pode ver esses dados no gráfico acima. O número de posts no perfil sobe e sobe, até cair quando as coisas se tornam oficiais.

A equipe do Facebook Data Science costuma divulgar informações amorosas dentro do enorme volume de dados da empresa possui sobre relações sociais. Eles também sabem o quanto os relacionamentos duram normalmente e como o amor se correlaciona com religião e idade. Já os dados comerciais eles não gostam tanto de divulgar…

Voltando a nosso tema, Diuk também revela que, ao mesmo que o número de postos diminui, estes se tornam mais felizes. “Observamos uma espetacular melhora no humor após o ‘dia 0’. Aqui está um gráfico descrevendo essa mudança:

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Para a análise de sentimentos como os descritos acima, a ciência está longe de ser perfeita. Os robôs não são muito bons em interpretação e sarcasmo. Mas muitas vezes é interessante saber.

A equipe tomou vários cuidados para não errar muito. A fim de eliminar os falsos relacionamentos do Facebook, ele só analisou os casais que entraram em “relacionamento sério” entre os meses de abril e outubro, evitando os períodos de festas.

Para que seguir postando se há coisas mais legais para fazer agora?
Para que seguir postando se há coisas mais legais para fazer agora?

O Último Concerto (2012), de Yaron Zilberman

O Último Concerto (2012), de Yaron Zilberman

Depois do The Guardian, mas com mais informações, quem sabe… 

O Último Concerto (2012), de Yaron Zilberman, ora em cartaz em todas as capitais brasileiras, é uma boa e inesperada surpresa. É um retrato sincero, inteligente, não muito sentimental — considerando-se que é um filme norte-americano — e bem-construído sobre um músico que foi diagnosticado nos estágios iniciais do Mal de Parkinson. Por favor, esqueçam Amor, de Michael Haneke.

Christopher Walken dá um desempenho suave a Peter, um violoncelista muito amado e admirado, verdadeiro eixo emocional da trama e do Fugue Quartet, o qual trabalha junto há 25 anos. Ele é mais velho e mais sábio do que os outros: o primeiro violinista Daniel (Mark Ivanir), o segundo violinista Robert (Philip Seymour Hoffman) e Juliette (Catherine Keener), os dois últimos formando um casal.

O anúncio de Peter a seus atordoados parceiros desencadeia todos os tipos de repercussões dolorosas de grupo. Quando ouvem a notícia percebem que não são livres. O grande sucesso artístico e a história do quarteto comprova que eles cresceram juntos, organicamente, como uma família. Porém, confrontados com a perda de presença tranquila e apaziguadora de Pedro, eles entram em colapso e passam a duvidar de suas escolhas.

O roteirista teve o bom gosto de centralizar a música apenas no Quarteto, Op. 131, de Beethoven, uma peça de maturidade que exige o mesmo do quarteto. Ela, em seus sete movimentos encadeados, fala sobre a finitude, assunto principal de um filme que também nos mostra como funciona a intimidade de um grupo de pessoas talentosas e de como seus egos acomodam-se. Ou não.

Um belo filme adulto. Gostei muito, porém…

Aviso aos músicos: Apesar do enorme esforço e do trabalho que tiveram para aprender a imitar movimentos de músicos profissionais, para a Elena, minha namorada, o filme foi mais complicado. Violinista de sólida formação musical, ela tinha fechar os olhos para não ver as barbaridades cometidas pelos atores nas posturas dos atores fazendo-se de músicos. Por exemplo, quando Robert testa um violino, ele extraiu um vibrato perfeito para uma peça de Sarasate, só que sua mão esquerda está parada…

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Retrospectiva: os melhores filmes e livros de 2013

Publicado em 24 de dezembro de 2013 no Sul21.

Ah, as listas de fim de ano… Como suportá-las? E como não lê-las, nem que seja para se irritar com a ausência do filme querido ou com a presença daquilo que se detestou visceralmente? Como resultado de ampla discussão no ambiente Sul21, chegamos a dez livros, mas, devido aos muitos e exaltados apartes, não obtivemos chegar ao mesmo número de filmes. Resultado: são dez livros e onze filmes. Os filmes foram comparados e colocados em ordem de preferência. É a cultura pública e comum de nosso tempo. Já os livros não foram lidos por todos, o que tornou a discussão menos drástica.

Aliás, na lista de livros, tivemos a colaboração de Lu Vilella, da Bamboletras, que não apenas fez sua lista como repassou a lista dos livros mais vendidos de sua livraria, talvez a de público “mais literário” de Porto Alegre. E, nos filmes, algo de estranho: contrariamente aos últimos anos e em contrariedade à legenda da foto abaixo, temos onze filmes consistentemente bons.

Cena de abertura da obra-prima Holy Motors: todos dormem assistindo a chatice do cinema atual...
Cena de abertura da obra-prima Holy Motors: todos dormem assistindo a pasmaceira do cinema atual…

Além de Lu Vilella, colaboraram os jornalistas Iuri Müller e Débora Fogliatto, além do historiador Éder Silveira e diversos sites de editoras, dos quais utilizamos textos.

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Os onze melhores filmes de 2013:

~ 1 ~
Tabu

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Tabu é grande cinema. E esta afirmativa vem carregada de significados. Pois são as imagens da segunda parte do filme, “O Paraíso Perdido” — trecho com som, mas sem diálogos –, que dão sentido a esta elogiadíssima obra do português Miguel Gomes. Aliás, a seção “O Paraíso Perdido” é uma arrebatadora reconstrução da memória de tempos idos. Tabu foi filmado em glorioso preto e branco e conta uma história de amor. Dele emana um charme passadista, mas sem ranço, devido a uma estrutura narrativa lotada de artifícios inteligentes e de bom gosto. Tudo em Tabu trabalha para a poesia e para a história. Um filme imperdível.

~ 2 ~
Holy Motors

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Leos Carax filma pouco, infelizmente. Seus Sangue Ruim (1986) e Os Amantes de Pont-Neuf (1991) são filmes de referência para os cinéfilos. Holy Motors (2012) não é uma obra destinada àqueles que desejam uma história linear e convencional. O Sr. Oscar — vivido por Denis Lavant, ator onipresente nos filmes de Carax — tem um estranho trabalho. Anda de limusine por Paris, recebendo ordens para atuar em diversos papéis que lhe são passados por uma estranha organização. E percorre a cidade cumprindo uma série de compromissos sem nexo entre si, onde humor e drama não estão ausentes. Há uma cena de dança, outra em esgotos e cemitérios, há outra em o Sr. Oscar morre de forma tocante (e subitamente acorda para o próximo compromisso), outra é um crime e assim vamos visitando diversos gêneros cinematográficos que deságuam numa intrigante cena final, onde várias limusines comentam que o mundo não quer mais emoção, no que parece uma crítica ao cinema atual. Quem é sua plateia? Onde estão as câmeras? Qual sua verdadeira identidade?

~ 3 ~
A Bela que Dorme

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A Bela que Dorme, o último filme de Marco Bellocchio, tem como eixo narrativo a história real de Eluana Englaro, italiana que passou vinte anos vivendo de maneira artificial e gerou enorme debate sobre a eutanásia no país. Assim, diversos personagens e situações convergem para o drama de Eluana – como o senador que se vê em crise com a política e se posiciona de forma contrária ao seu partido sobre a questão, a filha religiosa do político que se apaixona por um manifestante, e a suicida que busca as janelas de um hospital italiano para pôr fim à vida. Em A Bela que Dorme, estão contidos os temas pendentes da Itália de hoje e o direito à salvação – da ou pela morte – dos seus taciturnos personagens. (Por Iuri Müller.)

~ 4 ~
O Cavalo de Turim

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O que Béla Tarr propõe é uma experiência sensorial e semântica inteiramente distinta do que é possível em qualquer outro gênero artístico. O jogo que o diretor estabelece com o tempo apenas é possível no cinema, talvez no teatro. O Cavalo de Turim mostra seis dias de dois personagens — pai e filha — que vivem numa casa de pedra na zona rural da Hungria entre a aridez, o vento e o frio constantes. Falta tudo, tudo é monotonia e tudo é vida, dor e trabalho. (Coincidência, não?) Eles só têm batatas para comer, têm também um poço minguante, um destilado que deve ser parecido com a vodka, creio, e um cavalo velho e doente. Seus dias são iguais, com poucas variações, sempre no aguardo de condições melhores. Talvez a melhor descrição de O Cavalo de Turim seja a de um filme de cenas quase iguais — mas sempre filmadas de forma diferente — sobre a pesada rotina de vidas sacrificadas. Tarr vai curiosamente acumulando tempo sobre tempo e sua insistência acaba por mostrar a força e o cansaço, equilibrando-se entre a tão somente sobrevivência e a provável aniquilação, numa compassiva melancolia da resistência. Duro, mas imperdível.

~ 5 ~
O Som ao Redor

kleber mendonca filho

Filmaço. A narrativa é um mosaico de histórias de moradores de uma rua de classe média do Recife. Nela, re­side o empresário que expandiu seus negócios na base da especulação imobiliária — e que antes era um senhor de engenho — , o filho temeroso da violência urbana, os dois netos — um que trabalha alugando os apartamentos da família e outro um estudante que arrom­ba carros –, outra família gerida por uma mãe estressa­da que não suporta os latidos de um cão de guarda. Ou seja, pessoas rotineiras, comuns. Então, o que faz de O Som ao Redor um filme tão significativo e bom? Ora, os excelentes diálogos, as boas atuações e a ousadia e inventividade do diretor Kleber Mendonça, que fez uma inteligente abordagem de alguns temas como o preconceito de classe, a especulação imobiliária, a violência, o racismo estilo Brasil, o consumismo. O Som ao Redor não é um filme experimental, ao contrário, ele abre portas para o diálogo com o público, ao estabelecer um corpo-a-corpo com seu tempo histórico. Filmaço.

~ 6 ~
Amor

Michael Haneke Emmanuelle Riva Jean-Louis Trintignant na rodagem de Amor

Justamente elogiado e premiadíssimo — a fim de dar chance a outras produções, Michael Haneke pediu para ficar de fora de algumas disputas após vencer Cannes e o Globo de Ouro — , Amor é um retrato realista e digno da velhice. É a história de Anne (Emmanuelle Riva, 85 anos, a mais velha indicada ao Oscar de melhor atriz) e Georges (Jean-Louis Trintignant, 82), dois professores de música aposentados que vivem tranquilamente em Paris. O casal faz compras, vai a concertos, cozinham, tomam café da manhã e convivem após décadas de amizade, cumplicidade e amor. É quando Anne tem um AVC, ficando com um lado do corpo paralisado e precisará de auxílio. O filme é extraordinário. Michael Haneke é um dos raros diretores contemporâneos que têm acumulado filmes relevantes, nada esquecíveis. Código Desconhecido, Caché, Violência Gratuita, A Professora de Piano e A Fita Branca são claras comprovações de que este austríaco veio para marcar deixar sua marca no cinema do início deste século.

~ 7 ~
A Caça

a caça vinterberg

Thomas Vinterberg é um grande cineasta. Talvez sua produção seja superior — qualitativamente — a de seu conterrâneo e ex-companheiro de Dogma 95 Lars von Trier. Penso até que Vinterberg seja o que von Trier pretende ser. O diretor tem duas obras-primas em seu currículo: Festa de Família (1998) e Submarino (2010). Neste A Caça, Lucas (Mads Mikkelsen) trabalha em uma creche. Boa praça e amigo de todos, ele tenta reconstruir a vida após um divórcio complicado, no qual perdeu a guarda do filho. Tudo corre bem até que, um dia, a pequena Klara (Annika Wedderkopp), de apenas cinco anos, diz à diretora da creche que Lucas lhe mostrou suas partes íntimas. Klara na verdade não tem noção do que está dizendo, apenas quer se vingar por se sentir rejeitada em uma paixão infantil que nutre por Lucas. A acusação logo faz com que ele seja afastado do trabalho e, mesmo sem que haja algum tipo de comprovação, seja perseguido pelos habitantes da cidade em que vive.

~ 8 ~
Um Toque de Pecado

um toque de pecado

Um filme extraordinário. Quatro histórias que dialogam entre si, todas elas tiradas da crônica policial, retratando a violência e a mudança de valores na China. Há a cena do funcionário que tenta denunciar a corrupção em sua vila — o resultado é que toma uma surra espetacular e acaba decidindo pegar em armas. Há a cena da moça que, confundida com uma prostituta, recusa os avanços de um “cliente” e é por ele esbofeteada com um maço de cédulas de dinheiro. Pois bem, o capitalismo toma conta do país e o simbolismo de confundir e esbofetear alguém com dinheiro é claro. Aqui, Jia Zhang-Ke faz seu filme mais universal, abordando a criminalidade de um país emergente, misturando gêneros — o policial, a ação taiwanesa, o filme de samurai — para construir uma crônica polifônica da China atual, que é, na verdade, um faroeste.

(Só encontramos o trailer do filme com legendas em inglês. Pedimos desculpas).

~ 9 ~
Azul é a Cor mais Quente

Adele Exarchopoulos Lea Seydoux

Primeiro filme baseado em quadrinhos a ganhar a Palma de Ouro em Cannes, Azul é a cor mais quente narra a história de amadurecimento, amor e sofrimento da jovem Adèle (chamada Clementine no livro). No início da trama, ela é uma adolescente insegura que encontra uma menina de cabelos azuis e, ao se aproximar dela, entra em conflito com sua própria ideia de sexualidade, com sua família e colegas. O relacionamento de Adèle e Emma, intenso e conturbado, é interpretado de forma realista e sensível pelas atrizes Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, que também foram reconhecidas com o prêmio de Cannes. As cenas de sexo explícito entre as duas garotas causaram polêmica e geraram críticas da autora da história original ao diretor Abdellatif Kechiche, chegando a classificá-las como pornográficas e a dizer que foram claramente pensadas do ponto de vista de um homem heterossexual. Apesar das pesadas críticas, o coração da HQ de Julie Maroh está no filme: o retrato de uma garota apaixonada lidando com a sua sexualidade, suas angústias e a intolerância da sociedade. (Por Débora Fogliatto).

~ 10 ~
Tatuagem

tatuagem

Com Irandhir Santos em dia ainda mais brilhante do que em “A Febre do Rato” e “O Som ao Redor”, Tatuagem tem na desenvoltura dos seus atores o motivo para os maiores elogios. Ambientado em Recife, o filme de Hilton Lacerda narra a história de amor entre o líder do grupo de teatro “Chão de Estrelas” e um jovem soldado do Exército brasileiro – durante a ditadura militar. A nudez onipresente, a forma com que a dramaturgia toma conta do enredo e as cores do insólito relacionamento (entre cálido, inocente e impossível) fazem com que o encantamento permaneça firme durante os 110 minutos. (Por Iuri Müller).

~ 11 ~
Depois de Maio

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Em 1971, nos arredores de Paris, Gilles é um jovem estudante imerso na atmosfera criativa e política da época. Como os seus colegas, ele está dividido entre o investimento radical na luta política e a realização de desejos pessoais. Entre descobertas amorosas e artísticas, sua busca o leva à Itália e ao Reino Unido, onde ele deverá tomar decisões essenciais ao resto de sua vida. Antes de ser o painel de uma geração, Depois de Maio é um filme sobre escolhas. Na primeira cena, um professor diz que entre céu e inferno existe a vida. Na cena seguinte, Gilles já está panfleteando na frente da escola, lembrando que a manifestação foi proibida pela polícia. A manifestação e uma batalha campal acontecem. Os policiais batem a valer. Para onde ir? Belo filme de Olivier Assayas.

.oOo.

E os dez livros, em ordem alfabética:

Antologia da literatura fantástica,
de Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Silvana Ocampo

Antologia da Literatura Fantástica
Numa noite de 1937, ao conversar sobre ficções fantásticas, três amigos – Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo – resolveram criar uma antologia com seus autores preferidos. Três anos depois, foi lançada a Antologia da literatura fantástica, consolidada em sua edição definitiva 25 anos depois, obtendo enorme sucesso não só de estima como de público. Do filósofo Martin Buber ao explorador Richard Burton, passando pela tradição dos contos orientais, além de Cortázar, Kafka, Cocteau, Joyce, Wells e Rabelais, são 75 histórias – não só contos, como fragmentos de romance e peças de teatro – que nos apresentam uma literatura marcada pelo imaginário e por um modo diferente de representar a realidade. (Do site da Cosac Naify).

Assim na terra,
de Luiz Sérgio Metz

Assim na Terra
A longa viagem de Luiz Sérgio Metz pelo sul – viagem talvez de toda vida, mas certamente de um romance – foi publicada ainda em 1995, poucos meses antes da morte do escritor. Editado outra vez em 2013, pela Cosac Naify, Assim na terra pode agora ir além dos elogios da crítica especializada, algo que de alguma maneira já havia conseguido na época do lançamento, para então alcançar os leitores que o romance não teve na década em que foi pensado e escrito. Em Assim na terra, desfilam ideias e escritores, aparecem modernos tratores e seres perdidos no caminho, surgem as transformações que impactam no ambiente rural e no homem. Romance distinto de quase todos os outros, Assim na terra reaparece para os leitores quase vinte anos depois – com a impressão de que ali estão palavras novas, frases que ainda não haviam sido lidas. (Por Iuri Müller).

Barba ensopada de sangue,
de Daniel Galera

Barba Ensopada de Sangue
Neste quarto romance de Daniel Galera, um professor de educação física busca refúgio em Garopaba, um pequeno balneário de Santa Catarina, após a morte do pai. O protagonista (cujo nome não conhecemos) se afasta da relação conturbada com os outros membros da família e mergulha em um isolamento geográfico e psicológico. Ao mesmo tempo, ele empreende a busca pela verdade no caso da morte do avô, o misterioso Gaudério, que teria sido assassinado décadas antes na mesma Garopaba, na época apenas uma vila de pescadores. Sempre acompanhado por Beta, cadela do falecido pai, o professor esquadrinha as lacunas do pouco que lhe é revelado, a contragosto, pelos moradores mais antigos da cidade. Portador de uma condição neurológica congênita que o obriga a interagir com as outras pessoas de modo peculiar, o professor estabelece relações com alguns moradores: uma garçonete e seu filho pequeno, os alunos da natação, um budista histriônico, a secretária de uma agência turística de passeios. Aos poucos, ele vai reunindo as peças que talvez lhe permitam entender melhor a própria história. (Do site da Companhia das Letras).

Barreira,
de Amilcar Bettega

Barreira
Fátima mostra Istambul através da janela, como que alcançando a cidade com a mão. Aponta o Haliç, os bairros de Fener e Balat, identificáveis apenas através das luzes. Quem observa do outro lado da câmera é Ibrahim, pai de Fátima, que está em Porto Alegre. Ele logo viajará a Turquia, mas Fátima não estará no aeroporto e tampouco na pensão onde costumava se hospedar. Barreira, primeiro romance do escritor gaúcho Amilcar Bettega, começa com o desespero de Ibrahim, mas se esparrama pelas ruas de Istambul, chega a Paris e não para de encontrar situações mal resolvidas. “Eu queria um livro intencionalmente construído a partir de e entre buracos e pontos obscuros, de maneira que ao final fosse impossível ter-se uma versão incontestável daquilo que o romance contava”, disse o autor sobre o livro que integra a coleção “Amores Expressos”, da Companhia das Letras. (Por Iuri Müller).

Divórcio,
de Ricardo Lísias

Divórcio
O ponto de partida de Divórcio é bastante simples: com cerca de quatro meses de casamento, Ricardo Lísias encontra o diário de sua esposa. Ao abri-lo, lê uma passagem e fica estarrecido. A mulher com quem acabara de se casar, uma jornalista da área de cultura e critica de cinema, se revelava nas páginas de seu diário uma fria arrivista, que via Ricardo com desprezo. Afinal, apesar de ser um escritor promissor, ele passava os seus dias lendo e escrevendo e não possuía grandes ambições materiais. A partir dessa descoberta, acompanhamos pari passu a luta do autor para se recuperar e voltar a escrever e a desconstrução que ele opera do lugar de onde a sua ex-esposa saiu, a redação dos grandes jornais e revistas do país, a partir de um retrato duro de seus atores, os jornalistas. (Por Éder Silveira)

Essa coisa brilhante que é a chuva,
de Cíntia Moskovich

Essa Coisa Brilhante que é a Chuva
Depois de lançar Por que sou gorda, mamãe?, um dos mais apreciados romances brasileiros em 2006, Cíntia Moscovich apresenta ao público Essa coisa brilhante que é a chuva, volume que reúne contos inéditos escritos ao longo de seis anos e que teve o patrocínio de Petrobras Cultural e do Ministério da Cultura. Com muita originalidade e impressionante sensibilidade, Cíntia Moscovich aborda temas corriqueiros e inevitáveis: o ciúme do filho pela mãe, a adoção de um cachorro abandonado, um jovem casal às voltas com uma reforma na casa. Valendo-se de muito humor — e da tragédia sempre correspondente —, a autora conseguiu uma reunião de contos tão coesos, e tão divertidos, que mais parecem uma só narrativa, tornando a leitura uma experiência única. (Do site da editora Record).

Poética,
de Ana Cristina César

Poética
Ana Cristina Cesar deixou em sua breve passagem pela literatura brasileira do século XX uma marca indelével. Tornou-se um dos mais importantes representantes da poesia marginal que florescia na década de 1970, justamente pela singularidade que a distanciava das “leis do grupo”. Criou uma dicção muito própria, que conjugava a prosa e a poesia, o pop e a alta literatura, o íntimo e o universal, o masculino e o feminino – pois a mulher moderna e liberta, capaz de falar abertamente de seu corpo e de sua sexualidade, derramava-se numa delicadeza que podia conflitar, na visão dos desavisados, com o feminismo enérgico, característico da época.  Entre fragmentos de diário, cartas fictícias, cadernos de viagem, sumários arrojados, textos em prosa e poemas líricos, Ana Cristina fascinava e seduzia seus interlocutores, num permanente jogo de velar e desvelar. Cenas de abril,Correspondência completaLuvas de pelicaA teus pésInéditos e dispersosAntigos e soltos: livros fora de catálogo há décadas estão agora novamente disponíveis ao público leitor, enriquecidos por uma seção de poemas inéditos, um posfácio de Viviana Bosi e um farto apêndice. A curadoria editorial e a apresentação couberam ao também poeta, grande amigo e depositário, por muitos anos, dos escritos da carioca, Armando Freitas Filho. Dos volumes independentes do começo da carreira aos livros póstumos, a obra da musa da poesia marginal – reunida pela primeira vez em volume único – ainda se abre, passados trinta anos de sua morte, a leituras sem fim. (Do site da Companhia das Letras).

Toda poesia,
de Paulo Leminski

Toda Poesia
Paulo Leminski foi corajoso o bastante para se equilibrar entre duas enormes onstruções que rivalizavam na década de 1970, quando publicava seus primeiros versos: a poesia concreta, de feição mais erudita e superinformada, e a lírica que florescia entre os jovens de vinte e poucos anos da chamada “geração mimeógrafo”. Ao conciliar a rigidez da construção formal e o mais genuíno coloquialismo, o autor praticou ao longo de sua vida um jogo de gato e rato com leitores e críticos. Se por um lado tinha pleno conhecimento do que se produzira de melhor na poesia – do Ocidente e do Oriente -, por outro parecia comprazer-se em mostrar um “à vontade” que não raro beirava o improviso, dando um nó na cabeça dos mais conservadores. Pura artimanha de um poeta consciente e dotado das melhores ferramentas para escrever versos. Entre sua estreia na poesia, em 1976, e sua morte, em 1989, a poucos meses de completar 45 anos, Leminski iria ocupar uma zona fronteiriça única na poesia contemporânea brasileira, pela qual transitariam, de forma legítima ou como contrabando, o erudito e o pop, o ultraconcentrado e a matéria mais prosaica. Não à toa, um dos títulos mais felizes de sua bibliografia é Caprichos & relaxos: uma fórmula e um programa poético encapsulados com maestria. (Do site da Companhia das Letras).

Todos nós adorávamos caibóis,
de Carol Bensimon

Por Bernardo Jardim Ribeiro -_-6
Cora e Julia não se falam há alguns anos. A intensa relação do tempo da faculdade acabou de uma maneira estranha, com a partida repentina de Julia para Montreal. Cora, pouco depois, matricula-se em um curso de moda em Paris. Em uma noite de inverno do hemisfério norte, as duas retomam contato e decidem se reencontrar em sua terra natal, o extremo sul do Brasil, para enfim realizarem uma viagem de carro há muito planejada. Nas colônias italianas da serra, na paisagem desolada do pampa, em uma cidade-fantasma no coração do Rio Grande do Sul, o convívio das duas garotas vai se enredando a seu passado em comum e seus conflitos particulares: enquanto Cora precisa lidar com o fato de que seu pai, casado com uma mulher muito mais jovem, vai ter um segundo filho, Julia anda às voltas com um ex-namorado americano e um trauma de infância. Todos nós adorávamos caubóis é uma road novel de um tipo peculiar; as personagens vagam como forasteiras na própria terra onde nasceram, tentando compreender sua identidade. Narrada pela bela e deslocada Cora, essa viagem ganha contornos de sarcasmo, pós-feminismo e drama. É uma jornada que acontece para frente e para trás, entre lembranças dos anos 1990, fragmentos da vida em Paris e a promessa de liberdade que as vastas paisagens do sul do país trazem. Um western cuja heroína usa botas Doc Martens. (Do site da Companhia das Letras).

Vida querida,
de Alice Munro

Vida Querida
Os contos de Vida querida são ricos como romances – com personagens, tramas e vozes desenvolvidas em toda sua potencialidade -, mas, precisos como pede a tradição do gênero, prescindem de qualquer elemento que não seja essencial. O leitor, conduzido por narradores capazes de segurar a tensão do começo ao fim, se entrega a percursos surpreendentes, anunciados com sutileza e maestria em pistas esparsas. É o caso do conto que abre o livro, “Que chegue ao Japão”: Greta se despede do marido e parte com a filha numa viagem de trem que acaba se tornando uma aventura conflituosa pelos caminhos do desejo feminino; em “Dolly”, um casal de idosos decidido a acabar com a própria vida num gesto de cumplicidade e harmonia recebe uma visita inesperada do passado que irá abalar profundamente seus planos. Como nas demais coleções de contos da autora, mestre da forma breve, nos vemos diante de personagens que caminham nas beiradas da existência, arrancadas do cotidiano por golpes incisivos do destino e da loucura. Mas este Vida querida tem um diferencial que o coloca num nível novo; coroando uma carreira brilhante, a última parte do livro traz as quatro únicas narrativas autobiográficas já publicadas por Munro, que emprega toda a sua habilidade literária para refletir sobre o ato de narrar, a ficção e os temas que regem sua obra: memória, trauma, morte. Vida: vida. (Do site da Companhia das Letras).

A acadêmica é a mais violenta das vaidades

Cartaz de Nota de Rodapé. O filme só está no Guion Center, em Porto Alegre.

O filme Nota de Rodapé, de Joseph Cedar, acendeu todas as minhas luzes internas de “Perigo, perigo!”, como dizia o robô de Perdidos no Espaço. É uma produção israelense absolutamente atemporal e universal, nada tendo a ver com a nojenta política do país. Eliezer e Uriel Shkolnik são pai e filho, ambos  acadêmicos, que dedicam a vida ao estudo do Talmude, o livro sagrado dos judeus. O pai Eliezer é um turrão deprimido que se sente rejeitado pelos colegas. Apesar de passar seus dias estudando em bibliotecas com tapa-ouvidos para não ser perturbado pelo mundo, publicou pouco e apenas pode ser orgulhar de uma nota de rodapé num trabalho seminal de sua área de estudo. É o homem de muitos livros (ou papéis) que se vê no cartaz. Por outro lado, Uriel é uma estrela ascendente bajulada por seus pares, um bando de inexplicáveis semideuses. Também publica muito, vende muito e é sempre reconhecido.

O filme inicia justamente com a cena de umas das premiações recebidas pelo filho. O pai assiste irritado, suportando com dificuldade o desajeitado elogio que o filho lhe faz. Sei que na vida acadêmica, ambiente de estabilidade empregatícia onde grassam paixões e vaidades oceânicas, algumas pessoas — nem todas — cultivam espetaculares ódios. Meu interesse pelo filme acendeu-se de forma ainda mais feérica por ter vivido — ou ter sido casado — com duas mulheres extremamente competitivas na vida universitária. Ou seja, quando o filme começou, logo concluí através de minha experiência: que legal, esses caras vão se matar. Ajeitei-me na cadeira porque sabia que veria gente efetivamente decidida a envenenar a vida do próximo sem a menor compaixão. Não me decepcionei.

Tudo vai caminhando pessimamente na família até que Eliezer, o pai, recebe o Prêmio Israel, a maior distinção acadêmica do país. Como assim? O pai e não o filho?

ATENÇÃO: A partir deste ponto, haverá um alto grau de spoilers. Se você os evita, volte a ler somente a partir do próximo parágrafo em itálico.

Eliezer recebeu a notícia da própria Ministra. Ele, de seu modo discreto, avisou a família e até comemorou. Também muito discretamente, o filho ficou contente por ver o trabalho de seu pai enfim reconhecido, mas, opa, houve um terrível engano. O filho é chamado à Comissão e fica sabendo que o prêmio era para ele, que a secretária errou de Shkolnik na hora de ligar. Em atitude mais ou menos digna, o filho não aceita o prêmio, diz que vai “matar o pai de desgosto” se aceitá-lo. Só que o presidente do juri diz que em hipótese alguma dará o prêmio para Eliezer, com o qual tinha antiga desavença… Numa cena patética e habilmente dirigida por Cedar, dentro de uma pequena sala totalmente inadequada, Uriel e o presidente do juri trocam empurrões. Todos se detestam.

Enquanto isso, em sua casa, Eliezer dá uma entrevista a um jornal onde, instado pela repórter, acaba desajeitadamente demonstrando seu desprezo pelo trabalho do filho, que faria pesquisas sem nenhuma profundidade e critério. Coisinhas superficiais.

Mesmo assim, Uriel volta a se reunir com o principal jurado e o último força um acordo.

— Certo, eu dou o prêmio a teu pai, mas, primeiro, com a condição que você, e não a Comissão Julgadora, escreva o texto laudatório que apresentará Eliezer como vencedor e, segundo, que você nunca mais concorra ao Prêmio Israel, mesmo depois de minha morte.

A surpreendente condição o deixa desesperado. A necessidade de vingar-se, de prejudicar alguém, obriga o presidente do juri a ver Uriel desistindo de outro título, do principal deles. E o que são os acadêmicos do gênero carreirista sem títulos? Com muita raiva, chutando tudo o que vê pela frente, o filho aceita as condições e escreve o texto para seu pai Eliezer. O pai, pesquisador experiente, desconfia que aquelas palavras não são de outro que não de seu filho. Comprova o fato exercendo sua especialidade: compara textos de Uriel, do presidente do juri e da carta recebida e…

Fica absolutamente quieto, indo receber o prêmio. Afinal, é uma distinção.

A partir daqui, no more spoilers.

Não afirmo que todos os acadêmicos tenham este comportamento, mas conheço vários casos. Ah, as viagens, as bolsas, as negociações para assinaturas em trabalhos — tudo conta, tudo conta! — , as escalas. Céus, que dramas! Houve tempo que em todos os sábados à noite eu ouvia fofocas da ADUFRGS (esta sigla, a do Sindicato dos Professores das Instituições Federais do Ensino Superior de Porto Alegre ou Associação dos Docentes da UFRGS, causa-me calafrios). Só eu sei o tédio que passei e os absurdos planejamentos, muitas vezes postos em prática, que ouvi. Um mundo peculiar. Tenho a impressão que o de padres e freiras é semelhante.

O filme de Cedar acerta em resumir grandes partes da história de Nota de Rodapé de forma gráfica e com sons de violinos em pizzicatto. Todas aquelas relações são farsescas e eu, sinceramente, não sei como se faz para produzir conhecimento nestes caldeirões de ódios, vaidades e invejas. Talvez seja necessário, sei lá.

Por falar em prêmios, Nota de Rodapé disputou e perdeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para o iraniano A Separação. Ambos são grandes filmes, mas Hollywood acertou ao escolher o filme de Farhadi, com seu tema muito mais relevante. Não penso que Cedar queira matar o diretor iraniano por causa disso. Quem faz Nota de Rodapé — melhor roteiro no Festival de Cannes de 2011 (ufa, pensa Cedar, ao menos este eu ganhei…) — é superior às questiúnculas vitais, importantíssimas, dos “departamentos”.

Uriel e Eliezer Shkolnik

Esplendorosa Emmanuelle Riva, o Oscar é o que menos importa

Roubo e adaptação a partir de post de O homem que sabia demasiado.

O nome da atriz Emmanuelle Riva há de ficar nos anais da história do cinema com uma característica muito especial: a de ser lembrada para sempre pelos dois filmes notáveis que iniciaram e finalizaram a sua carreira: Hiroshima mon amour (1959) de Alain Resnais e Amor (2012) de Michael Haneke.

53 anos separam estes dois filmes, dois filmes que têm a palavra amor no título, dois filmes que abordam questões essenciais sobre a ascensão e o declínio do amor. É como se Emmanuelle Riva não tivesse feito mais filmes no intervalo entre estas duas películas. Fez, alguns até importantes. Mas serão Hiroshima mon amour e Amor os títulos que ficarão para sempre na memória de qualquer cinéfilo.

No filme de Alain Resnais, Riva tinha 32 anos, surgia no auge da sua esplendorosa sensualidade; no filme de Haneke, a atriz apresentou-se com respeitáveis 85 anos de idade. Mas é como se a mesma sensualidade, carisma e intensidade não se tivessem esfumado por um único segundo através dos anos. Não importa que Riva possa não ganhar o Oscar de melhor atriz. O seu legado é maior do que qualquer estatueta dourada.

Não sei como Riva, Haneke, Huppert e Trintignant cabem em 500px.

Traição

Acordei hoje com considerável dor de cabeça, algo que era habitual até meus vinte anos, mas que não me ocorre mais. Dizem que eu sofria de enxaqueca, principalmente porque a luz piorava tudo. Logo descobri que o melhor era ficar num quarto sem muita luminosidade, lendo ou ouvindo música. Em algumas horas, voltava ao normal. Há pouco tomei um paracetamol. Ele resolveu o que nenhum remédio resolvia antes.

Por que será que a gente encafifa com assuntos passados sem nenhuma relação com o presente? Pois hoje, sei lá por quê, enleei-me num episódio cômico ma non troppo de uns dez anos atrás. Sorria enquanto tomava café. Meu casamento estava charfurdando na crise que o matou, eu ainda vivia com minha ex, mas não havia nenhum interesse nem dela, nem meu. A gente ficava junto por inércia e por não ser ruim o suficiente para sair batendo a porta. Éramos apenas amiguinhos. Não obstante, eu mantinha a fama real de não trair. E não traía mesmo.

Como sói acontecer, o local mais espetacular que frequentava era a academia. O resto era assexuado: trabalho, crianças, até amigos e amigas. Eu era uma espécie de piadista oficial da academia ou, sendo mais veraz, diria que era um dos vários focos de geradores de assuntos e atenção. Aquilo me deixava feliz, vaidoso. Alongava, cumpria todo o treino com afinco (verdade, adoro!), corria meus trinta minutos, alongava de novo e conversava muito durante os intervalos e no final. Contribuíam para isso o café, o chimarrão e a cozinha sempre aberta da enorme ex-residência onde se esbelecera a academia. Raramente faltava a meus dois os três compromissos semanais lá.

Claro, um dos sintomas que quem está a fim de trair é o de reservar amigos para si e a turma da academia era só minha. Lá, a presença de minha ex — chamada Suélen ou Pâmela, nunca lembro –, seria imprópria e, verdade seja dita, ela nunca quis juntar-se a nós, sinal inequívoco de que o que havia aqui, talvez houvesse lá. Então, não eram necessárias grandes preocupações nem cavar ou pedir um espaço para mim. Este me era dado de presente. Havia, ora se não, minhas instrutoras preferidas e aquela com a qual mais gostava de fazer meus alongamentos e receber orientações era a dona da academia. Muito competente, tinha uns dez anos a menos do que eu (deve ter ainda, parece que isto não costuma alterar-se…) e não costumava deixar sem respostas nenhuma das minhas perguntas sobre encurtamentos e nódulos musculares. Principalmente os do pescoço. Algumas vezes pedia-lhe que dissolvesse aqueles nódulos com massagens, o que ela fazia com miraculosa habilidade.

Alongamentos, encurtamentos, etc. e não lembro como a conversa esquentou, mas posso garantir que foi subitamente, sem obedecer a nenhum planejamento. Com o papo indo por aquele caminho que faz uma parte de nosso corpo de menino estremecer, ela resolveu me alongar deitando-se sobre minhas costas, coisa que já fizera outras vezes de forma absolutamente profissional. Não tenho inteira certeza da posição em que ficava, mas acho que rezava voltado para minha meca particular quando ela resolveu me empurrar mais para o chão. Aquilo era agradável, nem parecia que estava alongando alguma coisa. Devo ter dito alguma bobagem como “Hum… peso bom!”. Ela não riu, o que tinha significado óbvio. Afinal, mulheres adoram que as façamos rir, mas quando param é melhor analisar. Pode ser irritação, ora.

Bem, depois são detalhes. No mesmo dia, ocorreu um agarramento dentro da cozinha da academia, cuja porta foi fechada com certa violência por minha professora, houve algumas festas de fim de ano e, vocês sabem, futebol é bola na rede. Aqui, chego próximo ao ponto no qual pensava durante minha dor de cabeça matinal. Se algum de meus sete leitores pensam que passei a me esconder, a atender sobressaltado o celular, se pensam que a confusão me procurava, estão enganados. Eu não contava para Pâmela (ou Suélen, nunca sei), mas também não mudava nada em meu comportamento. Só saía mais de casa. Exatamente como também ela passou a fazer. Ficávamos alternadamente em casa. A única coisa que me atrapalhava a consciência era vê-la muito quieta. Sempre achava que ela estava pensando em meu caso. Mas nunca conversamos a respeito de nada que rondasse a palavra “traição”. Não fazia sentido, dado o desinteresse mútuo.

Aqui, bem aqui, chego ao ponto exato que me fez rir hoje de manhã enquanto escovava os dentes. Já estávamos frequentando uma “terapeuta de casal” que serviria para definir a questão dos filhos. Um dia, bem lá no final do “tratamento”, durante uma sessão, Suélen (ou seria Pâmela?) me disse que eu tinha sido visto no cinema pelo chefe dela. Preparei-me para ser acusado, devo até ter me ajeitado na cadeira, quando a ouvi dizer, toda sorridente, que eu estava sozinho. Virei santo.

Quis saber que filme era. Era Malena. Então foi minha vez de sorrir. Naquela noite, fora ao um velório da mãe de meu melhor amigo de infância, jantara com minha amiga F., mas, antes do filme, deixara-a em casa com uma crise de rinite. Ela não gostava muito dos filmes que eu escolhia. Preferia ver DVDs de blockbusters americanos em casa. Um saco. Curiosamente, aquilo passou a ser a prova inequívoca de minha… sei lá… idoneidade, honestidade? Muitas vezes tal prova foi citada quando se conjeturava a possibilidade de reconstruirmos a relação. Deixei assim.

Quando por fim nos separamos, também me separei de minha amiga e da academia. Meus sete leitores devem saber que depressão a gente curte privadamente, não em praça pública, fazendo piadas.

Amor

Quando eu era criança, costumava fechar a porta do meu quarto para narrar futebol em voz alta com maior liberdade. Minha irmã me enchia o saco, dizendo para eu parar de inventar aquilo. Narrava jogos espetaculares onde o Inter vingava-se de todas as humilhações que o Grêmio nos submetia naqueles anos 60. Era uma vida interior movimentada, que fazia minha garganta doer pelo esforço de gritar tantos gols. Também sonhava com jogos, escrevia escalações, contratava jogadores inatingíveis – muitas vezes era um deles — e fazia cálculos, anotando num caderno vermelho todos os jogos dos campeonatos que o Inter participava. Era uma coisa meio demente, ainda mais num tempo em que o Campeonato Gaúcho valia alguma coisa e em que o Grêmio havia vencido 12 dos últimos 13. Era uma tragédia ter 11 anos naquele 1968 que terminaria com o AI-5. Mas tinha certeza que os anos me fariam melhorar. Minha mãe também.

É, mas não mudou muito. É um grave defeito de fabricação. Vocês não me pegarão mais aos berros no meu quarto – ainda mais se estiver acompanhado –, mas minha vida interior, quando não estou submetido a estresse, inclui aquele momento em que passo a pensar no próximo jogo, na próxima escalação e, ainda, nas próximas jogadas. Entro no elevador e de repente vejo D`Alessandro pisando na bola, retardando o ataque… Aquilo me irrita e já saio do elevador preocupado. No dia seguinte, acordo e de cara levantam uma bola em nossa área. Sandro salva e partimos para um contra-ataque com Taison e Nilmar: gol certo enquanto escovo os dentes.

Acho que há pessoas que pensam em dinheiro e mulheres o tempo inteiro — eu até perco muito tempo também nisso –, mas a vida interior do torcedor de futebol é um pouco diferente. Claro que todo este interesse está associado a um clube que amamos e que, por definição, é mais importante do que todos os outros. E quando este clube tem um inimigo, este será o mais odioso e horrendo – e sifilítico e purulento e idiota e filha da puta e a nossa cara. Sim, acabo de descrever sucintamente o Grêmio.

E então este clube faz cem anos, contingência inevitável para quem, mesmo endividado, não morre e a gente fica todo bobo, achando que o dia 4 de abril nos oferecerá vales onde correm o leite e o mel, com 11.000 virgens amorosas vertendo Baileys das tetas. Confesso que balancei quando meu sobrinho me convidou para ir ao jantar do centenário, mas recuei ao saber que custava R$ 200,00. Também não me entusiasmei pelos tais fogos — quase sempre fecho minhas noites de sextas-feiras em cinemas –, mas achei legal a coisa da caminhada até o Beira-rio no sábado, a tal Marcha do Centenário.

Fiquei indignado quando um pessoal aí, os quais são indiscutivelmente os maiores representantes das torcidas gaúchas (preciso indicar a ironia?), convidaram o prefeito gremista para a caminhada e ameaçaram até com a Yeda. Céus, que gente mais sem noção! Para que misturar a mais simples das comemorações – a procissão de colorados do incerto local onde o clube foi fundado até o Beira-Rio – com mais uma tentativa desesperada de manter a troca de favores com o poder? E eles seriam retaliados, vaiados, precisariam de seguranças. Nosso momento cívico ficaria uma merda.

Sim, eu disse cívico, pois colorado é o que sou. Se habito fisicamente a Rua Gaurama, tenho uma segunda vida com endereço aqui; se tenho um telefone, também tenho e-mail; se sou Suda de modo geral, sou especificamente brasileiro; se tenho o futebol em minha vida interior — assim como tenho a Gaurama, o blog, o número do telefone, o endereço de e-mail, a Suda e o Brasil — esta se foca repetida e especificamente para o Inter. O Inter e seus grandes times moram em mim, completam um século neste sábado e é fato dos mais dignos de celebração que eu possa imaginar, mesmo que tenha achado todos os outros centenários (principalmente aquele) manifestações ridículas e sentimentalóides, sem intersecção com nosso centenário. Não tinha pensado nisso, mas devo me comover na caminhada. Afinal, ninguém consegue ser crítico de si mesmo e o Inter, sei, sou eu.