Ingresia, de Franciel Cruz

Ingresia, de Franciel Cruz

A verdade, essa menina traquina que não salva nem liberta, é uma só: demorei a ler o livro de Franciel em razão das exigências descabidas do menino James Joyce e de seu Bloomsday. Estudar os 600 DEMÔNHOS que habitavam o SÓ DESGRÓRIAS do Leopold fizeram o tempo se dilatar. Quanto eu não sei porque não uso relógio.

Mas derivo ao tentar imitar, sem talento, o estilo de Franciel. Vamos ao livro. O seguinte é este: Ingresia (R$ 30, só a capa já vale mais, 258 páginas) são crônicas e mais crônicas uma melhor que a outra, todas muito bem escritas, todas em rigorosa forma franceliana — uma linguagem barroca e desbocada, irreverente e ateia, altamente pessoal, cheia de surpresas e beleza. Sim, beleza, esta fugidia menina. Tanto que às vezes temos que lê-las duas vezes por pensar que perdemos algo da forma no afã (recebam meu afã no peito) de não perdemos a linha do pensamento original e bêbado do autor que escrevia bêbado, mas editava sóbrio (beijinho no ombro, Hemingway).

Os temas são a cultura e o comportamento baianos — a Bahia, essa terra lambuzada de dendê e exclusão –, a política, o futebol e a imprensa de lá com suas figuras tão repulsivas e adoráveis — mais aquelas do que estas — quanto as nossas. Também adorei as crônicas que falam de música. Há igualmente os causos da infância e os problemas de Soterópolis (Salvador), que em tudo diferem dos nossos, não fosse a onipresente indiferença do poder público à população e o respeito aos grandes empresários. Ou seja, em nada diferem na origem.

Um excelente livro que RECOMENDO.

E mais não digo porque hoje é quarta-cheira véspera de feriado.

PUTAQUEPARIU A RESENHA!

Franciel Cruz na Feira Literária de Mucugê em agosto de 2018 | Foto: Lari Carinhanha / Fligê

Motel Sheraton de Porto Alegre (Dia dos Namorados de 2006)

O Hotel Sheraton de Porto Alegre realizou uma promoção especial em 12 de junho de 2006, Dia dos Namorados. Por um preço mais ou menos módico para seus padrões, foi oferecido jantar e hospedagem de uma noite em suas luxuosas instalações. Era como se o grande hotel se transformasse em um supermotel. Estava lotado de casais e eu era a metade de um deles. Só que o Sheraton não é um motel; isto é, não é aquele local em que se vai mais ou menos escondido com o propósito de ter por algumas horas um ambiente privado, quase sempre kitsch e que nos provoca irrefreavelmente a libido. A primeira diferença já se notava na chegada: não saíamos de nossos carros em garagens escondidas e sim entrávamos numa féerica fila de casais. Um check-in de aeroporto, entende? Os que estavam ali conosco pareciam ser pessoas estáveis, rotineiras e felizes, donde concluo que esta devia ser minha cara. É claro, era aproximadamente 21h, era o notório Dia dos Namorados ou, mais exatamente, a notória noite do notório Dia dos Namorados. Seria intolerável para qualquer um que tenha seu par ficar sozinho esta noite, assim como seria estranha a presença de amantes eventuais.

Mas era um ambiente cômico. As duplas iam chegando ao balcão, todos sem malas, com as mulheres portando pequenas nécessaires. Todos olhávamos reto para o balcão, pois não apenas qualquer amigo ou conhecido seria indesejável numa hora daquelas, como havia a estranha sensação de se estar entrando em grande grupo num motel. Quem chegava finalmente ao balcão era saudado pelo atendente com um festivo “Feliz Dia dos Namorados” que soava como um ditoso have a nice fucking. Por sorte, a tortura era rápida e entrávamos rapidamente.

Depois de deixarem a pequena bagagem no quarto, os casais desciam para a soberba refeição. Todas as mesas eram pequenas e estavam belamente decoradas. Havia um violinista que ia de mesa em mesa. Aqui acabava o constrangimento inicial, pois a comida e o vinho faziam o habitual milagre de tornar-nos felizes, falastrões e, afinal, podíamos observar abertamente quem praticaria intercurso após a sobremesa. Era interessante, às vezes bonito ou enternecedor. Havia um casal de septuagenários; quando subiram para o quarto, ambos sorrindo intensamente, viu-se que a senhora amparava-se em uma bengala. Havia a falsa loira envelhecida acompanhada de seu jovem, impressionável e anabolizado consorte. Havia o japonês apaixonado que chegou ao restaurante com um copo de champanhe na mão, máquina fotográfica no pescoço, e que levou carinhosamente sua dama para a mesa que lhes fora destinada. (Depois o mesmo solicitou que um garçom lhes tirasse uma foto. Japonês é sempre japonês.) Havia as grandes personagens, como Paulo Roberto Falcão e senhora, etc. Porém, lá também estava o cronista que só fala em sexo, o Casanova, o tarado-mor da cidade: o gremista David Coimbra. Era impossível observar a mulher que o acompanhava sem pensar que — pequenina e delicada — ela seria destroçada dali a minutos.

Sinto decepcioná-los ao ignorar o longo espaço narrativo entre a sobremesa e o check-out. Lá, pudemos ver mais casais saindo abraçados. Aparentemente tudo tinha dado certo. O único casal já visto que estava no check-out era o Garanhão Gremista e a Pequenina Delicada. Ela estava viva e movimentava-se normalmente. Ele não deve ser toda esta coisa. Apenas um fato os diferenciava. Ela não carregava uma nécessaire, mas sim uma enorme — e vermelha — mala.