Uma bela temporada na Esef da Ufrgs

Uma bela temporada na Esef da Ufrgs

Hoje, terminaram minhas idas à academia da Esef, na Ufrgs. Explico: certo dia, li um anúncio de uma mestranda no qual ela pedia para que homens de 60 anos ou mais participassem de seu projeto de mestrado. Este consistia, de modo geral, em dar condicionamento físico ao grupo de determinada maneira. Tudo muito científico e monitorado. Desde agosto, fui duas vezes por semana até a Ufrgs a fim de levantar pesos e pedalar como um louco sob orientação da Prof. Diana Carolina Müller, a mestranda.

O resultado foi muito bom. Minha mulher notou melhoras na postura, todos notaram certa diminuição nas circunferências gerais e eu me senti muito melhor, mas muito mesmo. Por mim, acabaria com esse negócio de férias escolares ou deixaria a Diana como eterna mestranda, só que ela e seus pupilos Henrique Bayer e Paulo Ricardo da Silva têm que dar continuidade a suas bem iniciadas vidas profissionais. Adorei ser cobaia. Agradeço e… Dá-lhe!

Um (tremendo) concerto secreto em Porto Alegre

Um (tremendo) concerto secreto em Porto Alegre

Porto Alegre é uma cidade curiosa. Parece oferecer pouco, pois as vias de informação em jornal e mesmo na internet passam por uma já longa crise, só que há coisas bem legais para se fazer e que não são descobertas.

O Caderno de Cultura de ZH quase não é lido — tem que ser assinante e muita gente fugiu do jornal por ser de direita e gremista. Na internet, não há um veículo confiável que reúna tudo. A Agenda Lírica ainda está se organizando. Então, os eventos têm de ser meio catados por aí.

Ontem, minha querida Elena avisou: o georgiano Guigla Katsarava vai tocar hoje no Instituto de Artes da Ufrgs, no Auditório Tasso Correa. Sim, sabemos que a Ufrgs não é uma casa de espetáculos. Sabemos também que o organizador do concerto, Ney Fialkow, não trabalha com publicidade. Divulgar algo desse quilate para a cidade seria função para jornalistas, só que… Bem, deixa assim. O que interessa é que fomos.

E vimos o melhor recital do ano na cidade. Katsarava tinha tocado em um concerto com a Ospa em junho do ano passado. Dias depois, apresentou-se na Casa da Música. Ou seja, sabíamos que se tratava de um pianista de impressionante técnica e sonoridade. Presentes na plateia, apenas os especialistas: pianistas, professores e alunos. Imaginem que a pianista Catarina Domenici chegou direto do aeroporto, sabendo que valeria a pena o esforço.

O programa começou com Grieg (Peças Líricas) e seguiu com duas peças de Scriabin. Depois, tivemos a Suíte Nº 2 para dois pianos de Rachmaninov — a partir daqui o excelente Ney Fialkow entrou em cena — e a surpreendente The Garden of Eden: Four Rags for Two Pianos, de William Bolcom. O bis foi talvez a melhor peça da noite: La Valse, de Ravel, em versão para dois pianos.

Ney e Guigla | Foto: Sala Cecília Meirelles
Ney e Guigla | Foto: Sala Cecília Meirelles

O nível esteve sempre lá em cima, foram interpretações de rara sensibilidade, mas gostei menos das obras dos russos Scriabin e Rach do que das outras.

A peça de Grieg é finalizada com a linda Bodas em Troldhaugen. A de Bolcom é puríssimo e fino fun, se posso me expressar assim. E La Valse é a vertiginosa apoteose da valsa vienense. Parece que nunca vai se realizar, mas depois acontece da forma surpreendente e nervosa. Dá a impressão do final de uma época. Ravel aparenta dizer: agora a alegria da valsa tem de lutar para chegar a nossos ouvidos.

Ele mesmo escreveu:

Através de nuvens, são vistos aqui e ali pares que valsam. A névoa se dissipa gradualmente, distinguindo-se um imenso salão povoado por uma multidão que baila. A cena se torna cada vez mais iluminada. As luzes dos candelabros se acendem. Situo este valsa num palácio imperial.

A dupla Katsarava e Fialkow vai se apresentar na Sala Cecília Meirelles amanhã, quinta-feira, no Rio de Janeiro, às 20h. Atenção, cariocas! Eu não perderia por nada. Ah, lá vai ter Bolcom e Ravel!

P.S. — Post escrito às pressas. Peço desculpas.

Prazer de rever Padura

Prazer de rever Padura
Pois é, já conversei com o Padura | Foto: Roberta Fofonka
Pois é, já conversei com o Padura | Foto: Roberta Fofonka

Sou fascinado pela boa prosa, escrita ou falada. Digo a vocês que o tema da palestra de Padura pouco me importou. OK, era um bom tema o da Insularidade, a maldita circunstância da água por todos os lados. Acompanhei com atenção adequada tudo o que ele disse sobre o malecón, o interminável muro de 60 cm de largura que separa Havana do mar e do resto do mundo, ouvi com prazer as histórias que envolviam meu amado Alejo Carpentier, gostei mesmo quando ele falou da pobreza e da fome dos anos 90, com tudo o que fica e vai, mas achei muito melhores as frases, a colocação cuidadosa e hábil dos pensamentos, como quando, por exemplo, ele explicou a sedução que o romance noir e o mal exercem sobre os escritores, quando falou nos absurdos que ele comete, em termos literários, quando ele e sua mulher criam um roteiro a partir do próprio livro, cortando quase todas as melhores frases e palavras para deixar tudo nas mãos das imagens. Nas mãos das imagens! Eu realmente estava adorando todas aquelas frases que finalmente me acalmaram e, em momento de puro prazer, me fizeram cabecear. Juro, fizeram e foi tão bom dormir aqueles 5 culpados minutos para voltar com tudo para as ondas de frases do espanhol de Padura!

Aí, só porque eu sou bobão mesmo, tirei uma foto inútil no escuro, com o celular. Estava bom, foi uma grande palestra sobre o fazer literário. Parecida com a que Mia Couto proferiu anos atrás na mesma Ufrgs. Gostei do público. Não estava lotado e quase ninguém perguntou sobre a política de Cuba. Já estão chatas as perguntas da direita sobre se há liberdade por lá, etc. Foi só uma pergunta:

— Falando com tanta franqueza, criticando e amando Havana, como é sua relação com os governantes do país?

— Eu não sei o que eles pensam de mim.

E todos riram.

Para terminar: Padura leu sua palestra. Correto. Sei que a esmagadora maioria dos brasileiros gosta da oratória. Eu não. Na minha opinião, vir com um texto na mão é respeitar o público. Prefiro a coisa à europeia.

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Um local de Porto Alegre: a Ladeira Livros de Mauro Messina

Um local de Porto Alegre: a Ladeira Livros de Mauro Messina
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Quem mora em Porto Alegre e ama os livros, provavelmente conhece Mauro Messina. Sócio do sebo Ladeira Livros (Rua Gen. Câmara — mais conhecida como Rua da Ladeira –, nº 385, no chamado Centro Histórico), Mauro fez dois cursos na Ufrgs e outro na Fapa, indo quase até o final de cada um deles. Porém, para extrema decepção de sua mãe, não se formou nem em Ciências Sociais, nem em Geografia e muito menos em Administração de Empresas, apesar de ter mais ou menos se sustentado nos corredores da Universidade Federal e da Fapa. Em compensação, conhece livros – objeto e conteúdo – como poucos, dando palpites certeiros sobre aquilo que os clientes devem (ou não) ler, além de irritar todos os colorados que vão à livraria com um gremismo daqueles bem barulhentos e nojentos – opinião deste que vos escreve.

Para quem olha da rua, a Ladeira Livros parece pequena. A sala da frente não é grande, mas há 40 mil livros lá para trás. Enquanto a chuva batia forte na General Câmara, fazendo os clientes entrarem fechando rapidamente seus guarda-chuvas, Mauro falou ao Sul21 como sempre faz — sorrindo muito e interrompendo seus discursos com risadas altissonantes.

Foto retirada do perfil do Facebook de Mauro Messina

A história da livraria começa lá nos anos 80. Mauro fazia bicos com Adeli Sell numa banquinha que ficava embaixo do viaduto da Borges, um sebo. O espaço era mínimo para os dois militantes da tendência petista ‘O trabalho’. Lá, o estudante secundarista Mauro vendia broches e adesivos do PT. Então, começou a botar uns livrinhos ao lado. Em 1988, conheceu Fernando Schüller, coordenador de literatura na Prefeitura. E começou a vender livros nos sábados pela manhã, durante os Encontros de Sábado na secretaria municipal de cultura. Quando entrou na Universidade, mudou para a Convergência Socialista. Cursava administração na Fapa. Em 1991, foi trabalhar como funcionário do livreiro e escritor Arnaldo Campos, o lendário dono da Porto do Livro, no Campus Centro da Ufrgs.

No mesmo ano, passou no vestibular da Ufrgs para Ciências Sociais. Ficou dois anos com Arnaldo, apesar de que o dono da livraria estava sem dinheiro e com problemas para pagar a pensão da ex-esposa. Era a época pré-plano real, a inflação corroía tudo e a ex-mulher do livreiro frequentemente ligava pedindo o pagamento da pensão. Arnaldo se deprimia e dizia dez vezes por dia para Mauro: ‘’Desiste do ramo. Eu sei que tu gosta, mas não faz como eu, faz algum concurso, pega uma estabilidade.’’ E Mauro respondia que não tinha como. Aí passava um tempo, o livreiro atrasava novamente a pensão e a mulher voltava a ligar. Ficavam meia hora no telefone. Aí ele se estressava e chamava o funcionário para o Bar do Antônio. ‘’Larga, Mauro! E não casa. Mas, se tu for burro e casar, não te separa”’. Contudo, quando Mauro inaugurou a Ladeira Livros em 2006, Arnaldo visitou o ex-pupilo. Estava todo feliz.

Mas não nos adiantemos. Em 1993, Mauro ficou desempregado. Sabia que algumas livrarias tinham armários de livros nos corredores da Ufrgs e ele pensou que poderia fazer o mesmo. Convidou um amigo e começaram a vender livros nos corredores do Campus do Centro. O nome da livraria era Sagarana. Ele já tinha contato com algumas editoras e alugou uma sala na Dr. Flores para o estoque. Também vendia livros na Fapa, dentro do mesmo esquema. Os livros eram novos, recebidos em consignação. O corredor ficava cheio de gente nos intervalos. Ali, Mauro discutia política, futebol e vendia seus livros.

Trabalhava também no curso Unificado. Amigo do professor Sergius Gonzaga, chegava ao cursinho na hora do intervalo. Sergius colaborava, avisando-lhe do livro que recomendaria em sala de aula. Na saída… Mesmo assim, o maior ponto de venda era dentro da Ufrgs. Um dia, tentaram acabar com a banca de livros de Mauro. Era ilegal. Um abaixo-assinado dos alunos garantiu a continuidade. Mas depois não houve jeito e ele teve que sair.

“Eu saí lá em 2001 e não sabia o que fazer, simplesmente não esperava que acontecesse. Aí eu fui ali no Flores, que vendia discos na Borges, embaixo do viaduto. Cheguei nele e disse que tinha uns livros pra vender no espaço dele. Trouxe meu armário. Ele vendia discos e eu livros. Naquela época eu estava negociando um espaço no Campus do Vale lá na Ufrgs. Fui para lá, mas nos dois lugares vendia pouco. Foi um período bem complicado”.

A Ladeira Livros começou em 2006. “Os proprietários da Nova Roma estavam fechando a livraria na Gen. Câmara (a popularmente chamada Rua da Ladeira) e me disseram que se eu quisesse poderia trabalhar lá. Levei meu pequeno acervo de 600 livros e me mudei. Peguei livros novos em consignação e comprava bibliotecas de forma parcelada, etc. Fui levando a vida”.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

A Estante Virtual já existia há um ano e Mauro quis aderir, só que não tinha computador. Fazia o cadastro de seus livros numa lan house. Lá, também descobria o que fora vendido. E concluiu que não poderia ficar fora das redes, apesar de achar um saco cadastrar tudo. “Estava complicado pagar o aluguel do novo espaço. Então, três estudantes amigos meus deram a ideia de dividir o aluguel e transformar parte do local em cafeteria. Mas tinha um problema, eles não tinham experiência nisso e, na verdade, detestavam café. Achavam também chato servir os clientes. “Então tive uns golpes de sorte comprando boas bibliotecas, comecei a crescer e tive que mudar de número aqui na rua. Eram muitos livros”.

Como se compra livros? “Tu tens que conversar com a pessoa pra saber o que o livro significa pra ela. Se eu pagar uma miséria, eles não voltam mais, vendem para outro. Afinal, quem se interessa por literatura conhece a Estante Virtual, onde todos ficam sabendo o valor de cada obra. Então, se a pessoa tem apego aos livros e eu quero comprá-los, vou ter que pagar. Existe toda uma negociação para a compra, mesmo quando cara vem aqui vender uns poucos. Tenho que olhar livro a livro para ter uma boa base de quanto vale. Não adianta olhar de longe. Nem todas as bibliotecas são como a do Tatata Pimentel, que acabei comprando. O bom é que o amor pelo livros facilita o papo”.

Mauro tem mil histórias acerca da compra de livros e bibliotecas. Há o pessoal que vem até a Ladeira para vender poucos exemplares, tem os caras que enganam os familiares e vendem a biblioteca de um morto recente pedindo um “por fora”. Ele também conta histórias de uma Kombi que quebrava sempre que vinha com milhares de livros, mas a preferida parece ser esta: “Uma vez, fui ver uma coleção de livros e quando cheguei, a dona tinha uma capelinha, cheia de velas. Era religiosa, uma carola de qualquer coisa e eu sou materialista diálético (risadas). Na saída, após fecharmos negócio, ela fixou os olhos em mim e disse misteriosamente que meus pais precisavam vender alguma coisa, mas que tinha uma pedra no meio do caminho. E me aconselhou: ‘Diz pra tua mãe pegar uma pedra e atirar ela longe’. Ela também me disse que eu era uma pessoa muito boa. E completou me avisando que estaria desencarnando dali a uns dias. Gelei, né? Então liguei pra minha mãe. Ela disse que sim, queria vender um sitiozinho no interior. E mandei ela atirar longe a porra da pedra. Ela não queria, mas eu insisti. Ela acabou atirando a tal da pedra e logo depois vendeu o sítio. Eu voltei à casa da mulher para agradecer e não encontrei mais nada. Talvez ela tivesse desencarnado”.

Hoje, Mauro cadastra todos os livros na Estante Virtual. Mas ainda vende mais na livraria. Quem o conhece sabe que ele adora uma conversa, recebendo bem até os que se não gostam de ver a figura de Lênin ao lado do caixa. “São 60% das vendas aqui na livraria, na base da conversa, e 40% na internet. O Correio gosta de sumir com os livros, é um problema, mas a Estante garante uma estabilidade, é venda certa”.

A Ladeira Livros também usa o Facebook. Mauro conta: “Eu escolho um livro para anunciar no Facebook. Às vezes pego um muito bom, outras vezes pego um da hora ou outro totalmente aleatório. Boto lá a capa e o valor. E escrevo ‘Na prateleira’. Quem pedir primeiro para reservar, leva. A regra é clara. No dia que os Estados Unidos legalizaram o casamento gay, eu anunciei o livro sobre a torcida organizada do Grêmio Coligay… Coloco uns dez livros por dia, nem todos saem, depende muito do que eu posto e do momento. Para mim, o Facebook é diversão. Também conto histórias lá. Com ele, conheci muita gente que nunca entrou na livraria e que compra ou só conversa. O preço? Eu dou o preço que mais ou menos é cobrado na Estante Virtual. Tu podes terminar a entrevista dizendo que eu sou apenas mais um leitor que lê menos do que gostaria. Sou um leitor mediano. Não sou formado em nenhum curso, apesar de ter feito ciências sociais e geografia. Ando lendo mais romances atualmente, principalmente os policiais. A livraria abre às 9h, mas eu trabalho das 10h30 as 19h. Tenho dois filhos, a Márcia e 40 mil livros cadastrados, além de seis mil que ainda tenho que botar no sistema. É isso.”

(*) Com Pedro Nunes

Entrevista com Roberto Markarian, Reitor da Universidad de la República, do Uruguai

Entrevista com Roberto Markarian, Reitor da Universidad de la República, do Uruguai
‘A ditadura me deixou na prisão por 6 anos e 8 meses contínuos’ | Foto: Elena Romanov

Chamar o Brasil de “Pátria Educadora” parece uma anedota, principalmente se compararmos nossa situação o aquilo que se faz há mais de um século no vizinho Uruguai. Com uma secular tradição de educação laica, gratuita e obrigatória, implantada pelo reformador José Pedro Varela (1845-1879), o Uruguai hoje está na ponta de lança da educação latino-americana. Na longa entrevista que segue, começo por uma curta biografia de Roberto Markarian Abrahamian, de quem sou amigo, e depois envereda pelos detalhes da universidade e da educação uruguaia de uma forma geral.

Conheci Roberto Markarian em Porto Alegre, quando estudava engenharia e ele era estudante do Curso de Matemática da Ufrgs, logo após os sete anos em que esteve preso pela ditadura uruguaia. Na época, ele era do Partido Comunista.

Não obstante o fato de sermos estudantes da área de exatas da mesma Universidade e de estarmos, por assim dizer, em trincheiras ideológicas muito próximas, nossa amizade mantinha-se mais pelo amor ao cinema, à música e à literatura. Demorou muito para eu saber que meu amigo era um matemático brilhante que, poucos anos depois, teria destaque mundial em sua área.

Neste ano de 2015, após quase meia década sem contato, tive de escrever sobre os 100 anos do genocídio armênio. E, já que Markarian é filho de armênios que fugiram da perseguição turca — há ainda um Abrahamian em seu nome — consultei sem maiores objetivos seu nome no Google, fato que me fez dar de cara com uma série de fotos de meu amigo com o presidente José Mujica. O que teria acontecido? Do que não me informaram?

Markarian é um sujeito amável e tranquilo, dono de uma respeitável e variada erudição. Nela, curiosamente, nunca coube o futebol e ele reclama que muitas vezes é confundido com o irmão Sergio, famoso treinador que já comandou, por exemplo, as seleções do Paraguai, Peru e Grécia. Roberto é chamado por Sergio de “o irmão inteligente”, enquanto Sergio, no dizer de Roberto, seria “o irmão famoso”.

Markarian tem pelo menos oito livros publicados e dezenas de artigos que refletem seu trabalho como pesquisador. Até sua eleição como Reitor, investigava principalmente as propriedades não uniformes dos sistemas dinâmicos. Com a modéstia habitual, como se fosse algo comum, ele diz ser difícil alguém estudar o tema sem se referir a seus trabalhos. Para os leigos, trata-se de movimentos semelhantes aos de bolas movendo-se numa mesa de bilhar, sem atrito. Tais movimentos acabam por enquadrar-se em algumas definições de caos e têm aplicações na área tecnológica.

Bilhar? Markarian adverte que esteve apenas duas vezes inclinado sobre o pano verde. No entanto, conta que recebe rotineiramente publicidade de fabricantes de mesas de bilhar. Além de propostas para treinar times de futebol.

Agradeço à Elena Romanov, minha violinista favorita que se travestiu de fotógrafa, e aos professores Nikelen Witter e Éder Silveira, que me sugeriram algumas perguntas que talvez não me ocorressem.

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Precisamos “muita Universidade”, disse Mujica quando da eleição de Roberto Markarian como Reitor da Udelar | Foto: Nairí Aharonián-UCUR

Milton Ribeiro – Gostaria que tu descrevesses resumidamente tua atividade política e acadêmica até aquele período em que te conheci, no início dos anos 80.

Roberto Markarian – Comecei a estudar engenharia quando tinha 17 anos. Apesar de ir bem nos estudos, vi que a Engenharia não era minha vocação e fiquei na dúvida entre ir para a Geologia ou para a Matemática. Então eu visitei os dois institutos e decidi que a matemática era um bom lugar para mim. Obtive lá uma pequena posição de horista. E comecei a estudar dedicadamente matemática. Uns 4 ou 5 anos depois, entre 1968 e 1970, fiz um concurso para entrar como docente. O concurso era de nível de mestrado. E ganhei a posição mesmo sem ter qualquer outro título. Era outra época. Por exemplo, o maior matemático do Uruguai, José Luis Massera, não foi mestre em matemática, ele só tinha o diploma de engenheiro. Na época do concurso, eu já estava envolvido com a política. Entrei na escola de engenharia num ano e, no ano seguinte, era o secretário-geral do Grêmio Estudantil da Engenharia (CEIA). Era uma turma muito estudiosa, tentamos várias vezes expulsar professores ruins, mas acabamos renunciando após algumas derrotas…

Milton Ribeiro – Tu chegaste a assumir como docente ou não?

Roberto Markarian – Sim, assumi e comecei a dar aulas. Eu vivia disso. O dinheiro era bastante razoável. Quando veio a ditadura, em 1973, eu estava completamente envolvido com a atividade acadêmica e política, integrando a direção da juventude comunista. Também ocupava um cargo na Federação dos Estudantes (FEUU) e tinha sido membro do comitê de mobilização no agitado ano de 68. Acabei preso em 76 por minhas atividades no âmbito político. Fui processado e estive na prisão por 6 anos e 8 meses contínuos, mas já estivera lá outras vezes, entre 69 e 73, por um total de 4 meses.

'Aqui no Uruguai, a influência do movimento estudantil foi e segue sendo muito forte' | Foto: Elena Romanov
‘Aqui no Uruguai, a influência do movimento estudantil foi e segue sendo muito forte’ | Foto: Elena Romanov

Milton Ribeiro – Tu achas que a participação e a atuação política dos estudantes colaboram com a modernização educacional? Porque no Brasil, existe a política estudantil, a Universidade e há os professores, que costumam ficar alheios.

Roberto Markarian – Aqui no Uruguai, a influência do movimento estudantil foi e continua sendo muito forte. Por exemplo: a lei orgânica que regula o sistema universitário público, não existiria se não fosse pelo movimento estudantil. As formas educacionais são elaboradas pelos docentes, mas muitas coisas foram promovidas pelo movimento estudantil e continua sendo assim. Por exemplo, há uma influência muito forte dos estudantes nas eleições das autoridades das escolas. O sistema uruguaio é muito aberto, os estudantes têm influência real no corpo universitário. É difícil que uma autoridade importante seja eleita com oposição estudantil. No meu caso, na eleição de Reitor, eles se dividiram, mas tiveram participação ativa. Dos 105 votantes, 30 são estudantes. Eu diria que movimento estudantil tem uma influência muito grande, mas menor do que a que teve entre os anos 50 e 70. Depois da ditadura e modernamente, todo o sistema de influência democrática no mundo foi alterado, não só o do Uruguai. Mas os estudantes são sistematicamente ouvidos sim.

‘Entre 85 e 90, eu recebi três títulos: de bacharel, mestre e doutor’ | Foto: Elena Romanov

Milton Ribeiro – E tua vida depois da prisão?

Roberto Markarian – Depois de sair da prisão, decidi ficar no Uruguai por problemas familiares. Muita gente que saía da prisão saía do país também. Não foi o meu caso. Ficamos, eu, minha mulher na época e minha filha morando aqui e eu decidi que deveria continuar sendo matemático. Claro que perdi meu cargo em 1976, mas o recuperei em 85, quando voltou a democracia. Voltei ao mesmo cargo e ao mesmo nível que tinha na época anterior, quase dez anos antes. Então, meu amigo Marco Sebastiani e a professora Gelsa Knijnik me convidaram a ir para a Ufrgs. Eu fiz vestibular como se fosse um iniciante, consegui depois equivalência de algumas cadeiras. Eu tinha dificuldades para conseguir a equivalência porque estávamos ainda na ditadura. Os documentos me fugiam. Eu ficava viajando entre Montevidéu e Porto Alegre, dava e recebia aulas. Fazia provas e mais provas. A cada viagem, tinha que pedir autorização à polícia. Eu dizia sempre que ia visitar Marco Sebastiani e me autorizavam. No início, ficava na casa dele, depois na casa de outro grande amigo, Alejandro Borche Casalas. Nem tinha terminado o bacharelado e, simultaneamente, comecei a trabalhar na tese de mestrado. Em pouco tempo, dois anos, finalizei a graduação e o mestrado, tudo na Ufrgs. Então o pessoal do Impa, do Rio de Janeiro, ficou sabendo que tinha aparecido um cara com um trabalho grande de mestrado e com resultados interessantes — na verdade, meu trabalho foi publicado por uma importante revista — e me convidaram para ser aluno do Impa. E comecei a estudar lá no ano de 88. Doutorei-me em 1990. Foi tudo muito rápido. Entre 85 e 90, eu recebi três títulos: de bacharel, mestre e doutor.

Milton Ribeiro – Sempre indo e vindo, entre Brasil e Uruguai.

Roberto Markarian – Sim, fiz o mesmo sistema de ir e voltar. No Rio de Janeiro, morei menos de dois anos, foi o período que eu fiz cursos e a tese de doutorado.

Nikolai Chernov

Milton Ribeiro – Tu és um matemático muito respeitado. Quais são teus principais trabalhos?

Roberto Markarian – A disciplina a que mais me dediquei chama-se Dinâmica Caótica. É o estudo matemático da desordem. Há modelos simples de sistemas dinâmicos chamados de bilhares caóticos. Trata-se do estudo matemático dos movimentos desordenados. Nesta área, eu escrevi um livro, que só posso chamar de importante, com um colega russo chamado Nikolai Chernov, falecido faz pouco tempo. Trabalhamos a partir de modelos simples de movimentos desordenados e chegamos a resultados consistentes. Nosso trabalho foi publicado numa coleção de monografias da American Mathematical Society. O título é Chaotic Billiards. Publiquei outros livros, em parceria ou não, que serviram como preparação para este principal com Chernov.

Milton Ribeiro – Como foi teu contato com Chernov?

Roberto Markarian – Ele trabalhava em Moscou. Os principais estudos da área, naquele momento, vinham de Moscou. O grupo principal estava sediado lá com Chernov e seu chefe Yakov Sinai. Eu propus um pós-doutorado em Moscou, fui aceito, e viajei pouco tempo depois. Conheci Sinai e passei a trabalhar com Chernov, que estava no Centro Nuclear de Dubna, que fora criado pouco depois da 2ª Guerra Mundial por Stalin. Era o local de desenvolvimento de pesquisas nucleares para todos os países socialistas. A cidade fica a 110 km de Moscou, às margens do Volga. Chernov trabalhava no Centro Nuclear. Passei quase um mês morando com ele, fazendo matemática.

Milton Ribeiro – Eu imagino que esse teu trabalho com Chernov seja muito citado em trabalhos acadêmicos. Qual é a importância dele?

Roberto Markarian – Qualquer pessoa que queira estudar os elementos básicos da dinâmica caótica vai usar nosso livro como uma de suas principais referências. Eu não estava muito convencido disso, mas ultimamente, já como Reitor, fui a duas ou três grandes reuniões, uma delas em homenagem a Sinai, que tinha recebido o Nobel de matemática, o Prêmio Abel, concedido pelo noruegueses no valor de quase 1 milhão de dólares. Sim, é o maior prêmio para matemáticos. Depois, houve uma reunião de homenagem a Chernov, que morreu ano passado no Alabama, onde trabalhou no final de sua carreira. Aí, me convenci que era um livro de referência.

Milton Ribeiro – E isso é utilizado em quê?

Roberto Markarian – Além de ser usado nos cursos de pós-graduação de quem queira estudar o caos, é uma ferramenta teórica que serve à mecânica quântica e a outras aplicações tecnológicas. Há aproximadamente 30 pessoas no mundo que trabalham nisso no momento e eu fazia parte dessa turma.

Milton Ribeiro — Fazia?

Roberto Markarian — Porque agora, como Reitor, é muito complicado seguir produzindo.

Milton Ribeiro – O cargo de Reitor é muito importante no Uruguai. Até o presidente Mujica veio te saudar quando foste eleito.

Roberto Markarian – Sim, quando eu tomei posse no cargo, Mujica apareceu aqui. Afinal, era o Presidente da República e a posição de Reitor em nosso pequeno país é importante. Tabaré Vázquez também já veio nos visitar. A relação da Reitoria com o sistema político é muito grande e Mujica apareceu logo após a eleição, fez um discurso elogioso. Usou um provérbio que me parece ser utilizado no Quixote, Genio y figura hasta la sepultura, que significa que as características de algumas pessoas duram toda a vida, que não são fáceis de mudar.

Markarian e Mujica: nada fáceis de mudar | Foto: Pedro Rincón

Milton Ribeiro –  Tua neta diz que és a terceira pessoa mais importante do país….

Roberto Markarian(risadas) A Udelar é uma grande Universidade pública e de livre acesso em um país pequeno. Não há vestibular, quem desejar entrar, entra. Temos 100.000 estudantes e 10.000 professores. Do ponto de vista numérico ela é maior do que a Ufrgs. No Uruguai há uma outra Universidade, a Utec, com menos de 1000 estudantes. Ou seja, praticamente só existe a Udelar. Dos 10.000 professores, temos alguns que cumprem uma hora de obrigação semanal de trabalho e outros com dedicação exclusiva. O número de docentes com dedicação exclusiva são aproximadamente 1000.

Milton Ribeiro – Há estabilidade para os professores?

Roberto Markarian – Não, todas as posições docentes na Universidade são ocupadas inicialmente por dois anos e, depois, há as chamadas reeleições a cada cinco anos. Eu, por exemplo, mesmo depois que ganhei posições mais altas, tive que continuar comprovando merecimento para permanecer naquela posição. Cada professor tem que apresentar um informativo do que produziu, dos planos que tem para o período seguinte. Os Conselhos decidem se cada professor vai continuar ou não. A cada cinco anos, há possibilidade de você não ser eleito. A cada cinco anos, sua cabeça é colocada a prêmio. Não temos maiores proteções.

'Não temos maiores proteções, mas o critério para demissões de professores é objetivo' |Foto: Elena Romanov
‘Não temos maiores proteções, mas o critério para demissões de professores é objetivo’ |Foto: Elena Romanov

Milton Ribeiro – Em que casos acontecem as demissões?

Roberto Markarian – Se o professor não faz pesquisas, se ele não produz nenhum trabalho original ou criativo. Falo em criativo porque, se você é um artista deve produzir arte — ou projetos artísticos ou de pesquisas sobre arte — , se você é engenheiro tem que fazer projetos, patentes ou coisas referentes a alguma pesquisa. Se você é um professor muito ruim também pode não ser reconduzido, pois os estudantes podem te “jogar fora”, o que já aconteceu. Eu diria que, em geral, o sistema é muito bom. Não se pode dar nunca lugar à arbitrariedade. Claro que membros do Conselho podem detestar certos professores, mas normalmente prevalecem os critérios objetivos. A capacidade de autocrítica, de aplicar bem os critérios, está funcionando adequadamente. Houve um período em que algumas pessoas saíram por razões subjetivas ou políticas, mas isto não ocorre mais.

Milton Ribeiro – E como são os salários desses professores?

Roberto Markarian – O salário do professor melhorou nos últimos dez anos, especialmente no primeiro período do governo da Frente Ampla. Porém, se comparados com os salários da região, continuam baixos. É muito difícil comparar nossa remuneração com a dos professores brasileiros, porque o custo de vida está sempre se alterando, as moedas se desvalorizam, etc. Eu diria que, no início da carreira, os docentes daqui ganham menos que seus colegas brasileiros. Se você chega a um nível mais alto na carreira, os valores são semelhantes aos normalmente pagos pelas Universidades federais brasileiras, só que sem os extras que os professores brasileiros ganham. Não temos isso aqui. Ou seja, se você comparar, o salário básico é parecido, mas se você comparar o salário total, os salários dos brasileiros são melhores.

‘Não podemos ter uma Universidade em Montevidéu e outra no interior’ | Foto: Elena Romanov

Milton Ribeiro – O Uruguai é atrativo para um jovem doutor ou há muita fuga de cérebros? É bom para um jovem doutor permanecer aqui, ter uma carreira ou é melhor ir embora?

Roberto Markarian – Depende muito da área. Temos áreas onde a capacidade de absorção dos jovens doutores pelo sistema acadêmico é muito grande. Praticamente não há fugas de matemáticos, por exemplo. Em outras áreas, como as engenharias, existe uma saída maior, não obstante o fato de que há mercado de trabalho para todos engenheiros uruguaios dentro do país. Mas mesmo assim existe a fuga. De um modo geral, a fuga foi diminuindo. Sendo mais específico, há 4 ou 5 anos a situação era melhor e agora tem aumentado novamente. Há um fato dentro da Udelar que tem evitado a fuga do pessoal acadêmico: é que a Universidade, com o apoio do governo, cresceu no interior. Com isso, foram criadas muitas novas posições.

Milton Ribeiro — Como está sendo feita tal expansão?

Roberto Markarian — A Udelar expandiu-se muito pelo país e agora temos que concentrar esforços em manter a qualidade do trabalho em todos os lugares. Não pode haver uma Universidade do interior e outra de Montevidéu. Ambas — ou todas as unidades — têm que ser de mesma qualidade. Isso não é fácil, os recursos humanos no interior são diferentes dos de Montevidéu. O Uruguai é subdividido em 19 departamentos e todos nós sabemos que é um exagero. A Udelar tenta promover uma estrutura administrativa mais racional e eficaz. É um problema.

Asinando para Griselda ! Foto: Elena Romanov

Milton Ribeiro – E a tua vida como Reitor, quais são os outros desafios?

Roberto Markarian – Olha, minha principal obrigação como Reitor é assinar todos os títulos que a Universidade dá… É um trabalho maluco. Hoje já assinei mais de cem certificados e títulos. (risadas) Qualquer categoria de título tem que ser assinada pelo Reitor da Universidade. A lei é esta. (Ele pega um certificado) Veja só, aqui temos uma nova contadora pública, que se chama Griselda. Seu documento tem que ser assinado pelo Reitor. (Markarian assina) Aqui temos uma licenciada em economia, a Maria Catalina, que também vai ter o título legalizado por mim. (Markarian assina) Só Bach e Beethoven me ajudam nestas leituras e assinaturas! Mas vamos à pergunta. Neste momento, estamos às voltas com a questão orçamentária. Ontem, o Conselho Universitário aprovou o período para os próximos cinco anos. Essa não é uma responsabilidade exclusiva do Reitor. O Reitor preside de um Conselho de 25 pessoas, que funciona a cada duas semanas. Então, a decisão é coletiva. Os planos de estudos de todas as carreiras dependem de questões orçamentárias que temos que discutir com o governo nacional, porque somos praticamente financiados por ele. Cerca de 80% do orçamento da Universidade é financiado pelo governo. Apenas 20% vêm de recursos de contratos e convênios com organismos estatais e privados.

Meio milhão de computadores pessoais entregues gratuitamente para alunos e docentes do ensino básico | Foto: Elena Romanov
Meio milhão de computadores pessoais entregues gratuitamente para alunos e docentes do ensino básico | Foto: Elena Romanov

Milton Ribeiro — E quanto vocês pediram para o próximo quinquênio?

Roberto Markarian — O Conselho aprovou um pedido de aumento de 90% em valores nominais. Agora aguardamos a resposta governamental. Temos que preencher várias  lacunas que ficaram em aberto a partir do orçamento anterior. A proposta é de que se eleve o investimento na educação para 6% do PIB.

A “Ceibalita” com a imagem de Bolívar, presente de Chávez | Foto: Elena Romanov | CLIQUE PARA AMPLIAR

Milton Ribeiro – O ensino uruguaio parece muito avançado em relação ao brasileiro.

Roberto Markarian – Talvez. Estamos aplicando algumas tecnologias modernas no ensino. Temos o Plano Ceibal, que distribui as “ceibalitas” [pequenos computadores pessoais para atividades educacionais. O plano será melhor explicado na sequência da entrevista] para cada estudante e docente do ensino básico. São equipamentos que eles recebem de graça. Temos mais de meio milhão dessas máquinas e a foto que vocês estão tirando será curiosa porque o quadro que está por trás, o quadro de Simon Bolívar, foi um presente de Hugo Chávez para o Reitor anterior. Chávez morreu antes de eu assumir. Voltando a uma pergunta que fizeste anteriormente, aquela sobre a importância que o Reitor da Udelar tem neste pequeno país: desde agosto já recebi a presidente do Chile e o presidente da Bolívia. Muita coisa passa pela Universidade. Ontem, tive uma reunião para discutir o Plano Ceibal e outra com o presidente da Corte Eleitoral, a qual controla o sistema eleitoral uruguaio e o sistema eleitoral universitário, para decidir quem pode votar ou não, etc. E ainda tento desenvolver projetos na área da matemática.

Milton Ribeiro – Essa era a minha próxima pergunta: como é que consegues conciliar o matemático com o gestor?

Roberto Markarian – Terminei de revisar uma tese de mestrado. Sou orientador de um aluno da USP. Acho que em outubro ele vai defendê-la. Viajei há dois meses para participar da qualificação dele lá na USP e estou tentando terminar dois trabalhos que havia começado antes e que estão aí sobre a mesa. Isto é, faço pouco. Aqui no reitorado, sou obrigado a mudar constantemente de foco. Não há como me concentrar em apenas um tema. Tento ouvir música para auxiliar nas tarefas mais burocráticas. Ter sempre um Bach à mão é fundamental.

José Pedro Varela (1845-1879), o reformador da educação uruguaia: laica, obrigatória e gratuita

Milton Ribeiro – Os ideais de [José Pedro] Varela são de um ensino laico, obrigatório e gratuito. Isso permanece?

Roberto Markarian – Sim, o ensino público é gratuito, de livre ingresso e, para você fazer algumas carreiras, é necessário que tenha feito um determinado tipo de secundário. Se você quer engenharia, terá de fazer um preparatório científico no estudo secundário. Se você quer ir pra medicina, faz outro curso secundário. Minha filha, por exemplo, começou estudando o científico e, quando eu estava em Porto Alegre, passou para o humanístico. Foi uma briga familiar. Hoje é historiadora, doutora em História pela Universidade de Columbia, Nova York. O sistema é livre e universal e isso tem vantagens para os estudantes, mas às vezes gera problemas para a Universidade pela convivência de alunos muito heterogêneos. A diferença de conhecimento dentre eles é muito grande. Quando dei aulas para os primeiros anos de ensino universitário, notava que a diferença entre os estudantes, dependendo da escola onde estudaram, era imensa, mesmo dentro de Montevidéu. Havia gente que sabia tudo e gente de escassos conhecimentos, e todos eles estavam juntos na Engenharia… Você tem que fazer com que aprendam. O que sucede é que, fazendo um cálculo grosseiro, dois anos depois temos apenas a metade dos que iniciaram o curso de Engenharia e apenas 1/3 dos alunos se forma. Em outras carreiras este percentual não é muito diferente.

Milton Ribeiro – O que faz um aluno do científico que decide fazer História, por exemplo?

Roberto Markarian – Bom, agora temos um sistema bastante estranho. Se você faz uma certa quantidade de créditos de qualquer carreira, pode passar para outra. Isto é permitido. Não lembro dos números exatos, mas, por exemplo: se um aluno tiver 15% da Medicina feita, estará autorizado a passar para a Engenharia. Não tem que ir para trás e recomeçar tudo de novo.

Milton Ribeiro – E é possível fazer duas faculdades?

Roberto Markarian – Sim. Por exemplo: tem muita gente que entra na Engenharia e faz Física ou Matemática ao mesmo tempo. Tem gente que acaba uma faculdade e, depois de um período, retorna para outra, dependendo do interesse ou da vocação pessoal. Foi o meu caso. No início eu não fazia faculdade de Matemática, entrei pela Engenharia.

Sede principal da Udelar na Avenida 18 de Julio, 1824, em Montevidéu

Milton Ribeiro – 20% dos alunos vão para as universidades privadas. Por quê? Se eles podem ter algo de graça, por que pagam?

Roberto Markarian – Temos três universidades privadas e alguns institutos, que se chamam institutos universitários, que têm mais ou menos 20% dos estudantes de nível superior. É um cálculo grosseiro, novamente. Eles vão para lá por razões particulares. Uns vão pela tranquilidade, por ser um lugar mais limpo ou porque fizeram o ensino secundário em escolas privadas. Isto certamente influencia. O dinheiro também. Uma parte dos filhos das pessoas mais ricas procuram as instituições privadas. Seguramente os alunos destas universidades provêm dos 2/5 mais ricos do país. São pessoas que podem pagar o curso que desejam para si ou para seus filhos. Porém, temos muitíssimos alunos dentre os 20% mais ricos.

Milton Ribeiro — A Universidade dá bolsas para os mais pobres?

Roberto Markarian – Sim. O sistema uruguaio pode dar pequenas bolsas para estudantes. Temos hoje 7.000 estudantes nesta situação. Os beneficiários deste programa, cinco anos depois de se graduarem, começam a pagar um imposto que vai direto financiar um fundo de solidariedade para estudantes pobres. Para seguir recebendo a bolsa, o beneficiado tem que ser um estudante razoável, mas o critério principal é o econômico. É realizada uma verificação da renda familiar e de outros fatores sociais. Muitas pessoas que não foram beneficiárias de bolsas colaboram para o fundo de solidariedade. Eu sou uma delas.

As bolsas não são para os melhores alunos e sim para os pobres poderem estudar | Foto: Elena Romanov
As bolsas não são para os melhores alunos e sim para os pobres poderem estudar | Foto: Elena Romanov

Milton Ribeiro – O imposto é mensal ou anual? Qual é o valor da bolsa?

Roberto Markarian – É um pequeno imposto anual. A universidade também tem um sistema de bolsas próprio, mas que só financia os restaurantes universitários e os alojamentos de alguns estudantes. Perguntaste sobre o valor das bolsas para os alunos carentes. É pequeno: é de aproximadamente 7 mil pesos, algo em torno de R$ 1.000. Eles só têm obrigação de passar em uma quantidade mínima de matérias. Não é um benefício dado aos melhores alunos, é para os pobres poderem estudar. Porém, se alguém ficar três anos sem passar em nenhuma disciplina, perderá a bolsa.

Milton Ribeiro – Raros estágios pagam isso no Brasil… Você disse que o Reitor não fala em política. Fale-me sobre a participação dos intelectuais na vida política do Uruguai. No Brasil, atualmente, poucos escritores opinam por receio de se comprometerem, por medo de perderem convites de prefeituras e governos para Feiras e eventos, etc. Como é aqui?

Roberto Markarian – Aqui é o inverso. Falam até demais! [risadas] A posição do Reitor é bem diversa. Ele e os membros do Conselho Universitário têm proibidas quaisquer atividades político-partidárias. Isso está na Constituição da República: os membros das direções e dos organismos autônomos não podem ter participação política. Mas a Universidade é normalmente acusada de ser um organismo de esquerda. Não é, a Universidade é do estado uruguaio, não é de esquerda nem de direita. É uma Universidade. Ontem mesmo me perguntaram porque os esquerdistas dominam a universidade e eu respondi que isto não é verdade. Você tem um Conselho e um Reitor, isso sim. Aqui, eu não sou de esquerda nem de direita. Sou Reitor. Dirijo uma instituição acadêmica e particularmente faço questão de não me posicionar. É muito importante, porque fui eleito por uma coalizão impossível de se explicar do ponto de vista político. Tinha gente da ultra esquerda e da direita. Se me posicionar, serei fatiado, tomografado.

Como Reitor, nem sou de esquerda nem de direita. Temos que participar da discussão dos grandes temas do país | Foto: Elena Romanov

Milton Ribeiro: Mas a Universidade participa intensamente das grandes discussões do país.

Roberto Markarian – Sim, claro! Agora mesmo nós estamos discutindo sobre a atualização do Plano Ceibal, que é o plano implantado no Uruguai em 2007 de “Um computador por aluno”. Todos os alunos de escolas públicas recebem computadores portáteis. A distribuição também chega aos professores e a iniciativa é bem-sucedida. O programa aumentou a frequência dos alunos nas escolas, diminuiu a exclusão digital dos adultos e tem contribuído para a melhoria da educação infanto-juvenil. É um sucesso, mas tem de ser monitorado. As tecnologias e os programas mudam e é importante manter esta ferramenta de ensino. Na Universidade, estamos na ponta superior, mas nossos estudantes vêm do ensino básico. Temos que dar nossa contribuição. Estamos também opinando sobre a Lei de Competitividade que está em discussão no parlamento. Encontramos problemas e alertamos o governo, que muitas vezes nos consulta. A Universidade não dá opiniões políticas, mas avaliações técnicas, gerais, abalizadas e abertas. Temos boa relação com os poderes políticos. Uma vez por semana, em média, recebo um ministro aqui. É verdade que muitas vezes acontece de gente sair de posições universitárias para posições políticas. Vários ministros da Cultura, por exemplo, saíram do sistema universitário. Há efetivamente um trânsito entre o sistema universitário e o sistema político, mas eu diria que nenhum dos reitores, dos que eu conheci em minha longa vida universitária, chegou ao reitorado pensando em ocupar posições políticas.

Milton Ribeiro – Te confundem muito ainda com o teu irmão Sérgio Markarian, o célebre técnico de futebol, ou não?

Roberto Markarian – Sim, sim. Tive que mandar uma declaração ao El Pais. Eles colocaram Sérgio Markarian como Reitor da Universidade do Uruguai. Recebi um pedido de desculpas. Mas nunca me colocaram como técnico de time de futebol. [risadas]

Matemática e (muita) cultura, por que não? | Foto: Elena Romanov

Milton Ribeiro – Onde está o Sérgio agora?

Roberto Markarian – Ele está voltando da Grécia, onde treinava a seleção.

Milton Ribeiro – Nós falávamos sobre como sobrevive o pesquisador e o reitor. E como é que sobrevive o Markarian que conheci, que estava sempre indo ao cinema e lendo livros?

Roberto Markarian – Ah, esse Markarian continua… Lendo poucos livros. A última coisa grande que eu li foi a trilogia americana de Philip Roth, além de literatura japonesa. Sou apaixonado pela literatura japonesa, em especial por Yasunari Kawabata, Nobel de 1968, cujas obras me impressionam pela sensibilidade com que falam do mundo oriental e pelo retrato das relações humanas dentro do cenário dos anos 60. Em agosto, em plena campanha para Reitor, viajei à Coréia e ao Japão para um Congresso Mundial de Matemáticos [ICM Seul 2014]. Minha única viagem extra foi para conhecer Kamakura, a antiga capital do Japão, onde se passam várias de suas obras.

Milton Ribeiro — Não conheço Kawabata…

Roberto Markarian – Problema teu! [risadas] Falando sério, tenho certeza de que tu gostarias muito dos livros dele.

Milton Ribeiro – Mas leste Padura agora também né?

Roberto Markarian – Não, na verdade El hombre que amaba los perros está ali sobre a mesa, mas ainda não o li.

Milton Ribeiro – Tu disseste em algum lugar que vais duas vezes por semana ao cinema…

Roberto Markarian – Sim, eu sou sócio da Cinemateca Uruguaia. Vejo dois filmes por semana, qualquer coisa que possa ser boa. Na semana passada vimos um filme de John Huston que se chama Paixões em fúria [no Brasil]. É um filme extraordinário do final dos anos 40. Também vimos Quando Voam As Cegonhas, de Mikhail Kalatozov, autor também de Soy Cuba. Quando Voam As Cegonhas é um filme primoroso sobre a ausência e a morte. Nossa Cinemateca é muito boa. Eu diria que vou ao cinema duas vezes a cada sete dias quando o negócio não está muito complicado aqui na Universidade. Mas eu tento. E tem que ser no cinema. Comprei uma TV enorme e todo o material para ver filmes em casa, mas não é a mesma coisa.

Elena Romanov, Roberto Markarian e eu
Elena Romanov, Roberto Markarian e eu

Uma anticrítica do concerto de ontem à noite

Uma anticrítica do concerto de ontem à noite

Não tenho grandes conhecimentos musicais, sou apenas um melômano, um desses caras que pode ouvir o amigo Phil cantar o segundo movimento da quinta de Prokofiev e sair em dueto com ele, como ocorreu ontem à noite. Ou um trio, porque a Elena acabou cantando junto. Cantamos o tema principal e aquele trecho dos 5min06 em diante. Sorte de vocês não terem ouvido. Abaixo, tenho uma versão melhor.

Voltando ao assunto inicial, tenho um bom conhecimento de repertório e um programa mal planejado é uma coisa que me afeta muito. Augusto Maurer deu a explicação técnica de minhas restrições ao programa da última terça-feira (03 de junho), citou fatos que sinto mas que não tenho capacidade para explicar, etc. Então, nesta quarta-feira em que poderia ser mais produtivo, escolho um tema preguiçoso para encher o saco de meus sete leitores.

Pois, de forma enviesada, a programação musical faz parte de minha vida, e talvez isso seja surpreendente para alguns. Tenho ideias de programas de concertos que vocês nem imaginam. Então, vamos comentar algumas coisas. Minha formação como ouvinte teve muito de meu pai, do Dr. Herbert Caro de quem era amigo, além de enormes doses da Rádio da Universidade dos anos 70, 80 e 90. Os méritos da rádio ultrapassavam em muito seus problemas técnicos e foi ali, com o compositor e ex-diretor da emissora Flavio Oliveira e com Rubem Prates, que aprendi que uma programação não era sorteio ou livre-associação. É notável como eles conseguiam ligar inteligentemente cada música à próxima, fosse por seu tema, por sua evolução na história da música ou pela pura sensibilidade desses dois conhecedores, que viam parentescos em coisas aparentemente díspares. Só através do ouvido – há outro jeito? — aprendi como, por exemplo, o estilo de composição de Johann Christian Bach foi receber tratamento de grande música apenas com Mozart e também que havia várias formas de subir na grande árvore da história de música. Explico: pela manhã, a rádio iniciava por um compositor de música antiga ou barroco, depois ia para um clássico, daí para um romântico, e assim por diante, nos mostrando sempre os caminhos e os diálogos que um compositor travava com seu antecessor. Foi a maior das escolas e ali aprendi as muitas derivações que cada compositor passava a seus sucessores e aquilo, após milhares (mesmo!) de dias como ouvinte, tornou natural a leitura das histórias da música que fiz depois. De forma misteriosa, estranha e certamente gloriosa, aqueles dois homens silenciosos já tinham me ensinado tudo, colocando as coisas na ordem certa para que meu ouvido entendesse.

Minha segunda escola foi uma coluna da revista inglesa Gramophone. Assinei-a por anos. Lá havia uma coisa que só no jornalismo inglês: era a sensacional coluna “Who`s Next?”, de título obviamente inspirado no lendário vinil do The Who. Ali, um dos críticos da revista criava uma fantasia. Ouvia um CD qualquer e algo nele — um timbre, um acorde, um tema — o fazia lembrar de outra música, a qual o fazia lembrar de outra, e de outra até o fim da coluna ou dos tempos. Na coluna, o cara ia de Mahler para Gabrieli, de Bach para Charlie Mingus com a maior naturalidade e argumentos. Era uma brincadeira que estava longe da livre-associação da programação da Ospa, era algo que tinha uma poesia. Nossa que saudades da minha coleção de Gramophone! Minha mãe jogou todas as revistas fora no início de sua doença (Alzheimer).

Tenho o costume de caminhar pela rua inventando concertos. Ontem, iniciei um com a Fantasia Wanderer de Schubert, mas não fui adiante. Fiquei preso naquela fuga.

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Carrara brindou-nos com uma versão do Scherzo do Hammerklavier, 30 minutos antes do concerto.
30 minutos antes do concerto, André Carrara (primeiro plano) brindou-nos com uma versão do Scherzo do Hammerklavier. Um belo aquecimento. | Foto: Augusto Maurer

Com restrições — diferentes daquelas do concerto do dia 3 –, gostei do concerto da Ospa de ontem (10), principalmente do Ginastera final e do aquecimento do pianista André Carrara, tocando o Scherzo do Hammerklavier. Mas não estou a fim de escrever a respeito. A discussão da semana passada ficou lá longe com o meu “salário moral” sendo muito bem pago por uma longa série de importantes inboxes dizendo que eu tinha razão em reclamar do erros e da “dramaturgia da noite”. Pediram para eu tocar em frente, só que fiquei temporariamente de saco cheio da blitz dos defensores acríticos da… orquestra? Isto exige um compadrio ao qual não estou disposto. Gosto é de música, de literatura, do meu trabalho, dos meus amigos, filhos e da Elena, gente.

Brigar, fazer cara feia ou voltar o rosto não está entre as minhas prioridades. Mas sei que logo estarei disposto a rir destas coisas. E vou tirar um sarro.

A noite acabou maravilhosamente com zupa kapusta, mais pão, vinho, café e outros que tais, na casa da Astrid Müller e do Augusto. Minha ressaca de hoje e a citada cantoria de ontem é culpa deles. Nada a ver comigo, portanto. Zupa kapusta é uma sopa polonesa de carne de porco, salsicha, chucrute e repolho. Estava FANTÁSTICA!

O dia em que o saudoso Antônio elogiou um professor

O dia em que o saudoso Antônio elogiou um professor

angry_teacherEssa história do Antônio é sensacional, mas temo ser um narrador muito inferior a ela. Vou tentar, tá?

Na engenharia, naquele final dos anos 70, nós tínhamos um semestre de Cálculo Numérico e duas opções de professores. A primeiro chamava-se Porto e a segunda Cláudio. Excelente professor, Porto era tido por um gênio e talvez fosse. Hoje, além de gênio, ele seria um grande riponga. Vinha para a aula de sandálias quando estas eram usadas somente por religiosos; usava cabelos compridos, mas não penteados como os nossos daquela época — os dele eram uma zona. As roupas eram andrajos e todos os caras mais inteligentes o escolhiam. Porém, ele tinha duas características da qual eu não gostava: evitava o olhar direto e parecia destituído de humor. Já Cláudio era considerado um sujeito muito competente, mas convencional. Era respeitado. Baixinho, careca, de óculos… Ninguém ousava referir-se a seu estrabismo convergente. E eu me matriculei junto com meu amigo Antônio para fazer a cadeira de Cálculo Numérico com Cláudio. As aulas eram terças e quintas no horário das 20h30 às 22h10.

O que ninguém tinha me contado era sobre a voz monocórdica do professor. Aquilo era pior do que ingerir um vidro inteiro de Dramin estando com o estomago vazio. O cara começava a aula e, em quinze minutos, via-se corpos esparramados pela sala. Se alguém tirasse uma fotografia de nossa sala durante aqueles momentos terríveis, veria todo o tipo de posturas cansadas: gente atirada com a cabeça e os braços sobre a mesa, gente olhando o vazio, gente com os pés para cima, bocejos, gente conversando, conversando, conversando. Cláudio tinha uma mania. Quando finalizava uma demonstração, olhava-nos com ar vitorioso. Então víamos um sutil sorriso manter-se por um longo minuto em seu rosto enquanto nos observava. Eu via aquilo e pensava no quanto ele nos ignorava. Ele era feliz explicando seus teoremas e isso lhe bastava. E a gente, vendo aquele perigoso sorriso, copiava rapidamente o conteúdo do quadro-negro para estudar tudo em casa, quando estivesse efetivamente acordado.

Um dia a coisa foi longe demais. Estava quente, úmido, insuportável como só Porto Alegre sabe ser e a atenção ao professor conseguia ser menor que o habitual. Para completar, parecia que ele não gostava daquele trecho da matéria. A aula estava tão ruim e desinteressante que ele não mostrara ainda seu ar vitorioso. O sofrimento encaminhava-se tristemente para o final quando o Antônio ergueu o braço para fazer uma pergunta. Cláudio atendeu-o de pronto. Para a surpresa de todos, Antônio levantou-se da cadeira. Pelo visto, não podia fazer a pergunta sentado. A coisa ficou ainda mais séria quando ele iniciou sua fala com um sonoro “Prezado professor Cláudio”:

— Prezado professor Cláudio. Gostaria de dizer algo muito importante para mim e que certamente o deixará feliz.

A turma começou a se mexer, acordando da longa aula, verdadeira cura para a insônia. Cláudio observou Antônio de pé e pediu:

— Sim, o que é?

Antônio fez uma cara de absoluta paixão pela ciência matemática e, com voz embargada, começou:

— Professor, eu gostaria de lhe dizer que esta foi a maior e melhor aula que já tive em toda minha vida. O Sr. foi de um brilhantismo irrepetível. Nunca, em minha experiência universitária ouvi observações de tanta pertinácia, explanadas com tanta didática, clareza e talento. O Sr. torna minha vida mais feliz.

É claro que já havia gente rindo, na verdade havia gente dando gargalhadas descontroladas, tal a surpresa e a inadequação àquilo que ocorrera em aula. A coisa era tão inacreditável que o professor quedou-se inteiramente paralisado, sério, no estrado, observando detidamente o autor do discurso, como se ele fosse um ET. Depois, ele passou a olhar também os alunos que riam, dentre eles eu. E passava o olhar de nós para Antônio e de Antônio para quem já chorava de tanto rir. Ator perfeito, Antônio mantinha-se contrito, com cara de devoção. Eu já estava me sentindo mal, quando o professor perguntou a Antônio:

— Tu estás falando sério?

Foi a pergunta mais tola possível. Foi a pergunta de uma pessoa que não está impermeável ao elogio mais chão. Ele queria acreditar no Antônio. A resposta do meu amigo foi mais uma torrente de elogios.

— Professor, faz algumas semanas que me embeveço suas aulas, mas a de hoje ultrapassou tudo o que eu tinha presenciado até hoje nesta universidade. Eu estou agradecido por sua competência e dedicação a nós — disse com toda a seriedade.

Todos estavam quase rolando de rir, quando o professor nos mandou calar a boca em voz tonitruante. A aula continuaria.

Antônio sentou-se. Antes de seguir a tortura, Cláudio ainda voltou-se novamente para o aluno e o encarou longamente. Sua vaidade estava perdendo a guerra interna e ele finalizou o olhar inteiramente vermelho. Viu-se claramente que ele passara a acreditar mais nas risadas.

Aqui, a primeira história de Antônio.

A acadêmica é a mais violenta das vaidades

Cartaz de Nota de Rodapé. O filme só está no Guion Center, em Porto Alegre.

O filme Nota de Rodapé, de Joseph Cedar, acendeu todas as minhas luzes internas de “Perigo, perigo!”, como dizia o robô de Perdidos no Espaço. É uma produção israelense absolutamente atemporal e universal, nada tendo a ver com a nojenta política do país. Eliezer e Uriel Shkolnik são pai e filho, ambos  acadêmicos, que dedicam a vida ao estudo do Talmude, o livro sagrado dos judeus. O pai Eliezer é um turrão deprimido que se sente rejeitado pelos colegas. Apesar de passar seus dias estudando em bibliotecas com tapa-ouvidos para não ser perturbado pelo mundo, publicou pouco e apenas pode ser orgulhar de uma nota de rodapé num trabalho seminal de sua área de estudo. É o homem de muitos livros (ou papéis) que se vê no cartaz. Por outro lado, Uriel é uma estrela ascendente bajulada por seus pares, um bando de inexplicáveis semideuses. Também publica muito, vende muito e é sempre reconhecido.

O filme inicia justamente com a cena de umas das premiações recebidas pelo filho. O pai assiste irritado, suportando com dificuldade o desajeitado elogio que o filho lhe faz. Sei que na vida acadêmica, ambiente de estabilidade empregatícia onde grassam paixões e vaidades oceânicas, algumas pessoas — nem todas — cultivam espetaculares ódios. Meu interesse pelo filme acendeu-se de forma ainda mais feérica por ter vivido — ou ter sido casado — com duas mulheres extremamente competitivas na vida universitária. Ou seja, quando o filme começou, logo concluí através de minha experiência: que legal, esses caras vão se matar. Ajeitei-me na cadeira porque sabia que veria gente efetivamente decidida a envenenar a vida do próximo sem a menor compaixão. Não me decepcionei.

Tudo vai caminhando pessimamente na família até que Eliezer, o pai, recebe o Prêmio Israel, a maior distinção acadêmica do país. Como assim? O pai e não o filho?

ATENÇÃO: A partir deste ponto, haverá um alto grau de spoilers. Se você os evita, volte a ler somente a partir do próximo parágrafo em itálico.

Eliezer recebeu a notícia da própria Ministra. Ele, de seu modo discreto, avisou a família e até comemorou. Também muito discretamente, o filho ficou contente por ver o trabalho de seu pai enfim reconhecido, mas, opa, houve um terrível engano. O filho é chamado à Comissão e fica sabendo que o prêmio era para ele, que a secretária errou de Shkolnik na hora de ligar. Em atitude mais ou menos digna, o filho não aceita o prêmio, diz que vai “matar o pai de desgosto” se aceitá-lo. Só que o presidente do juri diz que em hipótese alguma dará o prêmio para Eliezer, com o qual tinha antiga desavença… Numa cena patética e habilmente dirigida por Cedar, dentro de uma pequena sala totalmente inadequada, Uriel e o presidente do juri trocam empurrões. Todos se detestam.

Enquanto isso, em sua casa, Eliezer dá uma entrevista a um jornal onde, instado pela repórter, acaba desajeitadamente demonstrando seu desprezo pelo trabalho do filho, que faria pesquisas sem nenhuma profundidade e critério. Coisinhas superficiais.

Mesmo assim, Uriel volta a se reunir com o principal jurado e o último força um acordo.

— Certo, eu dou o prêmio a teu pai, mas, primeiro, com a condição que você, e não a Comissão Julgadora, escreva o texto laudatório que apresentará Eliezer como vencedor e, segundo, que você nunca mais concorra ao Prêmio Israel, mesmo depois de minha morte.

A surpreendente condição o deixa desesperado. A necessidade de vingar-se, de prejudicar alguém, obriga o presidente do juri a ver Uriel desistindo de outro título, do principal deles. E o que são os acadêmicos do gênero carreirista sem títulos? Com muita raiva, chutando tudo o que vê pela frente, o filho aceita as condições e escreve o texto para seu pai Eliezer. O pai, pesquisador experiente, desconfia que aquelas palavras não são de outro que não de seu filho. Comprova o fato exercendo sua especialidade: compara textos de Uriel, do presidente do juri e da carta recebida e…

Fica absolutamente quieto, indo receber o prêmio. Afinal, é uma distinção.

A partir daqui, no more spoilers.

Não afirmo que todos os acadêmicos tenham este comportamento, mas conheço vários casos. Ah, as viagens, as bolsas, as negociações para assinaturas em trabalhos — tudo conta, tudo conta! — , as escalas. Céus, que dramas! Houve tempo que em todos os sábados à noite eu ouvia fofocas da ADUFRGS (esta sigla, a do Sindicato dos Professores das Instituições Federais do Ensino Superior de Porto Alegre ou Associação dos Docentes da UFRGS, causa-me calafrios). Só eu sei o tédio que passei e os absurdos planejamentos, muitas vezes postos em prática, que ouvi. Um mundo peculiar. Tenho a impressão que o de padres e freiras é semelhante.

O filme de Cedar acerta em resumir grandes partes da história de Nota de Rodapé de forma gráfica e com sons de violinos em pizzicatto. Todas aquelas relações são farsescas e eu, sinceramente, não sei como se faz para produzir conhecimento nestes caldeirões de ódios, vaidades e invejas. Talvez seja necessário, sei lá.

Por falar em prêmios, Nota de Rodapé disputou e perdeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para o iraniano A Separação. Ambos são grandes filmes, mas Hollywood acertou ao escolher o filme de Farhadi, com seu tema muito mais relevante. Não penso que Cedar queira matar o diretor iraniano por causa disso. Quem faz Nota de Rodapé — melhor roteiro no Festival de Cannes de 2011 (ufa, pensa Cedar, ao menos este eu ganhei…) — é superior às questiúnculas vitais, importantíssimas, dos “departamentos”.

Uriel e Eliezer Shkolnik

Os símbolos religiosos e quem não os quer mais

TJ-RS negou solicitação para retirada de símbolos religiosos de repartições públicas, citando preâmbulo da Constituição | Foto: Ramiro Furquim / Sul21

Publicado em 4 de março de 2012 no Sul21

“Se Deus não existe e a alma é mortal, tudo é permitido”, diz o personagem Ivan Karamázov em Os Irmãos Karamázovi, de Dostoiévski. O russo era cristão e foi um escritor genial. Tão genial que lograva transferir-se para a pele de seus personagens de tal maneira que é difícil supor as ideias do homem por trás do romancista. Pois Dostoiévski não parece projetar-se em ninguém; em seus romances não há uma voz onisciente que comande tudo. Desta forma, o ateu Ivan Karamázov era provocativo, principalmente com seu irmão mais moço, o beato Aliócha, e a célebre frase é um caso exemplar de descontextualização por ter sido pronunciada por Ivan para Aliócha e não de Dostoiévski para uma plateia, por exemplo.

A noção de entidades superiores que julgam os atos dos homens talvez preceda a própria noção de humanidade. Para a antiguidade, de forma mais indiscutível do que hoje, Deus criara não apenas a vida e a existência do mundo e do universo, mas encarnava os preceitos éticos do certo e do errado. Deparando-se com o caos da vida e com leis insuficientes, os homens precisavam de limites. Sem eles, talvez os homens roubassem e matassem uns aos outros, cada um pensando ter direito a tudo. Deus os olharia e julgaria, no papel de representante do bem, do correto e da retidão, enquanto o Diabo representaria o mal, o errado, a destruição, o roubo e a morte. O ser humano que estivesse em coesão com Deus estaria de acordo com sua justiça.

Santo Agostinho, porém, disse: “Não basta querer crer, é necessário podê-lo”

Depois — durante toda a Idade Média e além, houve longo predomínio da moral cristã no mundo ocidental — , Deus permaneceu identificado com o Bem, a Justiça e a Verdade. Santo Agostinho (354-430), bispo, teólogo e filósofo da Igreja Católica, fundamentou a moral cristã na busca pela felicidade e a felicidade suprema consistiria num encontro com Deus na imortalidade. Só assim o homem poderia ser verdadeiramente feliz. E, para sê-lo, bastaria obedecer às leis e aos preceitos de Deus.

Desta forma, a Justiça dos homens acostumou-se a invocar Deus a fim de julgar corretamente os problemas do mundo, pois o contexto impedia a existência de teorias éticas autônomas da doutrina da Igreja. Todas elas, de uma forma ou outra, teriam que estar de acordo com os princípios divinos. Quem não viu filmes onde a testemunha, antes de responder a qualquer coisa, jurava dizer a verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade, com a mão sobre a Bíblia?

Crucifixo que abençoa o plenário da Câmara Municipal de Porto Alegre | Foto: Ramiro Furquim/Sul21.com.br

Não surpreende, portanto, que até hoje haja símbolos católicos nos prédios da Justiça e de outros órgãos públicos. É contra isto que a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) e outras cinco entidades protocolaram pedidos. Desejavam a retirada dos símbolos religiosos das repartições do Executivo estadual, da Assembleia Legislativa, da Câmara dos Vereadores de Porto Alegre e do TJ-RS, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Em resposta, o juiz assessor Antonio Vinicius Amaro da Silveira utilizou o argumento de que, no preâmbulo da Constituição de 1988, consta a frase de que esta fora promulgada “sob a proteção de Deus” e isto garantiria que aqueles símbolos religiosos não deveriam ofender os ateus e os adeptos de outras crenças. Seriam esperados e “naturais”.

Naiara Malavolta, articuladora estadual (RS) da Liga Brasileira de Lésbicas, explica a ação na Justiça: “Primeiramente, há uma clara contradição na Constituição Federal. A constituição que declara o estado como laico foi escrita ‘sob a proteção de Deus’. O fato é que precisamos reagir contra a invasão do público pelo privado. Nas escolas, a história das religiões deveria ser ministrada por historiadores, não por religiosos. A consequência de toda esta presença é a desconstituição de direitos por parte de  representantes da moral católica”. Sobre os símbolos, Naiara explica que os símbolos religiosos agridem boa parte dos homossexuais, pois simbolizam não apenas a fé como a tutela da instituição sob uma moral religiosa. “Muitos evangélicos, por exemplo, pouco sabem do que está escrito na Bíblia, mas ouvem o que é dito nas reuniões. E o que é dito é a posição majoritária evangélica: são homofóbicos, contra o aborto, propõem ‘curas gays’, etc. A oposição ao PLC122 (Projeto de lei que criminaliza a discriminação por orientação sexual) por parte da bancada evangélica diz tudo.

Monumento à Bíblia em praça de Paranavaí

O antropólogo Emerson Giumbelli, professor da UFRGS e coordenador do Núcleo de Estudos da Religião (NER) afirma que há, cada vez mais, iniciativas visando a retirada dos símbolos religiosos de locais públicos, mas que a resistência é  forte. “As respostas costumam ser ou evasivas ou de clara recusa. Porém, se reconhecemos a sociedade como plural em termos religiosos, tais símbolos, tidos como naturais a quem professa a religião católica, deveriam ser retirados”. Perguntado sobre o fato dos símbolos serem católicos, Giumbelli respondeu que “o cruxifixo é uma imagem rigorosamente católica, os protestantes e muitos evangélicos usam as cruzes sem o Cristo. A novidade é que a Bíblia tem crescido como símbolo de religiosidade, principalmente entre os evangélicos, mas também em Câmaras de Vereadores, etc. Por exemplo, no interior do país, já há muitos Monumentos à Bíblia. Os crucifixos têm cada vez menor representatividade”.

Sobre o fato da iniciativa dos pedidos de retiradas serem basicamente dos movimentos LGBT, Giumbelli afirma: “É claro que tais movimentos são muito mais sensíveis à questão. Porém, e isto agora é uma opinião pessoal, penso que eles só conseguirão avançar quando um leque mais amplo da sociedade civil lhes der apoio. O fato é que não há mais símbolos consensuais. A extensão de cada um é limitada e há ainda que considerar as pessoas sem religião”.

O antropólogo da UFRGS faz questão de sublinhar um fato que vem ao encontro da manifestação do desembargador Túlio de Oliveira Martins, presidente do Conselho de Comunicação Social do TJ-RS e finaliza: “Fico feliz que esta discussão exista. Discutir símbolos religiosos ou a retirada total deles é muito importante. Além da questão cultural e pessoal há o princípio do estado laico que não deve ser desrespeitado”.

E Dostoiévski? Melhor esquecê-lo? Não, de modo algum. Afinal, a frase deve ser limitada a uma inteligente provocação de Ivan Karamázov a seu irmão Aliócha. A quem duvidar disto, bastará ler o que diz Raskolnikov em Crime e Castigo e saber que Dostoiévski jamais assassinou velhinhas a machadadas. O personagem acaba antes do autor, assim como o privado antes do público.

A morte da Artemis no campus da UFRGS

A cadela pitbull Artemis foi morta a tiros e boa parte da sociedade gaúcha, principalmente aquela que costuma frequentar minha trincheira, ficou escandalizada, defendendo o animal. Sou um cachorreiro de carteirinha — sempre tive cães, até em apartamentos; dou banhos pessoalmente nos meus porque gosto de interagir com eles; cuido das vacinas; acompanho os adestradores em todas as “aulas”; me preocupo; enfim, trato-os muito bem. E gostaria de dar alguns pitacos a respeito.

Artemis foi morta a tiros por um vigilante de uma empresa de segurança que estava no Campus da UFRGS, local cheio de cães que são mantidos pelos universitários. Aconteceu num feriado e o vigilante disse que ela o teria atacado. Olha, duvido muito. Em primeiro lugar porque o bicho estava acostumado à convivência com pessoas e, em segundo lugar, porque haveria uma enorme chance de ela atacar alguém desarmado em vez dele. Ele foi lá encher o saco dela, claro, e talvez ela nem o tenha atacado, mas tenha vindo brincar. Creio que posso afirmar com grande chance de acerto que ela foi atraída por um cara armado que morre de medo da raça, o que acho perfeitamente compreensível e louco.

Uma vez, por motivo extra cinófilo, estava na casa de uma pessoa que têm cães pitbull. Ela se orgulha deles e até fiz carinho nos filhotes de uma ninhada de 4 meses. Tinha vendido alguns e sobraram dois machos e uma fêmea. Passada meia hora, ouviu-se repentinamente um choro altíssimo e rosnares alucinados dos filhotes. Estavam brigando no pátio. Quando olhei pela janela, vi os dois machos matando a irmã. Um puxava de um lado e outro do outro, enquanto se formava uma poça de sangue. A explicação não foi uma explicação: “Ah, da vez passada também fizeram isso, são pitbulls mesmo!!!”, exclamou para meu pasmo, entre assustada e encantada.

Olha, entendo perfeitamente aqueles que desejam a extinção da raça. Na Inglaterra e na França a criação de pitbulls e assemelhados foi proibida por lei. Esterilizaram todos e em quinze anos não havia mais nenhum. E os ingleses e franceses amam os cães.

Um site de amor aos pitbulls diz: Esses cães possuem facilidade para aprenderem a serem ferozes e agressivos, porém, se o dono não ensinar tal coisa e criá-lo com muito amor, carinho, dedicação e respeito, o pitbull jamais irá agir de outra forma que não seja a que aprendeu. Ele será um cão carinhoso e super companheiro, basta você ser assim com ele também. Depois o site sugere que os pitbulls estranham os estranhos… OK.

Na boa, fico com os meus pastores alemães e vira-latas. Além do mais, noto que alguns donos de cães pibtull que vejo na rua se parecem com seus mascotes, dando a letra de que têm também certo desvio de comportamento instalado… Eu fora!

O centenário de Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto

Publicado em 25/02/2012 no Sul21

Não é à toa que Contos Gauchescos faz parte da lista de leituras obrigatórias para o vestibular da UFRGS nos últimos anos. Ele ali está na justa companhia de José Saramago (História do Cerco de Lisboa), Guimarães Rosa (Manuelzão e Miguilim) e de outros. E de outros menores, deveria dizer. Claro, a lista da UFRGS não é garantia de qualidade — por exemplo, lá não estão Erico nem Dyonélio –, mas serve como comprovação de que o pequeno volume de 19 contos narrados por Blau Nunes está bem vivo.

Contos Gauchescos (1912) é o segundo livro de João Simões Lopes Neto (1865-1916), que também escreveu Cancioneiro Guasca (1910), Lendas do Sul (1913) e Casos do Romualdo (1914). O autor viveu 51 anos e publicou apenas quatro livros. Talvez sejam muitos, se considerarmos a colorida vida do autor.

Casa onde residiu Simões Lopes Neto em Pelotas. Hoje abriga o Instituto João Simões Lopes Neto (Rua Dom Pedro II, 810)

Simões Lopes Neto nasceu em Pelotas, na estância da Graça, filho de uma tradicional família da região, proprietária de muitas terras. Aos treze anos, foi para o Rio de Janeiro a fim de estudar no famoso Colégio Abílio. Retornando ao Rio Grande do Sul, fixou-se para sempre em Pelotas, então uma cidade rica para os padrões gaúchos. Cerca de cinquenta charqueadas formavam a base de sua economia. Porém, engana-se quem pensa que Simões andava de bombacha. Seus hábitos eram urbanos e as histórias contadas nos Contos Gauchescos eram baseadas em reminiscências, histórias de infância e, bem, a verdade ficcional as indica como de autoria de Blau Nunes, não? A epígrafe da obra deixa isto muito claro: À memória de pai. Saudade. Mas voltemos ao autor.

Sua vida em Pelotas não foi nada monótona. Abriu primeiro uma fábrica de vidro e uma destilaria. Não deram certo. Depois criou a Diabo, uma fábrica de cigarros cujo nome gerou protestos da igreja local. Seu empreendedorismo levou-o ainda a montar uma empresa para torrar e moer café e a desenvolver uma fórmula à base de tabaco para combater sarna e carrapatos. Fundou também uma mineradora. Nada deu muito certo para o sonhador e inventivo João, que foi também professor e tabelião, mas ao fim e ao cabo apenas sobreviveria como jornalista em Pelotas, conseguindo com dificuldades publicar seus livros e folhetins, assim como montar suas peças teatrais e operetas. Este faz-tudo faleceu em total pobreza.

A primeira edição de Contos Gauchescos foi publicada em 1912. Se o ano é este, a data exata da publicação parece ter sido perdida. Na primeira página do volume é feita a apresentação do vaqueano Blau Nunes, que o autor afirma ter sido seu guia numa longa viagem pelo interior do Rio Grande do Sul.

PATRÍCIO, apresento-te Blau, o vaqueano. Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezague. Já senti a ardentia das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana, molhei as mãos no soberbo Uruguai, tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do Caverá; já colhi malmequeres nas planícies do Saicã, oscilei entre as águas grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em São Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas temperou, e, arrastado no turbilhão das máquinas possantes, corri pelas paragens magníficas de Tupanciretã, o nome doce, que no lábio ingênuo dos caboclos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus…

(…)

Genuíno tipo – crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.

(…)

Querido digno velho!
Saudoso Blau!

Patrício, escuta-o.

Capa da edição pocket da L&PM

Após esta apresentação — de pouco mais de duas páginas na edição pocket da L&PM — , está pronto o cenário para os 19 contos (ou “causos”) que o narrador Blau Nunes contará a seu patrício. Blau é o protagonista de algumas histórias, em outras é um assistente interessado que banha os fatos de intensa subjetividade. E aqui chegamos ao que o livro apresenta de mais original: o trabalho de linguagem de Simões Lopes Neto. Os contos são “falados”, são “causos” contados por Blau e a linguagem acaba por ser uma representação da fala popular misturada a uma inflexão erudita — certamente a de Simões — , transformando-se numa terceira forma de expressão. Numa belíssima terceira forma de expressão. Sabemos que o leitor do Sul21 já está pensando em Guimarães Rosa e tem toda a razão. Rosa confessou que seu texto tinha muito da influência de Simões. O gaúcho abriu as portas para as grandes criações do autor de Grande Sertão: Veredas e esta afirmativa não é a do ufanismo vazio que procura gaúchos em navios adernados, mas uma manifestação de consistente orgulho.

E, assim como nos livros de Rosa, a linguagem de Simões Lopes Neto talvez soe estranha à princípio, apesar de que o estranhamento é muito menor do que aquele com que se depara o leitor do mineiro. Se lá Rosa cria palavras utilizando seu enciclopédico conhecimento etimológico, se lá utiliza-se até de línguas eslavas; aqui Simões transforma o sotaque da região onde nasceu. Há os adágios populares, há os muitos gauchismos do campo e da cidade e há as expressões típicas da fronteira, recheadas de espanholismos. A memória de Blau Nunes é a memória geral do pampa narrando os acontecimentos principais de sua história que, em mosaico, formam uma visão subjetiva da região e de sua gente. Era 1912, não havia regionalismo, estávamos a 10 anos da Semana de Arte Moderna e 4 anos após o falecimento e Machado de Assis. Estamos, pois, falando da literatura de um pioneiro.

Ilustração de uma edição de Contos Gauchescos

Mas Simões Lopes Neto não trabalha apenas a linguagem, é um escritor que sabe criar constante subtexto. Ou seja, há as palavras, mas há um grande contador de histórias trabalhando-as, jogando informações subjacentes que reforçam ou contradizem o que está sendo contado. Isto pode ser sentido no pequeno conto O negro Bonifácio e no tristíssimo No Manantial — segundo e terceiro contos da coleção. A propósito, no CD Ramilonga, Vitor Ramil fez uma homenagem a No Manantial. A frase que é dita no início da canção é a primeira do conto e a que a encerra — Vancê está vendo bem, agora? — está próxima ao final do conto. É uma justa homenagem. Talvez No Manantial seja o melhor conto escrito por autor gaúcho até o surgimento de Sergio Faraco. Apenas em 1937, com a publicação de Sem rumo e Porteira fechada (1944), de Cyro Martins, e de O Continente (Erico Verissimo, 1949), a literatura do RS produziria outras grandes figuras ficcionais gaúchas. Dizia Tolstói: Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia. E Blau Nunes, na condição de narrador e protagonista dos Contos Gauchescos, é um gaúcho de qualquer latitude.

Marcelo Spalding, em excelente artigo análogo a este, finaliza citando a definição de Italo Calvino para o que seria um clássico. De seu artigo, roubamos duas frases de Calvino que, a nosso ver, cabem tão adequadamente a Contos Gauchescos que não há razão para não citá-las. Segundo Calvino, um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe. Mais: clássicos seriam livros que, quando mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos  se revelam novos, inesperados, inéditos. E, avançando no perigoso terreno do tradicionalismo gaúcho, arriscamos dizer que a ligação com o, em sua maioria, tosco movimento, acaba por prejudicar o autor de Contos Gauchescos. O fato de haver inclusive uma Medalha Simões Lopes Neto faz com que muitos leitores do RS o associem ao MTG e deixem de entrar em contato um autor muito sofisticado. Pois o homem que desejava livrar-nos da sarna e dos carrapatos produziu grande literatura.

As gravações históricas, uma maldição

Quando a gente ouve Pablo Casals tocando Bach, não está ouvindo Bach, o que se ouve é Pablo Casals (1876-1973) — um grande e importante homem — tocando Bach. Pablo (ou Pau, em catalão) foi enorme na luta contra a ditadura de Francisco Franco e o domínio nazista. Mais: foi ele quem trouxe de volta ao repertório as Suítes para Violoncelo de Bach mas, cá entre nós, suas gravações são péssimas. Às vezes ele desafina e o fraseado é tão duro que, bem, chega-se à óbvia e sabida conclusão de que ninguém, antes de Glenn Gould e principalmente das orquestras e executantes em instrumentos originais, sabia tocar Bach.

Sim, sei que é muita arrogância dizer que minha época sabe interpretar Bach; sim, sei que cada época deve ter o direito de dar sua interpretação para seja para ele, como para Shakespeare, Freud e outros gigantes do passado, mas também sei que nos aproximamos muito, não só dos instrumentos e da sonoridade da época, como de seu fraseado.

Hoje pela manhã, vinha de carro para o trabalho, ouvindo, como sempre, minha querida e cinquentenária Rádio da Universidade. Foi quando começou a Suíte Nº 6 com o famigerado catalão. Era um som de serrote tão horrendo que apenas esperei a manifestação de desagrado de minha mulher, uma amante da música barroca. Não deve ter demorado 3 minutos.

Essa coisa de ouvir Bruno Walter, Wilhelm Furtwängler, Karl Richter, Arthur Rubinstein e outros que vão sendo superados à medida que o tempo passa, é a própria definição de “anacrônico”. Pois homenageamos não a época do compositor, mas sim o precursor, o pioneiro, um intermediário. Quem sabe a gente deixa isso para quem se dedica à história das gravações e interpretações, hein? Nosso ouvidos merecem o melhor. Sempre.


Volta pra tumba, grande Casals!

Uma polêmica suscitada pela Zero Hora

No sábado retrasado (07/03), o jornalista Gustavo Brigatti, meu amigo, deu novamente mostras de que não é nada tolo. Com sua cara de Gary Oldman bonzinho, escreveu o artigo de capa do Segundo Caderno — chamado Ópera? Só no cinema — sabendo que expunha dois corpos a leões barulhentos, irônicos e domiciliados fora do Rio Grande do Sul. (Conclusão minha, não falei com Gustavo). Não é responsabilidade dele se Fernando Mattos, compositor, violonista e professor do Departamento de Música da UFRGS, decidiu ter seu momento de tolice bem na frente do jornalista. E muito menos se Mônica Leal disse mais uma de suas bobagens, até porque é incapaz de outra coisa.

O fato é que pensei em mandar o artigo para dois outros amigos meus: o pianista Carlos Morejano e o tenor Flávio Leite. Eles saberiam destroçar os pobres argumentos de Mattos e, bem, não precisariam preocupar-se com Mônica Leal pois ela parece programada para apenas emitir destroços. É fato óbvio que o Rio Grande do Sul dá uma contribuição fundamental para a cena operística. Ele exporta — ou melhor seria dizer deporta, desterra, elimina, proscreve ou, quem sabe, expatria? — os muitos talentos que produz.

A declaração de Fernando Mattos …

— Aqui no Rio Grande do Sul não há gente especializada, principalmente solistas. E isso diminui muito o repertório, obrigando a usar um ou dois profissionais locais e trazer o resto de fora até do país.

… comprova sua dedicação exclusivíssima à UFRGS e à vida acadêmica, pois de cada 20 escolhidos para o Guaíra, dez são a metade (vide artigo abaixo).

E a declaração de Mônica Leal…

— Ocorre que o patrocinador, ao investir em determinado projeto, avalia o mercado e as suas demandas. Se há público em Porto Alegre interessado, certamente haverá patrocínio. Mas não cabe ao Estado promover estes eventos. Cabe, isso sim, incentivá-los.

… é mais um atestado de que o Rio Grande irá contrariar as expectativas de todos. Sim, nosso estado se tornará um deserto, mas primeiro virá o deserto cultural, só depois vindo o outro, o da Aracruz.

Contudo, eu não mandei e-mail nem para o Flávio nem para o Morejano. Fico feliz por saber que não precisava, pois Flávio conseguiu espaço no Caderno de Cultura de ZH do último sábado a fim de reduzir a pó os argumentos do re-putado professor e da putativa filha do coronel. Respondam a isso. Quero ver.

Por uma ópera não só no cinema

O tenor Flávio Leite critica a falta de uma temporada lírica regular no Estado, lembra que temos bons profissionais especializados e cobra uma reflexão mais séria sobre o tema.

A inserção de Porto Alegre no circuito internacional de transmissões nos cinemas das produções de óperas gravadas no Metropolitan de Nova York é um fato histórico na vida cultural da nossa cidade. Com um passado lírico glorioso, onde ouviu-se La Bohème de Puccini antes aqui do que em Viena ou no próprio Metropolitan, nossa capital vive em uma espécie de vácuo lírico há muitos anos por vários motivos – salvo heróicas iniciativas mesmo lutando contra as adversidades citadas na reportagem de sábado passado no Segundo Caderno (“Ópera? Só no Cinema”, de Gustavo Brigatti), não permitiram que o gênero que está lotando as salas de cinema em nossa cidade morresse.

Dentre essas adversidades citou-se a falta de apoio público no fomento e promoção da arte lírica. Lembremos que os casos nacionais de maior profissionalismo, sucesso e relevância internacional do gênero como o Festival Amazonas de Ópera, que atrai turistas do mundo todo a Manaus com uma temporada invejável e a temporada do Teatro Municipal de São Paulo, acompanhada pelas principais revistas especializadas da Europa, para citar somente dois exemplos, são iniciativas da Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas e da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, respectivamente, contrariando a afirmação da filha do Coronel Pedro Américo Leal, atual Secretária da Cultura, que não cabe ao Estado promover estes eventos. Triste a má sorte dos gaúchos amantes de música, pois foi em um governo do mesmo partido de nossa governadora que São Paulo ganhou a revitalização e transformação da Osesp em uma das principais orquestras da atualidade.

Outro depoimento que me causou estranheza no mesmo artigo foi o do respeitado acadêmico Fernando Mattos, quando afirma que um dos motivos da impossibilidade de uma temporada lírica no Estado seria a falta de profissionais especializados, principalmente solistas, forçando a importação de tais profissionais encarecendo e impossibilitando o processo. Tal afirmação surpreendeu-me duplamente, pois na vida profissional ocorre exatamente o inverso. Somos muitos gaúchos em carreira pelo resto do país e exterior justamente porque aqui não temos um mercado profissional de atuação.

O número de cantores líricos gaúchos altamente especializados em carreira profissional no resto do país e no Exterior é mais do que significativo. Além de presença nas temporadas do Rio, São Paulo, Manaus, Belo Horizonte e Belém, citemos por exemplo a última montagem de L’Elisir D’Amore, de Donizetti, em Florianópolis, onde quatro dos principais solistas, escolhidos por concurso público, eram gaúchos. O soprano Cláudia Azevedo, que se alternava no papel de protagonista com a também gaúcha Carla Domingues, é detentora de feitos importantes, como seu título de especialista em ópera pelo Conservatorio Superior del Liceu em Barcelona, sua premiação no Concurso Internacional de Canto Bidu Sayão, sua atuação no mais importante festival de verão da Europa, Rossini Opera Festival de Pesaro na Itália e seu debut agendado ainda para este ano no mítico Teatro Colón de Buenos Aires.

Outra prova da qualidade dos artistas líricos gaúchos está ocorrendo no Teatro Guaíra, em Curitiba, onde está acontecendo o segundo módulo de um Ópera Estúdio, um curso de aprimoramento de alto nível para jovens cantores profissionais, inédito no país, com professores vindos da Itália, oriundos de teatros como alla Scala e La Fenice, onde das 20 vagas oferecidas para todo o país 10 dos participantes aceitos, também via concurso público, são gaúchos. Isso para citarmos alguns nomes da nova geração, sem mencionar profissionais gabaritados e com ampla experiência internacional da geração anterior, como o soprano Laura de Souza, os tenores Martin Mühle e Juremir Vieira e o baixo Luiz Molz, alguns não ouvidos aqui desde os tempos de estudante.

O outro motivo que cabe salientar é o fato de que em nenhuma casa de ópera importante do mundo se faz uma temporada somente com artistas locais, pois nem em Viena, Paris ou Londres existem especialistas locais para todos os papéis do repertório. Podemos não ter uma Lucia de Lammermoor de primeiro calibre em Porto Alegre, mas mesmo no Met, com os seus US$ 300 milhões de orçamento e sua centenária tradição, a estrela Anna Netrebko deixou a desejar em sua conhecida ária da loucura quando deixou de cantar um de seus esperados mi bemóis superagudos na performance conferida pelos porto-alegrenses no último domingo no cinema.

Cobrar a perfeição existente somente no Walhalla acadêmico e tachar as parcas tentativas de sobrevivência do gênero em Porto Alegre, de beirar o ridículo, não preenchem a lacuna deixada pela falta de regularidade de produções operísticas em nosso Estado. É necessária uma reflexão séria por parte de artistas, produtores, autoridades, patrocinadores, acadêmicos e público para que os gaúchos que superlotaram as salas de cinema e controlaram seu impulso de aplaudir uma ópera gravada, possam honrar o seu passado e voltar a se emocionar com o fenômeno da voz ao vivo.

FLÁVIO LEITE
Tenor gaúcho

Fogo Morto, de José Lins do Rego

Atualmente, Fogo Morto deve ser um fenômeno de vendas no Rio Grande do Sul. O romance foi indicado como leitura obrigatória para os alunos que prestarão exame vestibular na Universidade Federal em janeiro de 2009. Ignoro o número de estudantes que se preparam decentemente para o concurso, mas quem o fizer, passará por Zé Lins. Não tinha lido o romance e meu filho, que fará o vestibular, leu e gostou, convencendo-me a retormar o romance regionalista da década de 30, movimento ao qual Fogo Morto está relacionado, mesmo que tenha sido escrito em 1943.

A linguagem é simples, a história é boa e José Lins do Rego é um tremendo narrador. Ou seja, o livro gruda. É dividido em três grandes partes, cada uma dedicada a um personagem da trama: a primeira ao seleiro Mestre José Amaro, a segunda ao Coronel Lula de Holanda, proprietário do Engenho Santa Fé e a terceira ao Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, uma espécie de quixote que, sem ofício definido, é candidato na próxima eleição.

Os três personagens possuem em comum um acentuadíssimo orgulho de si — tão patológico que me fez lembrar Pâmela (ou Suélen, nunca lembro seu nome) — e o fato de escravizarem as mulheres em torno. Mestre Amaro é fechado e ranzinza, permanece solitário em seu mundo e não ouve ninguém, nem sua mulher e muito menos a filha, a qual tortura com suas críticas e que acaba louca. Arrepende-se tardiamente. O Coronel Lula tem orgulho de uma grandeza que apenas ele vê em si. Pouco a pouco leva o Engenho Santa Fé, que herda do sogro, à falência, ao mesmo tempo que pousa de grande e impede a filha de casar, por não encontrar nas redondezas homem digno de sua perfeição. A esposa, uma empregada de luxo, chama-se Amélia (atenção: o samba de Mário Lago e Ataulfo Alves é de 1941). Já o Capitão Vitorino guarda muitos pontos de contato com Dom Quixote e Sancho Pança, a começar pela coragem sem limites e pelo cavalo logo mudado para mula. Anda de um lado para outro fazendo campanha política, orgulhoso de não levar desaforo para casa e desafia todos com suas idéias, desde representantes do governo até cangaceiros. Também tem sua Amélia, digo Adriana, que ameaça uma revolta mas não cumpre.

As protagonistas reais da tragédia são a moral torta e a decadência dos senhores de engenho, além da confusa situação política dos primeiros anos da república num período pré-eleitoral. Apesar da simpatia de José Lins pelos cangaceiros, ele os faz muito parecidos com os representantes do governo e não é por acaso que o quixotesco Vitorino apanha de ambos. Na parte final, um tenente do governo passa a desobedecer o Judiciário e a levar sua atuação para o caso puramente pessoal… É o Brasil-sil-sil velho de guerra!

A UFRGS tem razão em destacá-lo em seu vestibular, pois o livro é excelente e apenas cai na segunda metade da segunda parte, quando já sabemos que o Coronel Lula é um perfeito imbecil e Zé Lins estende-se em sua descrição além do necessário. Nada grave. Logo depois, na terceira parte, o romance retorna com a força anterior.

O mundo mudou: em minha época de estudante, Erico Verissimo era considerado tão importante que os professores não davam muita bola para José Lins do Rego. Era Jorge Amado e olhe lá! Hoje, não há Ericos na lista, que é bastante esquisita, incluindo livros e contos maravilhosos como Antes do Baile Verde, O Primo Basílio, Pai contra Mãe, e Estrela da Vida Inteira, mas também um medonho Assis Brasil — a propósito, meio livro de Erico ou algumas linhas de um conto de Sérgio Faraco são maiores do que toda a obra de Assis Brasil –, um desnecessário Cyro Martins (por que dar a alunos recém saídos do segundo grau uma visão tão pobre da literatura gaúcha?) e Iracema (ai, que saco!)… A seguir, a lista:

Luís de Camões – Os Lusíadas – Cantos I ao V
Castro Alves – Espumas Flutuantes
José de Alencar – Iracema
Machado de Assis – Quincas Borba
José Lins do Rego – Fogo Morto
Lygia Fagundes Telles – Antes do Baile Verde
Milton Hatoum – Dois Irmãos
Luiz Antônio de Assis Brasil – Concerto Campestre
Machado de Assis – O Caso da Vara, Pai contra Mãe e Capítulo dos Chapéus
Cyro Martins – Porteira Fechada
Eça de Queirós – O Primo Basílio
Manuel Bandeira – Estrela da Vida Inteira