Pisando a linha do vulgar, sem jamais ultrapassá-la.
Foi no início dos anos 90. Repentinamente, eu passei a sentir fortes dores. Não conseguia sentar direito, era obrigado a sentar de lado, levantar da cama exigia um esforço de rolamento especial, qualquer caminhada de uma quadra era difícil e ir aos pés era algo indizivelmente desagradável e penoso. O alívio só vinha mesmo se eu ficasse deitado de bruços.
Meu pai logo fez o diagnóstico: era uma crise hemorroidária. Vocês sabiam que por culpa de suas hemorróidas Napoleão ficou impedido de montar em seu cavalo e que, para aliviar as dores, ele teria ficado por horas e horas em posição fetal, ou genupeitoral, perdendo com isso tempo precioso para aplicar sua estratégia militar em Waterloo? Vocês sabiam que essa posição acabou conhecida como “a posição em que Napoleão perdeu a guerra”? Vocês sabiam que tal posição apenas agrava o problema? Pois é. Resolvi marcar uma hora no proctologista. Perguntei a uma amiga médica o nome de um. Ela me disse:
— Vai no Ignácio Mallmann. É muito bom.
Confesso que queria evitar, mas a dor era violenta e persistente.
— Sabe qual é o apelido do Ignácio?
— Não — respondi.
— É tala larga… Ele tem mãos grandes!
Arrã. Engraçadinha. Fui perguntar para minha irmã, que também é médica e ela confirmou que Ignácio era excelente médico.
— Diziam que ele era apaixonado pela M., mas não deu certo.
Eu não estava nada preocupado com a vida sexual do Dr. Ignácio… Ou deveria?
— Ele é muito hábil. O apelido dele é Paganini.
Sempre foi assim, sempre estive cercado de piadistas que não me levam a sério nem quando caminho todo torto, de lado, tentando não movimentar as pernas.
— Ah, é?
— Sim, ele é bom com dedos, além de acromegálico.
— Que interessante!
— Ele tem as mãos, os pés, o nariz e todas as extremidades gigantescas!
Ri de minha adorável irmã e marquei hora com o já lendário Ignácio. Devo ter chegado lá com ar de súplica. Contei para ele a desgraça enquanto media seus dedos. Não eram nada excepcionais e só naquele momento dei-me conta de que deveria ter ido numa doutora tamanho mignon, de delicadas e diminutas mãos. Se fosse um pouquinho inteligente, nunca escolheria um homem. Ele era simpático e eu nem por sonho falaria na sua paixão adolescente por minha amiga M. Imagina se ele pensasse nela durante o exame? Seria empalado.
Depois daquela conversinha que para mim assemelhava-se àqueles acertos que alguns fazem com as putas na janela de seus carros. Entrei no car…, digo, fui para uma salinha auxiliar onde havia uma espécie de poleiro de formato ameaçador. Logo imaginei a posição que ficaria, já a tinha visto no Kama Sutra. Olhei em volta procurando correntes, roupas de látex, chicotes ou algemas, mas era mesmo só o poleiro.
Deveria ter pedido um mordedor, mas nem pensei nisso. Tirei a roupa e fui para o poleiro ouvindo vozes do filme A Vida de Brian.
— Crucifixion?
— Yes, please.
— Good!
Ignácio começou a rir. Eu recém tinha me empoleirado, de pernas abertas, mostrando com toda a clareza o problema para ele. Mas ele estava rindo de pena.
— Nossa, deve estar doendo muito. É aparente e está muito inchada. Dá para ver daqui.
Não sei a quantos metros ele estava de mim, mas achei que, já que era visível a olho nu, podíamos encerrar sem utilizar a luneta. Mas vocês conhecem os médicos. Como eu não estava ali pelo SUS, ele faria o serviço completo. Senti algo. Olha, a coisa doía tanto que não vou negar que a luva úmida e gelada do médico foi até agradável. O local parecia queimar. Ele disse que não era grave. Limpeza local e uns quinze meses de antiinflamatório resolveriam. Não, nada a ver com comida. Era constitucional, ou seja, a culpa era minha. Em três dias eu estaria bem.
Seu discurso era tranquilizador e eu ia pouco a pouco relaxando, entrando no clima. No clima de Waterloo. Olha, conversamos muito. Eu na posição napoleônica, ele na do Duque de Wellington. Mal sabia eu que aquelas eram as preliminares, pois, sem maior aviso, enquanto eu sustentava uma opinião qualquer, ele subitamente pontificou com tudo, ao mesmo tempo que dizia animadamente
— vamos aproveitar para dar uma olhada na tua próstata!
Não lembro se doeu muito ou não, só sei que pensei
— que merda, esse cara está me enrabando!
E acho que pus as mãos no rosto em gesto de absoluto pasmo. Minha honra, meu reto antes inexpugnável! Ele ainda falava, agora dizendo maravilhas de minha próstata, tão pequenininha em comparação a seu dedo. Eu devia ser muito bonito por dentro pois seu entusiasmo era realmente contagiante, se houvesse por ali alguém a fim de contágio. O exame finalizou como finalizamos qualquer ato sexual, com a retirada do dito cujo.
Após a curra, podia vestir-me, mas havia um problema. Eu ficara sem graça, meu rosto deixara de se mexer e a fala tornara-se monocórdica. Passei a responder a tudo sem sorrir, pensando porque diabos M. não curara aquele tarado em seus dias de juventude. Saí de lá direto para meu trabalho na Hewlett Packard. Sentei na minha mesa. Nem sentia mais dor. Ou não me importava mais. Foda-se… quero dizer… Ah, sei lá. Olhei para o lado e disse para meu amigo Dario:
— Porra, Dario, fui enrabado!
Quase vinte anos depois, no ano de 2007, durante a festa de aniversário do Dario, estávamos numa situação em que faríamos qualquer bafômetro acender a luz vermelha a cinquenta metros. E ainda havia aquele narguilé… Bom, o fato é que tínhamos nadado num mar de espumante da melhor qualidade. Repentinamente, o Dario olhou para mim e deu uma trovejante gargalhada. Não sei por quê, adivinhei na hora o motivo. E ele começou a contar para TODOS minha reação ao Dr. Ignácio Mallmann e, pior, confessou que rira alto quando fizera seu primeiro exame de toque retal. Por quê?
Ora, porque lembrara de minha cara ao chegar na HP.
Podemos, todos nós, fazer suposições sobre o que o médico dele pensa de uma pessoa que dá risadas durante o ato, digo, exame, mas não explicito as minhas em respeito a um grande amigo.
Dedicado ao Dario. Abaixo, uma foto muito bonita de seu casamento.
Obs.: Ignácio Mallmann é excelente médico e espero que, se ele vier um dia aqui, perdoe-me a brincadeira. Afinal, o primeiro a gente nunca esquece.