Eu estava recém separado quando resolvi pegar as crianças e tirar uns dias num hotel fazenda. Escolhi a pousada da Don Giovanni. Nunca tinha ido lá e deixei meu filho Bernardo ser nosso navegador. Perdemo-nos várias vezes, dávamos risadas, mas chegamos. Lugar lindo, acomodações perfeitas. Era uma quarta-feira gelada de inverno, quase zero grau. Ficaríamos até o domingo seguinte. No primeiro passeio, descobrimos algo que me pareceu do outro mundo. O escultor João Bez Batti tinha seu atelier numa casa dentro da fazenda. Já conhecia alguns de seus trabalhos. Havia algumas peças em exposição e fomos examinar cada uma delas quando o escultor chegou-se a nós timidamente, ouvindo e sorrindo do que dizíamos, principalmente do que diziam Bárbara e Bernardo. Ele puxou conversa com as crianças enquanto crescia em mim aquela conhecida dúvida de pai: estaríamos ou não incomodando?
Mais um pouco e fomos embora. Depois do almoço, fui babar no travesseiro, mas depois soube que os dois tinham voltado ao atelier e, mais, que passaram horas com o João. No dia seguinte, ele veio me comunicar que tinha comprado pão, leite, nescau, bolachas, sucos naturais, iogurtes para eles e comida para a Bárbara dar para seus gatos. Queria que os guris se sentissem “mais em casa”. No hotel, houve certo pasmo. Bez Batti não costumava disponibilizar seu tempo tão generosamente, ainda mais para crianças. Enchi-os de recomendações e eles foram para o atelier. Às vezes eu conferia a bagunça e era sempre a mesma coisa. João estava seduzido pela Bárbara, que brincava com os gatos e comia (sempre perguntando para o João rir: “Eu sou magra de ruim, né?”), enquanto o Bernardo contava histórias — sempre foi insuperável neste quesito — e fazia perguntas sobre as pedras. Eles também levavam centenas de girinos do lago ao lado para o escultor observar… Voltavam para o hotel molhadíssimos e eu colocava as roupas cheias de barro no secador de toalhas do quarto. Guardei uma muda de roupa limpa e o resto era para encher de terra. A mãe deles que depois lavasse. Só ia chamá-los para o almoço ou algum passeio; a maior parte do tempo eles ficavam com o João. Ficamos amigos, claro.
Nos últimos dias, eu também permanecia no atelier. Passamos a falar sobre pedagogia e literatura. Tínhamos concepções “muito iguais” sobre como criar e acompanhar os filhos. Ríamos a respeito de ambos sermos pais-problema. Ríamos ainda mais porque ambos tínhamos, como ex-mulheres, ex-militantes de esquerda que se tornaram competitivas amantes do dinheiro. Na literatura, João descrevia uma vivência inteiramente diferente da minha. Tinha referências sempre muito interessantes sobre o ambiente dos livros. A cidade, os espaços, os quartos dos personagens, o campo. Ele foi capaz de descrever os ambientes das cenas principais de vários romances, coisa absolutamente distinta de minhas impressões, muito mais factuais e psicológicas. Era um outro gênero de sensibilidade e eu pensava que tudo o que ele me dizia era tão original e estranho que tinha certeza de sua absoluta inutilidade para mim. Mas nunca esqueci o quarto de Raskolnikov de que ele falava, os navios — cada um deles — de Somerset Maugham, as cenas em praças abertas, na rua ou em ambiente fechado. Tudo muito diferente do que lia. Em sua opinião, o bom escritor evita as longas descrições, pois são sempre decepcionantes e limitadoras. Bastava duas ou três coisas e o resto o leitor criava através da experiência. Tem que deixar para a gente, dizia.
Domingo, logo após o almoço, fomos procurá-lo para nos despedir. As crianças já estavam emocionadas e saudosas por antecipação, procurando o João para exporem sua confusão, provavelmente na forma de lágrimas. Eu sabia que a cena seria dramática. Só que não o encontramos. Porém, no momento em que pus o carro em movimento, o grande João Bez Batti veio correndo aos gritos atrás de nós, com uma pequena escultura em cada mão. Parei e saímos. Ele entregou os objetos, um para a Bárbara, outro para o Bernardo. O dono da pousada e os funcionários ficaram novamente pasmos. Nunca antes ocorrera algo assim. Notei que João represava alguma coisa em seus olhos e despediu-se rapidamente. Então voltou, deu-me um abraço e, com dificuldade, falou em meu ouvido direito: “Milton, não me estraga esses guris. Não quero me despedir deles porque tenho que manter minha fama de durão, tá?”.
João, acho que atentei contra tua fama hoje.
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Penso que as obras abaixo, com exceção de Operária, estavam no atelier durante nossas visitas:
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Hoje, João Bez Batti reside e trabalha na Casa Gilmar Cantelli (três links diferentes), a qual restaurou em 2002.
Ele segue realizando trabalhos em basalto. Em sua nova casa, também estão expostos os trabalhos em pintura e cerâmica de Diego Bez Batti, filho que ele certamente não “estragou”.