O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati

O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati

Este é um clássico absoluto do século XX. O milanês Dino Buzzati viu a vida como uma força silenciosa que nos arrastava para um destino trágico. Escrito em 1940, O Deserto dos Tártaros conta a história de Giovanni Drogo, que, melancólico e esperançoso, deixa sua cidade em uma manhã de setembro para chegar à fortaleza Bastiani, onde passará por quatro meses, ou por toda a vida. O forte fica na fronteira do mundo habitado de seu país, de frente para um deserto de onde sempre podem surgir inimigos. É uma antiga construção onde um misterioso torpor ataca alguns, estagnando tudo, das paredes à paisagem, do ar às pessoas.

Todos esperam pela grande batalha e pela glória militar que dará sentido a suas vidas, mas aguardando e aguardando, Drogo acabará sofrendo desta imobilidade. Esta assombração se arrasta entre os personagens. Deste modo, todos observam o deserto, mas o movimento verdadeiro só vai acontecer quando… A história tem enorme força alegórica, representa todos os homens, o significado de suas ações e sua existência.

O Deserto dos Tártaros é ambientado em um país imaginário. Como dissemos, Drogo, a partir do momento em que é tornado oficial e é designado Fortaleza Bastiani, tem certeza de uma bela carreira, no entanto, por incontáveis ​​anos nenhuma ameaça aparece e a fortaleza vai sendo esvaziada de sua importância estratégica, permanecendo apenas como uma construção empoleirada numa montanha solitária, da qual muitos até ignoram a existência.

Quando chega, Drogo tem má impressão do local. Ele confidencia o fato a seu superior, o major Matti. Este o aconselha a esperar quatro meses até o exame médico periódico, após o qual ele pode ser transferido por motivos de saúde. Sim, inventariam alguma coisa para transferi-lo. Então Drogo sabe que sairá logo de lá, só que nesse período parece sofrer o fascínio dos imensos espaços desérticos que se abrem para o norte. A vida na fortaleza Bastiani ocorre de acordo com as regras estritas que regem a disciplina militar e exerce uma espécie de feitiço sobre alguns soldados. As forças armadas apoiam-se na esperança de ver o inimigo aparecer no horizonte, só que… Enfrentando os tártaros, lutando contra eles, tornando-se heróis, seria a única maneira de devolver a eles sua importância, para finalmente haver algum sentido nos anos vividos ali.

OK, Drogo não atinge o alvo de sua existência, mas derrota seu maior inimigo: o medo de morrer. Ao final, Drogo sorri reconciliado com sua história, na qual ele finalmente encontra um significado que supera sua individualidade.

Um grande livro. Dino Buzzati (1906-1972) foi, além de escritor, jornalista do Corriere della Sera. Lá permaneceu por 44 anos. Talvez o jornal fosse seu Bastiani particular.

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A Avoada e o Distraído, de Vanessa Silla e Cláudio Levitan

A Avoada e o Distraído, de Vanessa Silla e Cláudio Levitan

Este é um livro decididamente desprogramado. Escrito a quatro mãos, cada autor escrevia um capítulo e passava ao outro, que não podia mexer no que não era seu, apenas deveria dar seguimento à história. É claro que, em algo escrito desta forma, há viradas súbitas, momentos em que notamos pequenas sacanagens feitas um para o outro, mas também vemos as deixas. Ah, os autores também não deveriam conversar um com o outro a respeito do texto. E assim foi feito durante os 80 capítulos do livro.

Vanessa Silla parece gostar de tecnologia, então vamos lá. Como se fosse um caso de inteligência artificial, um autor vai aprendendo com o outro o que cada um deseja contar e as narrativas vão se aproximando até chegarem a um belíssimo final. Realmente, aqui temos um final bonito e raro. Que não será contado por mim, é claro.

Porém, durante a narrativa, acontecem coisas verdadeiramente inacreditáveis, malucas mesmo. Tudo começa na Casapueblo. O que é o local? Ora, a Casapueblo é uma espécie de casa-escultura que fica em numa bela encosta de Punta Ballena, a 15 minutos de carro de Punta Del Este, no alto de um morro. Obra do pintor e escultor uruguaio Carlos Páez Villaró, foi construída em pedra e é imensa e meio doida. Lá há um Club Hotel e é possível visitar o ateliê do artista, assim como salas que expõem e vendem obras de arte, etc. No final de tarde acontece a Cerimônia do Sol, quando são recitados poemas de Villaró. Sua arquitetura parece privilegiar o acaso ou o imprevisível, certamente.

Que coincidência, não?

Bem, como disse antes, tudo começa na Casapueblo. Depois, a coisa decola em vários sentidos. Vai para Roma, Tel-Aviv, Cisjordânia e acaba — sem spoilers de nossa parte — novamente na Casapueblo. A atividade profissional de Bartolomeu é altamente duvidosa. Já a de Sirena é quase o mesmo. E os autores dão vazão a várias e divertidas livres-associações. O estilo avoado de Silla me pareceu uma verdadeira tempestade emocional (um abraço, Bion!), já o do distraído Levitan é mais formal. Silla arrisca-se mais em seu fluxo de ideias, Levitan puxa mais o freio. Silla é a futurista, Levitan, o passadista. Mas eles se entendem e o resultado é que li o livro (Class, 169 páginas, R$ 40) em um dia, sinal de que grudou e agradou.

Eles estarão na Bamboletras na quinta-feira (01/08), às 19h,  para um bate-papo sobre a experiência de escrever a quatro mãos, o livro, etc.

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Transiberiana, de Zizo Asnis

Transiberiana, de Zizo Asnis

Transiberiana é um bom livro, mas deve ser encarado como a visão parcial de um brasileiro sobre o que ele pensava haver de ainda soviético na Rússia de 2015. Sou casado com uma bielorrussa muito inteligente, ligada e nada ufanista de seu país. Ou seja, sou casado com uma soviética. Pois bem, ela conseguiu discordar — para melhor ou pior — de quase tudo o que ele escreveu sobre o país. E ela saiu de lá fugindo da pobreza para se estabelecer com seu violino primeiramente na Amazonas Filarmônica, em Manaus, em 1999. Sabe bem o que é soviético e o que não é.

Porém, para mim, foi interessante ler o livro de um viajante brasileiro sobre aquelas paragens exóticas. Deu para aprender bastante sobre as sensações e atrações da viagem pela terceira mais longa ferrovia do mundo — as duas maiores também se utilizam de parte da Transiberiana. E também sobre as relações humanas naquela região do mundo. Sim, invejei o viajante e comi o livro rapidamente, com o maior interesse.

Mas preferia que ele tivesse ficado mais nas diferenças, na paisagem, nos acontecimentos da viagem e nos exotismos do que na parte política. As observações de Asnis sobre a política das regiões visitadas são bem simplistas e, nestes tempos de trevas bolsonaristas, tecer comparações — muitas vezes igualando nazismo e comunismo — é pecado capital.

Pois se é claro que Stálin era um psicopata que tornou a URSS uma ditadura sanguinária, há diferenças muito importantes entre nazismo e stalinismo.

Parêntese: lembro da patética Ana Maria Braga entrevistando Petkovic… Ele disse que não era tão ruim viver na Iugoslávia de Tito. Ana foi pra cima, perguntando se não era horrível não ter liberdade nem direito de voto e ouviu o sérvio dizer com calma que todo mundo tinha um emprego e ninguém passava fome. Fim do parêntese. Ou não. Além disso, a Revolução Russa trouxe importantes conquistas sociais. Para evitar novas revoltas de trabalhadores, criaram-se em todo o mundo as garantias de direitos mínimos à população como educação, alimentação e moradia. Não foi bondade do capitalismo… Lembram de como era antes, no século XIX?

Esse negócio de demonizar gratuitamente a esquerda pode ser moda no Brasil, mas nenhum historiador leva isso à sério. Deste modo, o singelo papo sobre a “falta de liberdade” constante no livro é muito guerra fria e isto meio que me tirou o tesão. Imagino a dificuldade de Asnis para confessar que as belas estações do metrô de Moscou foram construídas em 1935, 38, 43, 50, 52, 53… Ou seja, são estações construídas sob Stálin para a população da capital… Sim, a realidade é muito mais complexa do que qualquer simplismo tipo guerra fria. Mas esse meu papo de isentão é chato, né?

Bem, mesmo com restrições às interpretações do autor, o livro vale a pena. Gostei especialmente das descrições dos trens de seu funcionamento, dos contatos sociais estabelecidos durante a viagem e das partes da Mongólia e do Baical.

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A Trilogia de Nova York, de Paul Auster

A Trilogia de Nova York, de Paul Auster

Ao finalizar a leitura deste livro, fiquei  com um sentimento de incompletude que não chegava a ser desagradável. As histórias são mais ou menos estruturadas como as de detetive, mas não tem aquele final explicativo. Bem, como o próprio título diz e a capa mostra, A Trilogia de Nova York divide-se em três novelas, Cidade de vidro, Fantasmas e O quarto fechado. Já escrevi que o estilo é o das histórias de detetives. Há sempre algo a ser desvendado, mas talvez você é quem deva escolher o final de cada uma delas. Há mistérios, escritores metidos a detetives, escritores famosos, escritores anônimos, jogos intrincados de intrigas, desaparecimentos e mortes. Há também confusões na identidade e no caráter de cada personagem, tudo isso pelas ruas de Nova York e um pouco por Paris.

O central aqui é o estilo, a construção dos personagens e a linguagem. É a elegância e a notável construção da intriga que nos faz grudar no livro. Isso vale muito mais do que o destino dos personagens descritos nas três histórias.

Em Cidade de vidro, há insistentes telefonemas para uma certa agência de detetives Auster. O sujeito do outro lado da linha procura por Paul Auster. Só que os telefonemas chegam ao apartamento de Daniel Quinn, um escritor de livros de detetives. Quinn escreve sob o pseudônimo de William Wilson (como vai você, Edgar Allan Poe?) e seu detetive chama-se Max Work. Leu bem? Pois é, e tudo vai se misturar. Aparentemente sem ter nada melhor para fazer, Quinn acaba mentindo que é Auster e, mesmo sem ter nenhuma experiência na função, parte para uma estranha investigação. Ele vai atrás de Stillman, um scholar doido varrido que anos antes mantivera seu filho Peter em cativeiro, fechado em um apartamento como um Kaspar Hauser moderno. No meio da história, Quinn conhece o próprio Auster, que tem uma bela esposa e um filho. Quinn perdera esposa e filho em um acidente. Ou seja, tudo é espelho.

Já em Fantasmas, Blue é contratado para seguir White a pedido de Black. Claro que há um Brown, um Gray e um Green na história que é a piorzinha das três boas novelas.

Na melhor, O quarto fechado, um autor de artigos sobre literatura recebe o espólio literário completo do inédito escritor Fanshawe, um talentoso amigo de infância que inesperadamente some às vésperas do nascimento do filho. Ele casa com a mulher do escritor, assume o filho e começa a publicação das obras de Fanshawe, que acaba famoso. Mas não pensem que tudo será um mar de rosas. O final extraordinariamente belo. E aberto.

Mas vejam bem: o narrador de O quarto fechado esbarra em Paris com um tal Peter Stillman — personagem de Cidade de vidro –, Fanshawe adotou o nome de Henry Dark, outro personagem da mesma novela; o mesmo Fanshawe tem um caderno vermelho decisivo e em Cidade de vidro há também um caderno vermelho. Já em Fantasmas, todo mundo têm cadernos. Ou seja, Auster abusa dos espelhamentos desde o primeiro momento e aumenta a dose na última novela.

Paul Auster é fascinado pelo acaso e pelas ficções populares de detetives. Ele dá a impressão de construir suas histórias sem saber exatamente para onde seus personagens vão levá-lo. Usa paralelismos e simetrias absolutamente intrigantes. E o que menos importa é o desfecho, o que interessa é a forma que com que tudo parece se dissolver.

Recomendo muito.

Paul Auster. Ou Quinn. Ou seria Fanshawe?

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Romeu e Julieta na aldeia, de Gottfried Keller

Romeu e Julieta na aldeia, de Gottfried Keller

O título do livro anuncia e o livro narra uma tragédia, claro. Porém, a história não é baseada em Shakespeare, mas numa notícia de jornal. Sete anos após o suicídio de dois jovens no interior da Alemanha, Keller criou esta história que foi incluída originalmente no ciclo de contos A gente de Seldvila, publicado pela primeira vez em 1856 e tido por Nietzsche como um “tesouro da prosa alemã”. O pouco falado suíço Gottfried Keller (1819-1890) foi um mestre.

Sem spoilers, tá? No centro dos acontecimentos de Romeu e Julieta na aldeia (Editora 34, 156 páginas) estão as duas famílias camponesas Manz e Marti. Ambos os agricultores têm família e cada um tem suas terras. Cada um também têm um filho — Marti tem a menina Vrenchen e Manz, Sali, um garoto. Vrenchen e Sali passam muito tempo brincando nos campos de seus pais, enquanto estes fazem seus trabalhos de lavrar, plantar, colher e limpar seus campos. Os campos aráveis​ das duas famílias ficam próximos um do outro, separados apenas pelo campo do meio, cujo dono morreu. Apesar de um suposto neto do dono estar na cidade, obstáculos burocráticos — que inclui racismo, aparentemente — impedem que o chamado violinista negro o use.

Não há cercas entre os campos, apenas algumas pedras marcam a linha limite. Isso dá aos dois agricultores a oportunidade de invadir um pedaço do campo abandonado. Depois, quando o campo do meio é leiloado, é Manz quem fica com ele. Mas o vizinho Marti se recusa a ceder sua parte ocupada. Há uma disputa acirrada entre os agricultores. Do dia do leilão em diante, Manz e Marti são devorados por ódio, inveja e ressentimento, tornando a vida cada vez mais difícil para eles e suas famílias. As crianças também sofrem com a briga e têm que ficar por anos apartadas, cada uma no seu canto. O ódio é imenso e irracional. 

Como esse conflito absorve cada vez mais suas vidas cotidianas, os agricultores negligenciam seus campos e acabam arruinando suas famílias. Como novo meio de subsistência, Marti passa a pescar — coisa de pobre na região –, enquanto o fazendeiro Manz abre na aldeia vizinha (Seldvila), um bar de bêbados. Mas como o bar é um fracasso, Manz também se volta para a pesca a fim de poder dar de comer a sua família.

Ou seja, os camponeses perderam quase tudo, de seu trabalho à reputação, de suas terras à humanidade, são desprezados pela família e por outros camponeses, mas não perderam o ódio mútuo. Durante uma pescaria em que são acompanhados pelo filhos já jovens, os dois se encontram por acaso, ofendem-se e a coisa acaba em agressão física. Os filhos os separam, mas se observam… Não se viam há muito tempo.

E Sali procura Vrechen. E o resto deixemos de lado.

Keller é um mestre, conta sua sombria história considerando não apenas o amor dos jovens como a condição de penúria financeira. Esta, a situação social de ambos, é decisiva no desenrolar de Romeu e Julieta na aldeia.

Não avançarei mais. Keller é um escritor conciso e de grande poder de evocação. Com duas ou três pinceladas já temos um cenário completo. Faz grande literatura.

Recomendo muito.

Gottfried Keller (1819-1890)

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Ingresia, de Franciel Cruz

Ingresia, de Franciel Cruz

A verdade, essa menina traquina que não salva nem liberta, é uma só: demorei a ler o livro de Franciel em razão das exigências descabidas do menino James Joyce e de seu Bloomsday. Estudar os 600 DEMÔNHOS que habitavam o SÓ DESGRÓRIAS do Leopold fizeram o tempo se dilatar. Quanto eu não sei porque não uso relógio.

Mas derivo ao tentar imitar, sem talento, o estilo de Franciel. Vamos ao livro. O seguinte é este: Ingresia (R$ 30, só a capa já vale mais, 258 páginas) são crônicas e mais crônicas uma melhor que a outra, todas muito bem escritas, todas em rigorosa forma franceliana — uma linguagem barroca e desbocada, irreverente e ateia, altamente pessoal, cheia de surpresas e beleza. Sim, beleza, esta fugidia menina. Tanto que às vezes temos que lê-las duas vezes por pensar que perdemos algo da forma no afã (recebam meu afã no peito) de não perdemos a linha do pensamento original e bêbado do autor que escrevia bêbado, mas editava sóbrio (beijinho no ombro, Hemingway).

Os temas são a cultura e o comportamento baianos — a Bahia, essa terra lambuzada de dendê e exclusão –, a política, o futebol e a imprensa de lá com suas figuras tão repulsivas e adoráveis — mais aquelas do que estas — quanto as nossas. Também adorei as crônicas que falam de música. Há igualmente os causos da infância e os problemas de Soterópolis (Salvador), que em tudo diferem dos nossos, não fosse a onipresente indiferença do poder público à população e o respeito aos grandes empresários. Ou seja, em nada diferem na origem.

Um excelente livro que RECOMENDO.

E mais não digo porque hoje é quarta-cheira véspera de feriado.

PUTAQUEPARIU A RESENHA!

Franciel Cruz na Feira Literária de Mucugê em agosto de 2018 | Foto: Lari Carinhanha / Fligê

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Instruções para os Criados, de Jonathan Swift

Instruções para os Criados, de Jonathan Swift

O grande irlandês Jonathan Swift (1667-1745) foi um homem da universidade e da igreja que teve a inteligência de desconfiar do bom senso e preferir a sátira. É autor de dois clássicos absolutos — Viagens de Gulliver e Modesta proposta para impedir que os filhos das pessoas pobres da Irlanda sejam um fardo para os seus progenitores ou para o país e para torná-los úteis ao interesse público. Sim, o segundo título é esse mesmo, apesar de o livro ser mais conhecido como Modesta Proposta, é claro.

Neste Instruções para os Criados (Editora Âyiné, 129 páginas), Swift dedica-se a fazer o que diz o título, só que… Bem, nada do que o autor prescreve visa algum ganho para os empregadores, apenas para os empregados. Na verdade, o livro dá instruções detalhadas sobre como os criados devem fazer para obter vantagens pessoais e de como não serem descobertos.

O grande mérito do livro é o de dar uma visão muito clara do trabalho e da vida doméstica na Irlanda do século XVIII. Toda aquela sujeira em que todos viviam… Montes de urinóis e de comida acondicionada sem geladeira. Muito curioso. Dá para sentir o cheiro daquela sociedade.

Literariamente, Swift demonstra enorme domínio da paródia. É um trabalho mais despreocupado do que a Modesta Proposta. Aqui, o autor nos lembra de seu passado como seu passado (real ou imaginário) como lacaio e dá grande inventividade à função nos atos de sacanear o patrão e seus convivas ou fornecedores. Mas  vai além da simples paródia ou sátira. Tudo vem recheado observações astutas sobre a natureza humana e preciosas observações sobre a vida no início do século XVIII, como já disse. Cada cínico ou malicioso conselho a cada tipo de servo — mordomo, cozinheira, tutora, governanta, lacaio, concheiro, são 16 as funções examinadas pelo livrinho — beira o absurdo e, ao fazê-lo, desconstrói e divertidamente revela o absurdo sistema social que a Inglaterra do século XVIII. Swift não chega a agradar aqueles que gostariam de vê-lo como um verdadeiro conservador ou um pretenso revolucionário, já que Instruções para os Criados não tem nenhuma ênfase pré-revolucionária sobre a injustiça do sistema aristocrático…

Swift não está preocupado com a reforma da sociedade, ele está ocupadíssimo zombando e denunciando as dificuldades da natureza humana. E nisso é muito melhor do que qualquer panfleto revolucionário.

Jonathan Swift, um tremendo gozador

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Sim, eu digo sim, de Caetano W. Galindo

Sim, eu digo sim, de Caetano W. Galindo

O primeiro e fundamental acerto de Caetano Galindo é a escolha do tom de sua visita guiada ao Ulysses de Joyce. Conhecedor dos labirintos às vezes complicadíssimos do livro, ele é um visitante cuidadoso e humilde, que limpa os pés no tapete de entrada e senta-se formalmente na sala, só que sem nunca perder o bom humor. Ele pede tacitamente que nos comportemos da mesma forma, sempre dizendo que o tópico analisado pode significar isso ou aquilo, talvez aqueloutro ou ainda algo que nem imaginamos. Assim, logo ficamos sabendo que o pote servido ao lado do café pode conter sal e que o doce pode vir antes salgado.

Galindo não deseja explicar a obra máxima de Joyce de forma completa e taxativa — tarefa praticamente impossível –, mas faz algo melhor: abre um leque de possibilidades para quem leu ou lerá Ulysses. E faz isso brilhantemente. Sabe que não pode ser completo, repito, que não poderia ser exaustivo, mas explica MUITO. Bem humorado, lamenta as pessoas que vão abrir Sim, eu digo sim para se fazerem de entendidos em bares. Neste caso, “eu tenho que lhe dizer que você estará perdendo muita coisa. Muito livro”.

De acordo.

Há muito a discutir. Afinal, Joyce, com ironia típica, disse que a verdadeira chave para a imortalidade literária era manter os acadêmicos ocupados. E encheu seu livro de mistérios, alguns aparentemente inextricáveis. Galindo não engana e chega até a nos indicar onde muita gente boa desiste de lê-lo.

Após uma excelente introdução, ele nos pega pela mão e examina cada um dos 18 capítulos de Ulysses. Traça paralelos com a Odisseia de Homero e detalha muitíssima coisa. Eu garanto que saí da leitura desta obra com alguns centímetros a mais. O livro tem 375 páginas. Começa analisando o uso e abuso do discurso indireto livre, fato que me tonteou de verdade mais de uma vez, e vai adiante analisando a amizade de Bloom e Dedalus, a sexualidade de Leopold e Molly, a variação dos estilos narrativos, a presença de Boylan, os fatos ligados à forma de pensar e agir do início do século passado, os trechos favoritos de Joyce.

Galindo sabe muito e tem muito a dizer. Suas explicações e esclarecimentos fizeram um bem danado a este leitor das três traduções do Ulysses no Brasil. Sim, sua abordagem é fascinante. E assim vamos examinando o grande livro dedicado ao homem comum durante o dia 16 de junho de 1904. Os monstros e sereias de Homero vão sendo substituídos por elementos parodísticos geniais e tão habituais que os rastros do Odisseu ficam apagados. O leitor meio dedicado meio ignorante como eu vai se surpreendendo com a riqueza de detalhes insuspeitados do livro de Joyce. E passa a amar ainda mais o livro.

Para finalizar, garanto-vos que Galindo mostra e dá acesso a muita coisa, praticamente sem interpretar. Deixemos os “interpretaços” para os divãs, né?

Recomendo!

Caetano Galindo em foto pescada do Youtube

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Silas Marner: o tecelão de Raveloe, de George Eliot

Silas Marner: o tecelão de Raveloe, de George Eliot

Os sete leitores que acompanham este blog sabem de minha profunda admiração por George Eliot (1819-1880). Basta conferir, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. Eliot, na verdade, era uma mulher que usava um pseudônimo masculino para que seus trabalhos fossem levados a sério. Na época, outras autoras publicavam trabalhos sob seus verdadeiros nomes, porém Eliot queria escapar dos estereótipos que diziam que mulheres só escreviam romances leves. E realmente seus livros são muito bem escritos e planejados, mas nada leves. Outro fator que pode ter levado Eliot a usar um nome artístico tão distante talvez fosse o desejo de preservar sua vida íntima. Ela viveu por mais de 20 anos com George Henry Lewes, um homem casado com outra mulher. Ah, a sociedade vitoriana…

Tratando de evitar spoilers, conto a história do livro rapidamente. Parece boba, mas estamos longe disso. Eliot é uma sofisticada mestra da narrativa e da observação social e psicológica. Silas Marner, indevidamente acusado de roubo e exilado de uma comunidade religiosa muitos anos antes, é um tecelão amargurado e misantropo que mora em Raveloe, vivendo apenas para o trabalho e para seu pequeno e crescente tesouro de moedas de ouro. Mas quando seu dinheiro é roubado e uma criança órfã entra casualmente em sua casa, Silas tem a chance de transformar sua vida. Seu destino e o de Eppie, a garotinha que ele adota, está ligado a Godfrey Cass, filho de um burguês da vila, que, como Silas, está preso a seu passado. Silas Marner é o livro favorito de George Eliot dentre seus romances. É curto e combina humor, rico simbolismo e faz uma crítica social nada sentimental, mas afetuosa.

(Apenas peço desculpas para discordar de Mary Ann: seu monumental Middlemarch é uma obra-prima, considerado merecidamente pela crítica um dos maiores romances ingleses de todos os tempos. E assino embaixo e por todos os lados desta opinião).

Em resumo, Silas Marner é a história de um avarento solitário redimido gradualmente pela alegria da paternidade.

Meu amigo de Facebook João Antonio Guerra faz uma observação importante:

“O mais maravilhoso para mim é o retorno a Lantern Yard, justamente onde a história começou, no último capítulo numerado do romance. Esse tempo todo a gente sabia que a condenação de Silas tinha sido injusta, e naquele momento descobrimos que (sua fuga e amargura) não serviu a propósito algum, não sobrou ninguém dos que inventaram a história toda”.

Silas Marner é um clássico. Falsamente simples, curto e perfeito. A história hiper romanesca faz com que a gente devore o livro.

Recomendo.

George Eliot (1819-1880)

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Glaxo, de Hernán Ronsino

Glaxo, de Hernán Ronsino

São 4 capítulos fora da ordem cronológica, sendo que cada um deles é escrito na primeira pessoa por um dos personagens principais, formando um quebra-cabeça que só será inteiramente compreendido na frase final. Eles são Flaco Vardemann, Bicho Souza, Miguelito Barrios e o suboficial Folcada. Um escreve em 1973, outro em 84, os outros dois em 66 e 59. É um livrinho de 80 páginas magistralmente planejado. Admiradores de westerns, eles protagonizam sua versão de violência no interior da Argentina. Os amigos falam a respeito e imitam certas cenas de Duelo de Titãs (1959), de John Sturges. Como um elegante western, não há excesso narrativo ou verborreia para contar uma história de pessoas que foram traídas.  Digamos que há 3 grandes traições na história. A linguagem é totalmente sem adornos. Encalhado em algum lugar entre o romance e a novela, o texto pode ser lido facilmente em uma sentada. Mas o arranjo engenhoso da narrativa consegue satisfazer o leitor como se fosse um trabalho muito mais longo. Seu laconismo acrescenta um mistério que imita os habitantes da cidade que representa. Apesar de um personagem trair outro por causa de uma paixão, o cenário de violência nesta cidade pontuada pela fábrica Glaxo está justificado pela política da época. Este ponto é ilustrado por um dos quatro narradores, Folcada, um homem associado ao regime, que fala vagamente de “todo o negócio de Suárez”.

Recomendo muito.

Hernán Ronsino

 

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Meu Amor, de Beatriz Bracher

Não é um livro para mim. É bem escrito, tem contos curtíssimos — quase poemas em prosa — e outros mais longos. Ainda há os que são retirados da realidade, como aquele que se baseia no caso Isabella Nardoni. Há até um que é apenas um poema em inglês… Contos? Meu Amor é bem cronístico. A falta de fabulação da autora em alguns, tá bem, contos, me cansou. Me pareceu que Bracher estava fazendo uma limpeza de suas gavetas e eu que não queria participar daquilo, problema dela. Levei uma semana para ler todo o pequeno livro por absoluta falta de tesão. Ia num café e preferia ficar no celular. Ando mais Stevenson do que James, fazer o quê? O mérito do livro é o de fazer poesia com a realidade dura de nosso país e com personagens bem nossos. Em resumo, são textos coloquiais e realistas muito bonitos, mas a maioria não são contos, outros são casos reais e conhecidos e sobrou pouco para quem desejava e esperava ler… contos. Afinal, não era um premiado livro de, repito e repito, contos?

Talvez o problema seja eu, mas a verdade é que foi duro ler Meu Amor.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVI – A Guerra das Salamandras, de Karel Čapek

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVI – A Guerra das Salamandras, de Karel Čapek

A Guerra das SalamandrasEu tinha lido A Guerra das Salamandras (Record, 334 páginas, R$ 59,90) lá pelos anos 80, em uma edição portuguesa, creio que da Livros do Brasil, Coleção Argonauta. O livro me ficara na lembrança como a melhor distopia que já tinha lido. Busquei esta edição da Record, de 2011, para conferir minha impressão. Seria em equívoco? Não, de modo algum.

Não sou um grande leitor de distopias ou de ficção científica, mas creio ter lido todos os clássicos do gênero. E nenhum foi tão envolvente quanto este livro de Karel Čapek (1890-1938).

Vejamos as razões. Em primeiro lugar, a obra tem muito humor. Na verdade, o livro é uma sátira. Ciência, política, economia, jornalismo, capitalismo, fascismo, Hollywood… Tudo vai na receita do tcheco. É um humor sutil e sempre bem-vindo, mesmo que a história conte detalhadamente a derrocada final da raça humana.

Outro motivo é são as 3 divisões do livro. Primeiro, ficamos sabendo sobre o surgimento das salamandras e da enorme importância econômica que elas passam a ter no mundo. As salamandras Andreas Scheuchzeri foram descobertas pelo capitão Van Toch. Ele foi o primeiro a notar a alta inteligência dos bichos. Elas viviam nos Mares do Sul, em uma baía, lutando eternamente contra os tubarões que insistiam em comê-las. Van Toch descobre que são inteligentes — são salamandras grandes, de 1,20m, com jeito para usar ferramentas e para estabelecer comunicação com humanos. Ou seja, elas aprendem nossa língua. E Van Toch passa a lhes fornecer ferramentas simples como facões a fim de elas se defendam dos tubarões. Em troca, os inteligentes bichinhos, oferecem-lhe pérolas — elas sabem que os seres humanos gostam delas. Então, Van Toch corre para propor sociedade a um milionário tcheco, que logo vê uma oportunidade de lucro. Afinal, ferramentas por pérolas… Bom negócio! E elas — com notável capacidade de reprodução — acabam por se espalhar pelo mundo, tomando conta de todos os litorais. A humanidade progride espetacularmente, pois, é óbvio, o que fizemos com elas? Fizemos com que trabalhassem para nós e não apenas catando pérolas, ora!

O segundo capítulo traz um tratado científico sobre as salamandras Andreas Scheuchzeri. É discutido como elas falam, como acasalam e se reproduzem (há uma manual do sexo entre salamandras), seus rituais e sua tremenda disposição para o trabalho e resistência.

E nasce o Sindicado das Salamandras. É claro que as elas são cada vez mais necessárias e exploradas. Ao mesmo tempo, porém, criam consciência de si mesmas.

Ao final, vem a guerra. Com tudo o que o ser humano lhes disponibilizou, as salamandras vêm com tudo. Elas passam a ter um comandante, talvez humano. São numerosas, contam-se em bilhões e por isso querem aumentar os litorais do planeta, explodindo continentes. Os europeus, defendendo suas vidas e “cultura superior”, querem dar a China às salamandras. (Não esqueçam que, logo após a morte de Čapek, a Europa entregou a Tchecoslováquia a Hitler, em uma tentativa de apaziguar o expansionismo nazista). Mas nada as acalma.

As causas da derrocada são não apenas biológicas como também guardam um profundo e nada esquecível paralelo com fatos políticos do século XX.

Čapek não apela para o fantástico nem para o tecnológico. É tudo “biológico” e, é claro, altamente maluco e cômico. As salamandras são como seres de outro planeta que estavam escondidas num canto e que, sob condições favoráveis, vieram nos conquistar. Do princípio ao fim, o autor guarda um tom humano, preocupado e cômico.

É simplesmente demais.

Čapek morreu de pneumonia em 1938. Os nazistas foram atrás dele — ele era um inimigo e a Gestapo queria prendê-lo.  Mas encontraram apenas um cadáver.

Ou seja, os tchecos não tiveram apenas Kafka na primeira metade do século XX.

Karel Čapek: visto assim, parece normal

 

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A Ilha da Infância (Minha Luta 3), de Karl Ove Knausgård

A Ilha da Infância (Minha Luta 3), de Karl Ove Knausgård

Este é o volume 3 do imenso painel autobiográfico Minha Luta, de Karl Ove Knausgård. Me programei para ler um por semestre, mas garanto que foi complicado colocar este volume na estante sem pegar o quarto. E já tenho o quinto… Dizem que são os melhores da série. Em 2017, Knausgård recebeu o prêmio de melhor livro publicado na França por Uma Temporada no Escuro, o quarto volume.

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Aqui, a resenha do primeiro volume. E aqui, a do segundo.

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Neste A Ilha da Infância, Knausgård conta os primeiros anos de sua vida até a descoberta do sexo. Como sempre, ele parece estar contando nada, mas vamos sendo envolvidos de tal forma pelos detalhes de uma vida bem contada que acabamos grudados no livro. A memória do autor é prodigiosa em relação às impressões e sensações da infância. O segundo personagem do livro em importância é o pai de Karl Ove. O pai é um professor violento, astuto e às vezes sádico. Tem aguda intuição para descobrir os erros e as brincadeiras proibidas dos filhos — Karl Ove tem um irmão mais velho. O nervosismo no contato com o pai não ajuda muito. Ele deixa Karl Ove paralisado, em casa e fora dela. E ele tem medo de tudo, pois qualquer coisa pode irritá-lo e Karl Ove chora muito — em casa e fora dela, repito –, foge muito e, claro, aprende a enganar, apesar da esperteza paterna.

Há cenas patéticas envolvendo o pai. Numa delas, Karl Ove está tomando leite com corn flakes e nota que o leite está talhado. Mas segue comendo a coisa porque denunciar o problema com o leite poderia irritar o pai… Uma vez, ele foi comprar uma camiseta de futebol — presente de aniversário — com o pai. O menino torcia para o Liverpool, mas na loja tinha não nenhuma de seu tamanho. Então pai o fez comprar uma do Everton. Para quem não sabe, o Everton é o grande rival de Liverpool na cidade. É como ir comprar uma camiseta do Inter e sair da loja com aquele horror que os gremistas usam. Outra vez, Karl Ove pegou duas maçãs a mais durante a noite. Pela manhã, seu pai deu pela falta delas e fez com que o menino comesse todas as restantes. Um monte delas, até se sentir bem mal.

As intrusões do pai contrastam com a ingenuidade e o bucolismo de uma infância decorrida num vilarejo de uma ilha norueguesa. As casas ficam afastadas uma da outra e a bicicleta é o meio de transporte para quase tudo — escola e diversão. As coisas proibidas — revistas pornográficas, brincadeiras mais livres, beijos — acontecem na floresta ou atrás dos morros. Todos se conhecem e uma ação vergonhosa tem boa repercussão entre pais e crianças.

Lendo este livro, lembramos de muitas sensações, pensamentos e vergonhas de nossa infância. Também lembramos de algumas lógicas particularmente equivocadas. O totalmente sem noção, a falta de jeito. A descoberta das mulheres é parte fundamental do livro. O menino de oito anos já se sentia atraído por elas. E até seus doze ou treze anos, ele olha, se apaixona, sente os cheiros dos cabelos, anda de mãos dadas, dá selinhos, apalpa, beija , sonha, fricciona. Mas a história sempre retorna ao medo na presença do pai.

A ilha da infância é menos reflexivo do que os volumes anteriores. Mas traz sua formação como leitor, as tardes solitárias, as lembranças, as histórias cômicas da inexperiência, as pequenas tragédias. Um livro mais leve e divertido.

Gostei muito.

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Assombrações, de Domenico Starnone

Assombrações, de Domenico Starnone

Eu jamais pensei que este livro fosse de assustar, mas o fato é que ele me envolveu de tal forma — e o caso é tão preocupante — que não consegui largá-lo da metade até o final. Precisava saber o final da história e, bem, ela me ASSUSTOU de verdade. Mas não vou estragar a leitura de vocês contando a trama. Também peço a meu leitor que não reduza Assombrações (Todavia, 184 páginas, R$ 49,90) aos sustos que citei, pois o livro carrega enorme simbolismo e real dramaticidade. Deste modo, sigamos sem spoilers.

Daniele Mallarico é um respeitado ilustrador que já passou dos 70 anos. Vive solitário em Milão, é abastado e está convalescendo de uma cirurgia quando é chamado a cuidar por uns dias de seu neto Mario. Os pais de Mario, Saverio e Betta, filha do ilustrador, passam por um péssimo momento. Saverio é um daqueles ciumentos trágicos que imagina, pensa ou tem absoluta certeza de que a mulher está apaixonada por um poderoso professor do Departamento de Matemática onde trabalham.

Mas o livro gira muito mais sobre a relação entre neto e avô, entre o pequeno ser de quatro anos cheio de energia e o velho debilitado. À carência e à fraqueza de Daniele, Mario responde de forma mimada e descontrolada, típicas da infância super-protegida de hoje. Pior: aos quatro anos, demonstra enorme talento para o desenho, o que perturba o velho ilustrador. Enquanto cuida de Mario, Daniele deve produzir ilustrações para uma edição de luxo de The Jolly Corner, de Henry James. O editor que fez encomenda recebeu os primeiros esboços e está muito descontente, o que faz Daniele pensar que a fonte secou.

Daniele mal suporta o neto que parece saber tudo sobre a casa napolitana onde mora e que é a mesma onde passou sua infância. “Eu copiei do vovô”, é a última frase do livro. O inferno de Assombrações está nos detalhes de uma narrativa onde o velho busca um impossível acordo com suas opções e ambições.

Infância, decrepitude, inadequação, raiva, desconforto, inveja. Starnone é um mestre que faz com que grandes temas fluam através da descrição de pequenas ações cotidianas.

Recomendo muito.

Domenico Starnone

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O Capote & O Retrato, de Nikolai Gógol

O Capote & O Retrato, de Nikolai Gógol

Sem jamais perder sua gloriosa e característica verve humorística, Gógol faz de O Capote uma obra-prima de compaixão humana para com a pobreza e a falta de perspectivas de outrem. “Todos nós descendemos de O Capote“, afirmava Dostoiévski. Otto Maria Carpeaux escreveu, concordando com Dostô: “Gógol é o fundador da grande literatura russa do século XIX. Do Capote descende toda aquela literatura de compaixão algo sádica de Dostoiévski e a sensibilidade cinzenta de Tchékov que, assim como o próprio Gógol, chorava por trás do riso do humorista”.

Sem spoilers. O Capote narra a história de Akaki  Akakiévitch, funcionário público em São Petersburgo. O protagonista é um solitário e  copista de processos que vive para seu trabalho mas que é alvo das brincadeiras de seus colegas em razão de seu casacão — o tal capote — gastíssimo e puído. Ele passa frio com ele durante o inverno. É claro que não contarei o restante da ótima história.

A novela O Retrato é menos conhecida, mas não é muito inferior, não. Tchartkov é um pintor em início de carreira que se vê pressionado por dívidas e está sob a perseguição do proprietário do apartamento onde mora. Um dia, num mercado, ele adquire por baixo preço uma pintura, um retrato que o deixa muito intrigado. Há ali um olhar perturbador, impossível de não considerar. E ele vai cumprir uma rotina de Fausto. O segundo e esclarecedor capítulo é extraordinário.

Recomendo.

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Balada de Amor ao Vento, de Paulina Chiziane

Balada de Amor ao Vento, de Paulina Chiziane

Este livro foi um presente de um leitor deste blog e amigo meu do Facebook. Jonas Fernando Pohlmann é um gaúcho e colorado de Ijuí que mora em Maputo, Moçambique. Como a maioria dos que leem este blog, Jonas é uma pessoa altamente qualificada, tendo estudado na Ufrgs e na London School of Economics and Social Science.

Já Paulina Chiziane foi a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, em 1990. Suas histórias têm gerado discussões em um país que pratica a poligamia. É o caso de Balada de Amor ao Vento.

A história do amor de Sarnau e Mwando é longa e cheia de reviravoltas dentro do contexto do sul de Moçambique. Não vou contar tudo, claro, só que Mwando queria ser padre, mas também desejava Sarnau e, por isso, acabou expulso do seminário. Ela engravidou e ele a rejeitou, pois seus pais tinham-lhe arranjado outro casamento. O casamento é infeliz e ele tenta voltar para Sarnau, que já era uma das esposas do chefe local. E mais não conto.

Para a compreensão completa do livro é importante saber o que é o lobolo. Lobolo é um costume cultivado até hoje no sul de Moçambique. Segundo esta tradição, a família da noiva recebe dinheiro pela perda que representa o seu casamento e a ida para outra casa. A cerimônia consiste numa oferta de bens — gado, dinheiro, roupas e alimentos, entre outros — à família da noiva. Após a aceitação e recepção destes bens por parte da sua família, a noiva passa a pertencer à família do homem. Por esse motivo, aos olhos ocidentais e dos colonizadores portugueses, a mulher estaria a ser vendida. O dote oferecido serve de fundo para a família da moça. E também como um seguro, pois para anular a união seria necessária a devolução do dote… Imaginem o problema de uma mulher querer se separar: isto obriga sua família a devolver o dote ao seu esposo. Assim funciona o lobolo.

A história de Sarnau e Mwando faz-nos pensar. Ela gira e espreme algumas tradições, dando-nos uma visão clara do que representa a poligamia —  e até dando algumas vantagens a ela quando diz que é uma forma do pai jamais deixar os muitos filhos abandonados –, mas sempre deixando claro que é uma vida insatisfatória para a mulher — brigas, ciúmes entre as esposas, tudo pela atenção do homem — e que garante a inteira supremacia do homem.

A prosa de Paulina Chiziane é leve, fluida e colorida. Não pense que ela discute o lobolo, a pobreza e o colonialismo através de teses ou discursos. SE fosse assim, o livro perderia muito de sua força. Ela apenas demonstra as situações e é brilhante nisto.

Recomendo.

A escritora moçambicana Paulina Chiziane.

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O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr Hyde (O Médico e o Monstro), de Robert Louis Stevenson

O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr Hyde (O Médico e o Monstro), de Robert Louis Stevenson

O Médico e o Monstro (O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde) é uma novela escrita por Robert Louis Stevenson para o Natal de 1865. Este período é tradicionalmente associado a histórias horripilantes na Inglaterra. Lembram de A Christmas Carol de Dickens e de O Ladrão de Cadáveres do próprio Stevenson? Pois é, são o mesmo tipo de narrativa, mas inferiores em qualidade. A publicação de O Médico e o Monstro acabou adiada para janeiro de 1886. Era uma encomenda, devia ter aproximadamente 100 páginas para custar bem baratinho. O resultado foi espantoso: o livrinho foi um enorme sucesso, vendeu 40 mil exemplares nos primeiros seis meses na Inglaterra, foi lido por todo mundo, inclusive pela Rainha Vitória, influenciou toda a literatura de inspiração gótica de sua época, que costumava usar castelos, épocas e locais remotos como palco de estranhos acontecimentos.

Já a novela de Stevenson era diferente. Tinha sua ação situada na Londres da época, com suas ruas escuras e seu fog. Não havia precedentes de histórias que pudessem acontecer na casa vizinha. Mais: não havia precedentes de histórias relativamente plausíveis. Mr. Hyde não é sobrenatural, não é um monstro, apesar de pisar em criancinhas.

O primeiro rascunho de Jekyll e Hyde foi queimado. A esposa de Stevenson, Fanny, reclamou que a alegoria não era forte o suficiente e simplesmente jogou o manuscrito no fogo. Stevenson ficou de cama por três dias e depois escreveu uma nova versão. Envergonhado, disse que era a pior coisa que tinha escrito, mas Fanny gostou da nova versão. Ela sabia das coisas.

O impacto do romance foi enorme e tornou coloquial a expressão “Jekyll e Hyde” usada para indicar uma pessoa que age de forma moralmente diferente, dependendo da situação. A obra explora brilhantemente não somente o terror e a violência, mas o fenômeno das múltiplas personalidades — ou, no mínimo, do lado escuro, mau e escuso que carregamos.

Ou seja, a novela é uma parábola que assusta não somente por conter acontecimentos extraordinários, mas também por estar muito perto de nossa vida psicológica. Quem não tem um lado escuro que por vezes deseja o mal, quem não peca em segredo? E quem não cultiva uma imagem melhor do que a que vê de si mesmo? Note-se também que a Inglaterra vitoriana respeitava neuroticamente reputações e aparências. E Stevenson nos mostra um médico com um lado indefensável.

Quando a Escócia tinha seu próprio dinheiro, Stevenson estava no verso das notas

Sem spoilers: na narrativa, o advogado londrino Gabriel Utterson investiga estranhas ocorrências entre seu velho amigo médico Henry Jekyll e um certo Edward Hyde. Utterson estava preocupado, pois recentemente seu cliente, o respeitável médico Dr. Henry Jekyll, tornou Hyde beneficiário de seu testamento. Quem seria Hyde?

Alguns dias depois, o advogado consegue se encontrar com Hyde e fica muito impressionado. É um ser repugnante e asqueroso, lombrosiano. Sua simples visão deixa o advogado congelado e enojado. Após um jantar na casa de Jekyll, Utterson discute o assunto com o médico, mas este garante que está tudo sob controle e que não precisa absolutamente se preocupar. Meses depois, numa noite, Hyde espanca um importante membro do parlamento com uma bengala que Utterson presenteara a Jekyll.

E não vou contar o resto.

A narrativa é espetacularmente bem escrita. Seu estilo foi tão copiado, mas tão copiado que parece conter clichês. É claro que há mistério e reviravoltas na luta entre o bem e mal. O palco desta luta é interno, psicológico. Não é uma novela apenas para assustar, ela deixa-nos espreitar que toda pessoa carrega diferentes características dentro de si. Algumas delas são exibidas, outras não.

Recomendo demais.

Robert Louis Stevenson

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O Outro Lado, de Aldyr Garcia Schlee

O Outro Lado, de Aldyr Garcia Schlee

Dias antes do falecimento de Aldyr Garcia Schlee (1934-2018), em novembro do ano passado, recebemos na Bamboletras seu último livro, O Outro Lado – Noveleta Pueblera (Ardotempo, 152 páginas). A leitura do livro, realmente muito bom, só pode nos deixar ainda mais tristes pela perda. A primeira coisa que chama a atenção é a linguagem fronteiriça, algo que talvez só se mantenha naquela região. Costumava ouvir muitas daquelas palavras e expressões da boca de meus pais, parentes e amigos. E isso só até os anos 60 ou 70, porque depois parece que fomos invadidos por um dicionário urbano, feio e descolorido. A linguagem utilizada por Schlee é linda, muito influenciada por uruguaios e argentinos.

Schlee foi escritor, jornalista, tradutor, desenhista e professor universitário. Fundou a Faculdade de Jornalismo da Universidade Católica de Pelotas / UCPel e de lá foi expulso durante o golpe civil militar de 1964. Sua cidade, Jaguarão, é ligada ao Uruguai pela bonita ponte que está na capa de O Outro Lado.

O Outro Lado conta a história de Martita e José Jacinto, personagens humildes em uma paisagem deserta. José Jacinto é um andariego sem paradeiro que gosta mais de pueblos do que de cidades e que vive circulando entre as coxilhas. Martita é a mulher que o espera. É daqueles livros em que delicadas nesgas poéticas giram em torno de um fato muito forte que… não contarei. É um livro é comovente sem ser piegas — ou uma história nada simples de gente humilde. É diferente daqueles livros amalucados de Schlee – também ótimos — sobre Gardel, Jaguarão e Melo, como, por exemplo, O Dia em que o Papa foi a Melo, livro de contos que deu origem ao filme O Banheiro do Papa.

Schlee tem extremo senso de estilo e bom gosto literário. Ele amava o Brasil de Pelotas e o Inter de Porto Alegre. Nossa, foi uma pessoa perfeita, daquelas que estavam lá no topo da evolução.

Recomendo muito.

Aldyr Garcia Schlee | Foto: Gilberto Perin

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