Daniel Deronda (1876) foi publicado no Brasil pela Paz e Terra em 1997. Mesmo sendo um livro de George Eliot (1819-1880) — autora daquele que é, para a maioria, o melhor livro da literatura inglesa, o notável Middlemarch (1871-2) –, não deve ter vendido nada e caiu na Grande Vala Nacional dos Livros Mortos, a qual é lotada de joias. Deronda é o último romance de Eliot, que parou de escrever após a morte de seu marido-amante George Henry Lewes. Aos desavisados, alerto que George Eliot era uma mulher, de nome oficial Mary Ann Evans.
O livro, de 700 páginas na edição brasileira, tem mais de 1000 nas edições com tamanho de letra normal, e é lento, meditativo, com longas passagens repletas de pensamentos e argumentações. É confortável de ler. Não é Tolstói mas traz enormes problemas morais que os personagens se debatem para resolver. Eliot gostava de unir narrativas aparentemente desconexas e repete o feito neste livro: há a tragédia aristocrática de Gwendolen Harleth e a busca identitária de Daniel Deronda, um jovem que foi criado por um “tio” e que desconhece suas origens. Mais do que um ousado romance social, a obra é uma exploração filosófica sobre culpa, redenção e a força do legado cultural.
Então, no primeiro dos eixos está Gwendolen, a bela heroína antiética e egoísta, cujo casamento falido com o sádico Grandcourt leva-a a um desespero moral. Sua vida é descrita com puro realismo psicológico, mostrando o funcionamento da opressão feminina numa sociedade que a ensinou a ser ornamental, mas não humana. Já Daniel Deronda é o protagonista enigmático, criado como um aristocrata inglês, mas atraído pelo misticismo judaico após salvar a judia Mirah Lapidoth. Sua história é uma espécie de alegoria, vinculando a desconhecida identidade a uma intuição de dever coletivo. A assimetria de ambos os personagens é justamente o cerne do livro: Eliot contrasta o vazio da elite britânica com a riqueza da tradição judaica, então marginalizada.
Falar elogiosamente em judaísmo e sionismo em dias de real genocídio palestino é quase proibido, mas neste romance, escrito há 149 anos atrás, uma autora não-judia retratava pela primeira vez na literatura inglesa a cultura judaica com profundidade e respeito. O sionismo de Daniel (antes mesmo do termo existir) e o sofrimento de Mordecai, um intelectual judeu — bem chato, aliás –, refletem o debate sobre a diáspora e a terra prometida. Eliot sugere que o pertencimento, a herança e a escolha poderiam ser antídotos para a superficialidade.
Enquanto Daniel encontra o judaísmo, Gwendolen é a vítima de uma sociedade que a educou para ser frívola. Seu casamento com Grandcourt (um verdadeiro vilão que se comporta com típico hômi machista) é a perfeita representação do preço pago pela dependência feminina. Sua jornada — ou sua tentativa — de ir da arrogância para a humildade é das mais comoventes. “Eu vejo o que sou… Uma mulher que errou em tudo”.
A texto é denso, quase filosófico, mas seus diálogos afiados antecipam claramente o modernismo. Li que, na época da publicação, os judeus agradeceram, os críticos acusaram o livro de didático e o público não gostou. Mas hoje, Daniel Deronda é visto como um precursor do romance multicultural e do feminismo literário. Mesmo com suas imperfeições e com o chatíssimo Mordecai, é efetivamente um romance à frente de seu tempo.
Por que é imperfeito? A trama de Daniel e Mordecai pode parecer forçada, e o final de Gwendolen é abrupto. Mas a ousadia em discutir etnia, gênero e espiritualidade num período de nacionalismos estreitos o torna essencial. Como escreveu o crítico Harold Bloom: “Eliot não quis escrever um grande romance; quis escrever um livro que mudasse consciências”. Daniel Deronda é uma espécie de farol torto escondido no cânone vitoriano.
Sobre os judeus do romance
O amante de Eliot, o jornalista e filósofo George Henry Lewes, previra: “O elemento judaico não vai satisfazer ninguém”. O tema é bastante incomum para a época: a posição dos judeus na sociedade britânica e europeia. Deronda é um jovem aristocrata idealista que resgata uma jovem judia e, em suas tentativas de ajudá-la a encontrar sua família, acaba se envolvendo cada vez mais na comunidade judaica e na efervescência da política sionista inicial.
A aparição deles no livro foi tão indesejada para alguns dos leitores quanto para alguns dos personagens. Enquanto Lady Mallinger lamenta o fato de Daniel “enlouquecer dessa forma pelos judeus”, um amigo de Eliot, John Blackwood, observou: “Os judeus deveriam ser as pessoas mais interessantes do mundo, mas nem mesmo sua caneta mágica consegue torná-los imediatamente um elemento popular em um romance”. Muitos anos depois, um crítico alucinado pediu que as seções judaicas do romance fossem completamente eliminadas, criando um romance chamado Gwendolen Harleth, em homenagem à gentia fatalmente egocêntrica que se apaixona por Deronda.
Falemos sério, um Daniel Deronda sem judeus teria sido impossível – mas parece que as pessoas continuaram tentando. Li que na elogiada adaptação da BBC de 2002 , o foco – além de uma breve cena da judia Mirah às margens do Tâmisa – é o romance entre Daniel e Gwendolen.
Por que Eliot se interessava tanto pela vida judaica? Ela foi criada como anglicana, mas desde cedo interessou-se pela história das religiões e, aos vinte e poucos anos, se integrou a um grupo de livres-pensadores em questões políticas e religiosas. A diversidade e a mistura de raças também era um assunto de seu interesse após a publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin.
Na década de 1860, Eliot conheceu Emanuel Deutsch, um estudioso judeu e um dos primeiros sionistas. O personagem Mordecai — o estudioso e místico judeu — parece ter sido parcialmente baseado nele. Eliot escreveu a Harriet Beecher Stowe após a publicação de Deronda que “para com os hebreus, nós, ocidentais, que fomos criados no cristianismo, temos uma dívida peculiar e, quer reconheçamos ou não, uma especial profundidade de comunhão em sentimentos religiosos e morais”. Ela permaneceu interessada no judaísmo ao longo de sua vida, publicando um ensaio contra o antissemitismo três anos depois.
O que Daniel Deronda nos mostra sobre o lugar dos judeus na Grã-Bretanha no final do século XIX? Primeiro, que eles eram impopulares, sofrendo preconceito mesmo durante o governo do judeu Benjamin Disraeli. Eliot faz questão de nos mostrar o que ela considera a visão típica dos judeus — desde as classes altas (que se referem arrogantemente a Mirah como uma “pequena judia”), às classes médias (a Sra. Meyrick imediatamente presume que Mirah possa ter “pensamentos malignos”), até as classes trabalhadoras (cena do homem no bar).
Mas Eliot não está isenta de preconceitos contra um certo tipo de judeu. Ela presume que o leitor não se identificará com a família Cohen, chefiada por dono de uma loja de penhores, e até se desculpa no último capítulo por permitir que eles comparecessem a um determinado casamento. Enquanto isso, sua representação da inocente Mirah oscila para o outro lado. Ela é tão santa que tem nuances de bom selvagem. É tão infantil que, quando finalmente encontra um romance, este soa estranho. Achei muito esquisito quando ela beijou…
No entanto, Mordecai, o intelectual visionário que encanta Daniel, é um personagem complexo com lados simpáticos e antipáticos, e revela o fascínio da autora pelos detalhes do judaísmo, suas práticas religiosas e cultura. O fato de Daniel se tornar discípulo de Mordecai e concordar em continuar seu trabalho de busca de uma pátria para os judeus após sua morte — uma ideia tão desconcertante para os leitores de Eliot quanto para a maioria dos personagens do livro — também demonstra um real comprometimento da autora com o tema.
Hoje, o sionismo está manchado pelo governo do direitista Benjamin Netanyahu e seu apartheid. Já Mordecai é o judeu errante, eternamente estrangeiro em terra estrangeira, nunca em casa, “um povo que conservou e ampliou seu estoque espiritual justamente na época em que era caçado com um ódio tão feroz quanto os incêndios florestais que afugentam os animais de seus esconderijos”. A visão otimista de Mordecai de um futuro Israel como “uma nova Judeia, situada entre o Oriente e o Ocidente — uma aliança de reconciliação — um ponto de parada para inimizades, um território neutro para o Oriente” não pode deixar de ser lida como sombriamente irônica hoje.
