A nota amarela — seguida de Sobre a escrita — um ensaio à moda de Montaigne, de Gustavo Melo Czekster

A nota amarela — seguida de Sobre a escrita — um ensaio à moda de Montaigne, de Gustavo Melo Czekster

Esta será uma resenha estranha, escrita em formato gonzo. Gonzo é um estilo de texto jornalístico ou cinematográfico no qual o autor abandona qualquer pretensão de objetividade e se mistura com o que é contado.

Pois bem, o romance A Nota Amarela — primeira parte do livro de Czekster — é narrado pela violoncelista Jacqueline du Pré. Trata-se de seus pensamentos durante sua célebre interpretação do Concerto para Violoncelo de Elgar. Claro que tudo o que ela pensa foi criado e (muito) pesquisado por Czekster. Du Pré foi uma grande figura inglesa da música erudita. Linda, cheia de vida, verdadeiramente fulgurante, ela era recém casada com o pianista e regente Daniel Baremboim — até hoje uma figura referencial na área musical. Há um filme de uma interpretação de du Pré para este concerto que foi gravado em 1967 e que serviu de base para boa parte do trabalho. Eu conheço este filme há muitos anos. Acho que o vi pela primeira vez ainda adolescente em alguma TV Educativa e fiquei fascinado. Afinal, uma linda música, tocada com muita emoção por uma bela mulher, o que poderia haver de melhor? O fato é que jamais esqueci dele e tratava de rever o filme a cada reapresentação. Aqui está ele:

Uma vez, nos anos 80, levei uma moça muito bonita, graciosa e radical, pela qual estava me apaixonando, para ver a Ospa tocar este concerto. O programa finalizava com a Sinfonia Nº 9 de Schubert, a Grande. Não é que tenha dado errado, mas… O fato é que fiz enorme propaganda do concerto de Elgar e, no final, ouvi ela dizer que o inglês fora humilhado por Schubert e… Como é que eu tinha dito que detestava autores do século XX que escreviam como se estivessem no XIX se, já de cara, no primeiro concerto em que íamos juntos, eu elogiava um desses “horrores”? E me perguntou ironicamente qual era a obra de Rachmaninov que eu amava. Nenhuma, eu respondi, já perdendo o entusiasmo. Ela gostava da música moderna, divertia-se com Stockhausen, Xenakis, com a Segunda Escola de Viena, etc. Minha história com a moça não interessa, mas ela tinha razão. Costumo não gostar destes autores, contudo há exceções e uma delas é este concerto.

Elgar e sua batuta

Me deu vontade de bater nela com a enorme batuta de Elgar, mas acabamos passando uns bons seis meses juntos, não obstante meu gosto por aquela “vulgaridade”. Então, desde que soube que Czekster se dedicara a esmiuçar a famosa interpretação de du Pré, fiquei encantado e meio enciumado, porque o Concerto era meu e de Jacqueline e fim!

Mais: como se não bastasse, o livro de Czekster tinha outra característica perturbadora. Eu sou uma pessoa avessa a ler filósofos, não gosto. Também sou totalmente hostil a romances-ensaios como, por exemplo, O homem sem qualidades, de Robert Musil. (OK, estou aqui desfiando perigosamente alguns de meus vários desvios de caráter). Só que amo profundamente um filósofo e ele se chama Michel de Montaigne. A forma com que Montaigne aborda seus temas me deixa inteiramente envolvido. Além de possuir um texto maravilhoso, ele mistura histórias pessoais e observações sobre temas menores, partindo para conclusões que às vezes admite duvidosas. É um escritor glorioso. Para cúmulo, ainda tem muito humor e uma capacidade argumentativa absolutamente anormal. É agradável lê-lo. Ele conversa com o leitor como faz Machado. E Czekster escolheu-o para escrever um ensaio “à moda de”. É muita coisa em comum.

Desta forma, mesmo sem abrir o livro, mesmo observando de longe o volume, eu sabia que ele era para mim.

(Desculpe, Czekster, mas me senti como o personagem de A Vida do Outros, o capitão Gerd Wiesler (Ulrich Mühe) que termina o filme dizendo “É para mim”).

Mas demorei uns dois meses para abrir A Nota Amarela. Olha, gostei demais.

Czekster dividiu a narrativa em 31 capítulos, que é aproximadamente o número de minutos de duração do Concerto. Numerou-os em ordem descendente, sublinhando os minutos faltantes da execução do mesmo — o autor não faz isso de forma arbitrária, tem suas razões. Como disse, o livro é escrito na primeira pessoa do singular e, no ensaio, o autor deixa claro que leu todos os livros e entrevistas disponíveis de du Pré. Eu li muito menos e é claro que as coisas batem. Jamais saberemos o quanto o texto é du Pré, mas eu creio que é muito. Para nossa sorte, Czekster não fala sobre a doença que vitimou a carreira da violoncelista e a própria. A carreira de du Pré foi curta em razão da esclerose múltipla, que a forçou deixar os palcos aos vinte e oito anos de idade. Ela viveu apenas 42 anos.

Em determinado momento, Jacqueline vê, na plateia, uma mulher com um lenço amarelo, e aquilo a perturba. Ela se pergunta o motivo disso, pensando até se em seu guarda-roupa esta cor aparece ou não. Até que ela lembra que seu professor de violoncelo, o grande William Pleeth, presente ao concerto, um dia lhe dissera que os chineses acreditavam que uma nota amarela seria “a partícula de som perfeito que deu origem ao Universo”. Ela seria a nota perfeita, aquela que o músico deveria alcançar ou se aproximar ao máximo. Porém, toda vez que ela sente que a tal supernota está iminente, sobrevém-lhe enorme angústia e medo.

Escrever sobre os pensamentos de um artista conhecido durante a execução de um concerto é um enorme desafio, uma verdadeira proeza. A coisa poderia ficar realmente chata com constantes referências a ensaios, acelerações, desacelerações, dificuldades técnicas, relação com o palco, olhares do maestro, erros, etc., mas Gustavo mostra-se realmente criativo e não nos entrega — para usar uma expressão da moda — mesmice. O livro é feérico e Jacqueline está dentro de um drama que envolve angústia, dores, digressões, autocrítica, crítica e até certo descolamento daquilo que está fazendo.

E o ensaio sobre a escrita é brilhante, belíssimo. E também quase um thriller. A questão pessoal — penso que real — confessada pelo autor “a la Montaigne” é absolutamente grave e angustiante. Daquelas coisas de fazer a gente engolir o livro.

Recomendo muito.

Gustavo Melo Czekster | Foto: Maia Rubim/Sul21

105 anos de morte de Simões Lopes Neto, autor de Contos Gauchescos

105 anos de morte de Simões Lopes Neto, autor de Contos Gauchescos

É estranho e saudável o fato de nem todos concordarem em ligar Simões à Semana Farroupilha. Boa parte dos admiradores do escritor acham que a ligação favorece muito mais o MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho) do que o escritor. Porém, o fato de haver inclusive uma Medalha Simões Lopes Neto faz com que muitos leitores preconceituosos do RS o associem ao Movimento e deixem de entrar em contato um autor muito sofisticado, que produziu grande literatura.

Sua maior obra: Contos Gauchescos

Não é à toa que Contos Gauchescos fez parte da lista de leituras obrigatórias para o vestibular da UFRGS por tantos anos. Ele ficou na justa companhia de José Saramago (História do Cerco de Lisboa), Guimarães Rosa (Manuelzão e Miguilim) e de outros. E de outros menores, deveria dizer. A lista da UFRGS não é garantia de qualidade — por exemplo, lá não estão Erico nem Dyonélio –, mas serve como comprovação de que o pequeno volume de 19 contos narrados por Blau Nunes está bem vivo.

Contos Gauchescos (1912) é o segundo e de longe o mais importante livro de João Simões Lopes Neto (1865-1916), que também escreveu Cancioneiro Guasca (1910), Lendas do Sul (1913) e Casos do Romualdo (1914). O autor viveu 51 anos e publicou apenas quatro livros. Talvez sejam muitos, se considerarmos a colorida vida do autor.

Simões Lopes Neto nasceu em Pelotas, na estância da Graça, filho de uma tradicional família da região, proprietária de muitas terras. Aos treze anos, foi para o Rio de Janeiro a fim de estudar no famoso Colégio Abílio. Retornando ao Rio Grande do Sul, fixou-se para sempre em Pelotas, então uma cidade rica para os padrões gaúchos. Cerca de cinquenta charqueadas formavam a base de sua economia. Porém, engana-se quem pensa que Simões andava de bombacha. Seus hábitos eram urbanos e as histórias contadas nos Contos Gauchescos eram baseadas em reminiscências, histórias de infância e, bem, a verdade ficcional as indica como de autoria de Blau Nunes, não? A epígrafe da obra deixa isto muito claro: À memória de pai. Saudade. Mas voltemos ao autor.

Sua vida em Pelotas não foi nada monótona. Abriu primeiro uma fábrica de vidro e uma destilaria. Não deram certo. Depois criou a Diabo, uma fábrica de cigarros cujo nome gerou protestos da igreja local. Seu empreendedorismo levou-o ainda a montar uma empresa para torrar e moer café e a desenvolver uma fórmula à base de tabaco para combater sarna e carrapatos. Fundou também uma mineradora. Nada deu muito certo para o sonhador e inventivo João, que foi também professor e tabelião e que, ao fim e ao cabo, apenas sobreviveria como jornalista em Pelotas, conseguindo com dificuldades publicar seus livros e folhetins, assim como montar suas peças teatrais e operetas. Este faz-tudo faleceu em total pobreza.

Casa onde residiu Simões Lopes Neto em Pelotas. Hoje abriga o Instituto João Simões Lopes Neto (Rua Dom Pedro II, 810)

Blau Nunes

A primeira edição de Contos Gauchescos foi publicada em 1912. Se o ano é este, a data exata da publicação parece ter sido perdida. Na primeira página do volume é feita a apresentação do vaqueano Blau Nunes, que o autor afirma ter sido seu guia numa longa viagem pelo interior do Rio Grande do Sul.

PATRÍCIO, apresento-te Blau, o vaqueano. Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezague. Já senti a ardentia das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana, molhei as mãos no soberbo Uruguai, tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do Caverá; já colhi malmequeres nas planícies do Saicã, oscilei entre as águas grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em São Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas temperou, e, arrastado no turbilhão das máquinas possantes, corri pelas paragens magníficas de Tupanciretã, o nome doce, que no lábio ingênuo dos caboclos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus…

(…)

Genuíno tipo – crioulo – rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.

(…)

Querido digno velho!
Saudoso Blau!

Patrício, escuta-o.

Capa da edição pocket da L&PM

Após esta apresentação — de pouco mais de duas páginas na edição pocket da L&PM — , está pronto o cenário para os 19 contos (ou “causos”) que o narrador Blau Nunes contará a seu patrício. Blau é o protagonista de algumas histórias, em outras é um assistente interessado que banha os fatos de intensa subjetividade. E aqui chegamos ao que o livro apresenta de mais original: o trabalho de linguagem de Simões Lopes Neto. Os contos são “falados”, são “causos” contados por Blau e a linguagem acaba por ser uma representação da fala popular misturada a uma inflexão erudita — certamente a de Simões — , transformando-se numa terceira forma de expressão. Numa belíssima terceira forma de expressão. Sabemos que o leitor do Sul21 já está pensando em Guimarães Rosa e tem toda a razão. Rosa confessou que seu texto tinha muito da influência de Simões. O gaúcho abriu as portas para as grandes criações do autor de Grande Sertão: Veredas e esta afirmativa não é a do ufanismo vazio que procura gaúchos em navios adernados, mas uma manifestação de consistente orgulho.

E, assim como nos livros de Rosa, a linguagem de Simões Lopes Neto talvez soe estranha à princípio, apesar de que o estranhamento é muito menor do que aquele com que se depara o leitor do mineiro. Se lá Rosa cria palavras utilizando seu enciclopédico conhecimento etimológico, se lá utiliza-se até de línguas eslavas; aqui Simões transforma o sotaque da região onde nasceu. Há os adágios populares, há os muitos gauchismos do campo e da cidade e há as expressões típicas da fronteira, recheadas de espanholismos. A memória de Blau Nunes é a memória geral do pampa narrando os acontecimentos principais de sua história que, em mosaico, formam uma visão subjetiva da região e de sua gente. Era 1912, não havia regionalismo, estávamos a 10 anos da Semana de Arte Moderna e 4 anos após o falecimento e Machado de Assis. Estamos, pois, falando da literatura de um pioneiro.

Ilustração de uma edição de Contos Gauchescos

Mas Simões Lopes Neto não trabalha apenas a linguagem, é um escritor que sabe criar constante subtexto. Ou seja, há as palavras, mas há um grande contador de histórias trabalhando-as, jogando informações subjacentes que reforçam ou contradizem o que está sendo contado. Isto pode ser sentido no pequeno conto O negro Bonifácio e no tristíssimo No Manantial — segundo e terceiro contos da coleção. A propósito, no CD Ramilonga, Vitor Ramil fez uma homenagem a No Manantial. A frase que é dita no início da canção é a primeira do conto e a que a encerra — Vancê está vendo bem, agora? — está próxima ao final do conto. É uma justa homenagem. Talvez No Manantial seja o melhor conto escrito por autor gaúcho até o surgimento de Sergio Faraco. Apenas em 1937, com a publicação de Sem rumo e Porteira fechada (1944), de Cyro Martins, e de O Tempo e o Vento (Erico Verissimo, 1949), a literatura do RS produziria outras grandes figuras ficcionais vindas do interior gaúcho. Dizia Tolstói: Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia. E Blau Nunes, na condição de narrador e protagonista dos Contos Gauchescos, é um gaúcho de qualquer latitude.

Marcelo Spalding, em excelente artigo análogo a este, finaliza citando a definição de Italo Calvino para o que seria um clássico. De seu artigo, roubamos duas frases de Calvino que, a nosso ver, cabem tão adequadamente a Contos Gauchescos que não há razão para não citá-las. Segundo Calvino, um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente os repele para longe. Mais: clássicos seriam livros que, quando mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos se revelam novos, inesperados, inéditos.

É o caso.

Um clássico desconhecido: La Divina Increnca, de Juó Bananére

Um clássico desconhecido: La Divina Increnca, de Juó Bananére
Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, criador de Juó

A artograffia muderna é una maniera de scrivê, chi a gêntil scrive uguali come dice.
Juó Bananére

Hoje, se poucos sabem quem foi Juó Bananére, o que dizer de sua obra magna La Divina Increnca? Porém, durante as primeiras décadas do século XX, Juó foi um dos nomes mais famosos da imprensa paulistana e brasileira. Ele foi um personagem fictício, imigrante italiano criado por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892-1933), e que era assunto tanto nas feiras e ruas quanto nos salões da alta sociedade.

Formado em engenharia pela Escola Politécnica da USP, alto e elegante, Alexandre em nada correspondia à imagem de Bananére que o caricaturista Voltolino imortalizou: um sujeito de meia-idade, baixo, gordo e maltrapilho. Bananére escrevia textos que parodiavam o sotaque da grande colônia italiana de São Paulo. Como quase todo imigrante, os italianos recém-chegados eram obrigados a aceitar quaisquer trabalhos. Um deles era o de puxar carroças de frutas para vendê-las. Daí o pseudônimo: um João Bananeiro qualquer virou Juó Bananére. Ele era o autor de versos como estes:

Migna terra tê parmeras,
Che ganta inzima o sabiá.
As aves che stó aqui,
Tambê tuttos sabi gorgeá.

A abobora celestia tambê,
Chi tê lá na mia terra,
Tê moltos millió di strella
Chi non tê na Ingraterra.

O leitor certamente reconhecerá neles uma paródia ao poema Canção do exílio de Gonçalves Dias. Além de brincar com poemas famosos, Juó escrevia os também os seus próprios, além de crônicas satíricas que narravam a vida dos imigrantes e faziam piadas com figuras da época, como os presidentes Venceslau Brás, Hermes da Fonseca, o jurista Ruy Barbosa e muitos outros. Também há paródias inspiradas em romances de Machado de Assis, mantendo sempre a mistura dos idiomas italiano e português.

Por mais de 20 anos, Juó se fez presente nos meios culturais e jornalísticos paulistas. Eterno Gandidato á Gademia Baolista de Letras, ele, infelizmente, nunca obteve uma cadeira para si, apesar dos imensos e macarrônicos elogios que fazia a si mesmo.

Nomes ilustres não lhe pouparam elogios. Oswald de Andrade referiu-se a ele como “o mestre da sátira no Brasil”. O escritor Antônio de Alcântara Machado não deixou por menos: o personagem teria sido “o melhor cronista” de São Paulo.

Apesar de não ter ascendência italiana, Alexandre apaixonou-se pela cultura surgida nos bairros operários que se expandiram na capital paulista, como Brás, Barra Funda, Belenzinho, Mooca e Bexiga — bairro de Adoniran Barbosa, que adorava e deixou-se influenciar por Juó –, após a grande onda imigratória que fez com que a população da cidade passasse rapidamente de 130 mil habitantes em 1895 a 580 mil em 1920. Metade destes habitantes consistiam de imigrantes estrangeiros e outro quarto de seus filhos já nascidos no Brasil.

Como jornalista, Alexandre escrevia artigos para o jornal O Estado de S. Paulo e, em outubro de 1911, começou a assinar uma coluna na revista semanal O Pirralho, um periódico literário, político e de humor recém lançado por Oswald de Andrade. É lá que ele passa a usar o pseudônimo Juó Bananère. O novo jornal tinha uma proposta pré-modernista, movimento literário precursor do Modernismo.

Após a morte de Alexandre, o personagem Juó Bananère ficou esquecido por décadas, sendo eventualmente lembrado pela coletânea La Divina Increnca. Atualmente, reeditados, seus textos têm sido objeto de estudos de historiadores, críticos e teóricos da literatura.

Poema publicado na revista O Pirralho. Criação de Oswald de Andrade. Poema de Juó Bananére

Apesar das colunas nos jornais, a principal obra de Juó foi mesmo o livro La Divina Increnca, paródia de Divina Comédia, de Dante Alighieri, editado pela primeira vez em 1915 e reeditado em 1924, 1966 e 1993. Atualmente a editora Livronovo está procurando viabilizar uma nova edição através de financiamento coletivo.

Juo Bananére

Com efeito, críticos consagrados, como Otto Maria Carpeaux, atribuíram a ele o papel de precursor do modernismo. A inventividade linguística do personagem seria o equivalente tupiniquim às ousadias de James Joyce e ao movimento dadaísta europeu. O professor Carlos Eduardo Capela, de teoria literária da Universidade Federal de Santa Catarina e autor da obra Juó Bananére — Irrisor, Irrisório (2009, Nankin Editorial/Edusp, 538 páginas), não encara as comparações como piadas, mas acredita que tais teses sejam absurdas.

“Há coisas em comum, como o humor. Mas o modernismo é um movimento literário, articulado, tem um manifesto. Já o Bananére é um piadista, nunca quis ser nada além disso. O espaço dele é o efêmero, a coisa pequena, o cotidiano.”  Mais apropriado, acredita ele, é enxergar em Alexandre/ Bananére um rico caso de testemunho histórico e de criação de um personagem.

“Ele confronta um ambiente intelectual conservador e projeta, por via paródia, o desclassificado, os tipos marginais. Hoje se fala muito em dar voz às minorias, mas ele já fazia isso há quase cem anos.”

Sua coluna em O Pirralho chamava-se O diário do Abax’o Piques. Abaixo Piques era o nome da atual Ladeira da Memória, local tombado em 1974 na cidade de São Paulo. Mais tarde, após romper com Oswald de Andrade, Alexandre fundou o Diário do Abax’o Piques — Diario Semanale di Grande Impurtanza, em associação com o ilustrador Voltolino (1884 – 1926). Nele, Juó se intitulava poeta, barbieri i giurnaliste e, em sua logomarca, estava escrito Lasciate ogni speranza. 

Lasciate ogni speranza, voi che entrate (“Deixai qualquer esperança, vós que entrais”) é o famoso verso que se encontra na porta de entrada do Inferno, a primeira parte de La Divina Commedia, a obra-prima de Dante, da literatura italiana e da cultura da Idade Média.

O jornal caracterizava-se por apresentar temas essencialmente políticos, discutidos em tom satírico, por meio de uma linguagem humorística escrachada. O periódico apresentava duas seções fixas Taka – Shumbo Shimbum e um “sumplemento” esportivo – Sport que finalizava cada edição. Os colaboradores usavam pseudônimos para assinar suas colaborações. Ali, Juó Bananére registrava uma linguagem própria à mesclagem cultural que gerou paulistano.

Tal como aconteceu com o Barão de Itararé e seu inventor Aparício Torelly, o Juó Bananére inventado por Alexandre Marcondes Machado acabou por reinventar seu inventor como escritor. Hoje, pode-se dizer que existe Juó Bananére e não Alexandre Marcondes Machado. Juó, com seu italiano de imigrante pobre em São Paulo, aparecia como uma voz viva e afrontosa dos despossuídos do país.

A principal fonte de inspiração de Alexandre Machado estava nas ruas, e era para essas mesmas ruas que retornava a obra pronta, de enorme sucesso, tendo em vista as repercussões em textos de outros autores e relatos de pesquisadores. Está mais do que hora de recuperarmos Bananére como parte de nossa história literária.

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ju%C3%B3_Banan%C3%A8re
http://www.bookstart.com.br/pt/juo
http://bananere.art.br/increnca.html
http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/l00004.htm

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100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

Há algumas semanas, li a lista da extinta revista Bravo sobre os 100 livros essenciais da literatura mundial. A edição vendeu muito, disse o dono da banca de revistas meu vizinho. No final da revista, há uma página de Referências Bibliográficas de razoável tamanho, mas o editor esclarece que a maior influência veio dos trabalhos de Harold Bloom.

Vamos à lista? Depois farei alguns comentários a ela.

A lista é a seguinte (talvez haja erros de digitação, talvez não):

1. Ilíada, Homero
2. Odisseia, Homero
3. Hamlet, William Shakespeare
4. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
5. A Divina Comédia, Dante Alighieri
6. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
7. Ulysses, James Joyce
8. Guerra e Paz, Leon Tolstói
9. Crime e Castigo, Dostoiévski
10. Ensaios, Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, Sófocles
12. Otelo, William Shakespeare
13. Madame Bovary, Gustave Flaubert
14. Fausto, Goethe
15. O Processo, Franz Kafka
16. Doutor Fausto, Thomas Mann
17. As Flores do Mal, Charles Baldelaire
18. Som e a Fúria, William Faulkner
19. A Terra Desolada, T.S. Eliot
20. Teogonia, Hesíodo
21. As Metamorfoses, Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, Stendhal
23. O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald
24. Uma Estação No Inferno,Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, Victor Hugo
26. O Estrangeiro, Albert Camus
27. Medéia, Eurípedes
28. A Eneida, Virgilio
29. Noite de Reis, William Shakespeare
30. Adeus às Armas, Ernest Hemingway
31. Coração das Trevas, Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf
34. Moby Dick, Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, Balzac
37. Grandes Esperanças, Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
39. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, James Joyce
41. Os Lusíadas, Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, Henry James
44. Decameron, Boccaccio
45. Esperando Godot, Samuel Beckett
46. 1984, George Orwell
47. Galileu Galilei, Bertold Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, Mallarmé
50. Lolita, Vladimir Nabokov
51. Tartufo, Molière
52. As Três Irmãs, Anton Tchekov
53. O Livro das Mil e uma Noites
54. Don Juan, Tirso de Molina
55. Mensagem, Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, John Milton
57. Robinson Crusoé, Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
60. Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
61. Seis Personagens em Busca de um Autor, Luigi Pirandello
62. Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
63. A Náusea, Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, Italo Svevo
65. A Longa Jornada Adentro, Eugene O’Neill
66. A Condição Humana, André Malraux
67. Os Cantos, Ezra Pound
68. Canções da Inocência/ Canções do Exílio, William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, Teneessee Williams
70. Ficções, Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgilio, Herman Broch
73. As Folhas da Relva, Walt Whitman
74. Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
78. Jogo da Amarelinha, Julio Cortazar
79. As Vinhas da Ira, John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger
82. Huckleberry Finn, Mark Twain
83. Contos de Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, Tomaso di Lampedusa
85. Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, Laurence Sterne
86. Passagem para a Índia, E.M. Forster
87. Orgulho e Preconceito, Jane Austen
88. Trópico de Câncer, Henry Miller
89. Pais e Filhos, Ivan Turgueniev
90. O Náufrago, Thomas Bernhard
91. A Epopéia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
94. On the Road, Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse
96. Complexo de Portnoy, Philip Roth
97. Reparação, Ian McEwan
98. Desonra, J.M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, Junichiro Tanizaki
100 Pedro Páramo, Juan Rulfo

A lista é ótima, mas há critérios bastante estranhos.

Se não me engano, só três semideuses têm mais de um livro na lista: Homero, Shakespeare e Joyce. OK, está justo.

No restante, é uma lista mais de autores do que de livros e muitas vezes são escolhidos os livros mais famosos do autor e dane-se a qualidade da obra. Se a revista faz um gol ao escolher Doutor Fausto como o melhor Thomas Mann, erra ao escolher Crime e Castigo dentro da obra de Dostoiévski – Os Irmãos Karamázovi e O Idiota são melhores; ao escolher Guerra e Paz de Tolstói – por que não Ana Karênina? -; na escolha de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; que tem cinco romances muito superiores, iniciando por O Avesso da Vida (Counterlife) e ainda ao eleger Retrato de Uma Senhora na obra luminosa de Henry James. Li por aí reclamações análogas sobre as escolhas de Brás Cubas e não de Dom Casmurro, de Cem Anos de Solidão ao invés de O Amor nos Tempos do Cólera e de As Cidades Invisíveis de Calvino, mas acho que é uma questão de gosto pessoal e não de mérito. Ah, e é absurda a presença do bom O Náufrago e não dos imensos e perfeitos Extinção, Árvores Abatidas e O Sobrinho de Wittgenstein na obra de Thomas Bernhard.

Saúdo a presença de grandes livros pouco citados como Tristram Shandy, obra-prima de Sterne muito querida deste que vos escreve, de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, de A Consciência de Zeno, genial livro de Ítalo Svevo, de O Deserto dos Tártaros (Buzzati) e do incompreendido e brilhante Grandes Esperanças, de Charles Dickens, de longe seu melhor romance.

Porém é estranha a escolha de A Comédia Humana, de Balzac. Ora, a Comédia são 88 romances! Não vale! Estranho ainda mais a presença de autores menores como Kerouac e Malraux, além do romance que não é romance — ou do romance que só é romance em 100 de suas 1200 páginas: O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.

Também acho que presença de McEwan e de Coetzee prescindem do julgamento do tempo, o que não é o caso de alguns ausentes, como Lazarillo de Tormes, de Chamisso com seu Peter Schlemihl, de George Eliot com Middlemarch, de Homo Faber de Max Frisch e de O Anão, de Pär Lagerkvist, só para citar os primeiros que me vêm à mente. E, se McEwan e Coetzee esttão presentes, por que não Roberto Bolaño?

E Oblómov??? Não poderia ficar de fora!

(O Bender escreve um comentário reclamando a ausência de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. É claro que ele tem razão! Esqueci. Coisas da idade.)

Com satisfação pessoal, digo que este não-especialista não leu apenas Os Miseráveis, o livro de Blake e os de Lautréamond, Mallarmé, Ovídio e Hesíodo. Isto é, seis dos cem. Tá bom.

P.S.- Milton mentiroso! Não li Finnegans também!

Este post foi publicado em 13 de dezembro de 2007, mas quase nada mudou.

Estudo para uma abordagem a Lucia Berlin (I)

Estudo para uma abordagem a Lucia Berlin (I)

Para abordar uma contista tão rica e surpreendente como Lucia Berlin, vamos fazer antes uma rápida excursão à origem do conto e a sua definição, se é que podemos defini-lo.

Determinar o que exatamente separa um conto de formatos ficcionais mais longos é problemático. A definição clássica foi dada por Poe e é bem simples: “O conto é aquilo que pode ser lido em uma sessão de leitura ou, digamos, em uma sentada”. A interpretação disto pode ser problemática hoje em dia, porque talvez, nos nossos dias, a duração de “uma sentada” possa ser mais curta do que era na época de Poe…

Então, os contos têm tamanhos vagamente definidos. Mas há pessoas que demarcam os gêneros literários em termos de contagem de palavras, como se a diferença entre uma crônica, um conto, uma novela ou um romance pudesse ser definida pelo número de palavras. Eu acho que as definições devem partir do contexto, mas tem gente que insiste em contar palavras e que diz que um conto deve ter menos de 7.500 delas.

Histórias mais longas que não podem ser chamadas de romances são às vezes consideradas “novelas”, que são normalmente publicadas como os contos, em coleções dentro de um só volume ou em pequenos livros com só uma delas.

Mas como o conto surgiu?

Vamos a uma brevíssima história. Os precursores do conto foram as lendas, os contos populares, os de fadas, as fábulas e as anedotas. Claro que estas histórias curtas existiam principalmente na forma oral e assim iam sendo transmitidas de uma geração para outra. Um grande número destes contos é encontrado na literatura antiga, desde os épicos indianos como o Ramayana e o Mahabharata até os épicos homéricos, como a Ilíada e a Odisseia. As 1001 Noites, compiladas pela primeira vez provavelmente no século VIII, também é um repositório de contos folclóricos do Oriente Médio.

Na Europa, a tradição oral de contar histórias passou para o papel no início do século XIV, principalmente com os Contos de Canterbury, de Chaucer,  e o Decamerão, de Boccaccio. Ambos os livros são compostos de contos individuais — que variam de histórias de humor rasgado até ficções literárias mais elaboradas — inseridos em uma narrativa mais ampla, aliás como já eram As 1001 Noites.

Na década de 1690, os contos de fadas tradicionais começaram a ser publicados por Charles Perrault. Logo depois, apareceu a primeira tradução moderna para o francês de As 1001 Noites, a qual teria enorme influência nos contos europeus.

As primeiras coleções de contos, próximas do que hoje se conhece, apareceram entre 1810 e 1830 em vários países ao mesmo tempo. Foi o momento em que o conto começou a abandonar a necessidade de passar uma mensagem, uma moral. Notem, por exemplo, que o livro de contos de Cervantes, escrito em 1613, chama-se Novelas Exemplares.

Então veio a virada de Poe

Edgar Allan Poe (1809-1849)

O grande transformador do conto foi Edgar Allan Poe. Ele criou o conto psicológico, o de terror e deu um passo gigantesco na direção do que seria a literatura policial, que depois adquiriu enorme prestígio e tradição. Mas o principal é que ele iniciou a fase em que o contista narra duas histórias ao mesmo tempo. Não há mais uma moral, mas há uma segunda história subterrânea que vai sendo contada sob a superfície. Esta segunda história não é explicitada. A segunda história contada está escondida sob a primeira, que é a que você lê.

Esta tese não é minha, é do brilhante escritor argentino Ricardo Piglia: ele assegura que o segredo de um conto bem escrito é que, na realidade, todo conto conta duas histórias: uma em primeiro plano e outra que se constrói em segredo. A arte do contista estaria em saber cifrar a segunda história nos interstícios da primeira. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de forma elíptica e fragmentária. O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta nos salta aos olhos. Às vezes, o que parece  supérfluo para uma história é fundamental para a outra.

Vou dar um exemplo para que fique mais claro. Acho que todos conhecem o conto Missa do Galo, de Machado de Assis, um dos contos mais perfeitos que conheço. A história da superfície mostra o narrador, Nogueira, relembrando uma noite da sua juventude e a conversa que teve com uma mulher mais velha, D. Conceição. Ironicamente, mestre Machado inicia o conto com a seguinte frase: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”. Esta história é tão, mas tão perfeita, que o narrador nos confessa logo de cara que não entendeu a segunda história. E ele passa a nos encher de detalhes e diálogos. Vemos claramente, sob nossos olhos, o desenrolar da segunda história, contada muito aos pedaços e sutilmente, a de como vive D. Conceição, a de como seu marido a abandona em casa, a de sua falta de afeto, os motivos que ela tinha para tentar seduzir o menino.

Outra coisa é a maestria de Machado. Ele não apenas demonstra tudo isso, como fica claro o momento em que D. Conceição para de tentar, pois, certamente pouco conhecedora da arte da sedução, ela erra a mão e deixa passar o momento. E Machado nos demonstra tudo isso sem frases como “Conceição cansou e desistiu do menino”.

Depois, Joyce inverteu este modelo. Em Dublinenses, parece que a história 2 comenta a 1, às vezes a ataca ou duvida dela.

Lucia Berlin usa e abusa destes artifícios e de outros. Por exemplo, no conto que abre Manual da Faxineira, Lavanderia Angel`s, ela conta duas histórias de superfície. Ambas acontecem dentro de lavanderias self-services, dessas de moedas, uma em Nova York e outra em Albuquerque, no Novo México. As duas histórias estão separadas não somente geográfica como temporalmente. E ambas contam uma terceira história, a da própria autora, mãe de 4 filhos antes dos 30 anos, sempre lavando muita roupa, sempre devaneando muito e causando problemas, como o que ela causa ao apertar botões e reprogramar máquinas que estão lavando as roupas de outrem. Uma mulher inteligente, muito bonita, mas que parece um tanto inadequada ao mundo.

Agora, somos obrigados a falar da biografia de Lucia Berlin porque ela sempre escreveu sobre si mesma.

(continua com uma pequena biografia de Lucia Berlin)

Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Reli o super clássico Memórias póstumas de Brás Cubas, a obra que marcou uma mudança radical na produção de Machado de Assis. Na época, Machado tinha 41 anos — a história foi publicada em folhetim em 1880, tomando a forma de livro no ano seguinte — e ele era considerado um excelente escritor do romantismo. Pois então veio Brás Cubas veio para mudar e dar um salto de qualidade não somente dentro de sua obra como no panorama da literatura brasileira. Memórias Póstumas é o livro que faz a transição do romantismo para o realismo, incutindo audácia e graça, refinamento e pessimismo, sensualidade e humor (às vezes negro) em nossa literatura. Os críticos torceram o nariz e depois se curvaram ao novo estilo livre de Machado, fã confesso de Laurence Sterne.

Anos depois, ao escrever o prefácio de Helena, romance de sua fase romântica (1876), Machado comenta rapidamente sua revolução:

Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferente páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. E claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.

Brás Cubas é narrado por um defunto e dedicado ao primeiro verme que roeu as frias carnes de seu cadáver e é a celebração do nada que foi a vida do personagem principal. Brás Cubas é um rentista canalha, uma daquelas pessoas que nasceram podendo fazer exatamente nada, para apenas ficar administrando a herança recebida do pai e tentando vagamente uma carreira na política. Boa-vida, ele representa maravilhosamente nossa elite endinheirada, fútil e amante de privilégios. Sua vida é basicamente a narração de seus amores, por onde vazam suas características pessoais.

Primeiro vem Marcela, uma bela cortesã que trata de obter ganho financeiro de Brás Cubas, fato que só cessa com a intervenção de papai, que o manda estudar em Coimbra, de onde ele volta formado em Direito. De seu curso, ele mesmo diz que colheu “de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação”. O resto foram festas. Quando volta, seu pai quer vê-lo casado e deputado… E aparece Eugênia, a flor da moita, uma coxa que se enamora dele, mas que não se deixa humilhar com a certa rejeição. Depois vem Vírgília, o grande amor de sua vida. Num episódio que demonstra que Virgília não é flor que se cheire, ela se casa com Lobo Neves. Depois, Brás e ela tornam-se amantes por longos anos. Vírgília toma as páginas do livro, porém ainda há Eulália, a flor do pântano.

Por onde passa, Brás não somente conta de forma sedutora sua vida medíocre, como faz observações bastante cínicas sobre a vida e a política nacionais. Um dos personagens muitas vezes admirados por Brás é seu cunhado Cotrim, uma figura abjeta que trafica escravos e ganha muito com isso. Ao mesmo tempo, Cotrim seria “ferozmente honrado”, um “filantropo dotado de sentimentos pios”, mas com um detalhe: mandava “com frequência escravos para o calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue”.

O texto é maravilhoso. Dividido em 160 capítulos curtos e ziguezagueantes, muitos deles meros exercícios de prosa, o livro é que há de sedutor e grudento. Machado não julga, não dá lições, apenas mostra e deixa seu crápula tagarelar, argumentando à vontade seus motivos e contando os acontecimentos. É uma leitura toda de viés, com o autor não deixando clara sua opinião certamente desfavorável sobre o “herói” do romance. Ao final, quando Brás diz “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, respondemos no mesmo estilo dele: sorte nossa. Só que não adiantou muito, pois ainda estamos lotados de  de Brás Cubas — e de todo gênero de privilegiados — em nosso amado Brasil.

Claro, trata-se de um clássico que merece o lugar-comum: Memórias Póstumas de Brás Cubas é incontornável!

O grande Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVII – Dom Casmurro, de Machado de Assis

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVII – Dom Casmurro, de Machado de Assis

Sim, aos poucos estou relendo Machado. E me surpreendendo, pois li Dom Casmurro na adolescência e tinha a memória de um bom livro, mas não a clara noção da autêntica obra-prima que é. Publicado em 1899, o Casmurro é o terceiro da série de 5 grandes romances finais de Machado. Os anteriores são Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891) e os seguintes são Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). (De entremeio, também temos o desconhecido Casa Velha, de 1885). A história é contada na primeira pessoa por Bentinho. Ele é o célebre narrador não confiável, ainda mais que relata, no tom de uma longa conversa com leitor, um drama: a dupla traição que teria sofrido por parte de sua mulher, Capitu (Capitolina) e de seu melhor amigo, Escobar.

O romance começa numa situação posterior a todos os acontecimentos. Bentinho (Bento Santiago), já velho, conta ao leitor como recebeu o apelido de Dom Casmurro. A expressão fora inventada por um jovem poeta, que tentara ler para ele no trem alguns de seus versos. Como Bentinho cochilara durante a leitura, o rapaz ficou chateado e começou a chamá-lo daquela forma.

O narrador começa então a rememorar sua existência, o que ele chama de “atar as duas pontas da vida”. O leitor é apresentado à infância de Bentinho, quando ele vivia com a família num casarão da rua de Matacavalos.

Bentinho mora com a mãe amorosa, Dona Glória, o tio Cosme, a mal-humorada prima Justina e o agregado José Dias, um esplêndido modelo de chato. É uma família bem brasileira, destas que geram filhos mimados. Sua vida pode ser dividida em três fases: Bentinho, Dr. Bento Fernandes Santiago e Dom Casmurro.

Bentinho é o menino tímido e sem iniciativa que provavelmente acabará num seminário e depois padre — pois era uma promessa de D. Glória tornar seu filho padre. Mas há uma vizinha, uma vizinha de quintal, um dos maiores personagens da literatura brasileira, Capitu. Quando a ação começa, ela tem 14 anos e ele 15.

Capitu era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, mais mulher do que eu era homem.

Os dois se apaixonam, prometem que vão se casar um com o outro haja o que houver, só que a família de Bentinho quer vê-lo padre. Capitu e Bentinho vão crescendo e não são mais aquelas duas crianças que brincavam no quintal, a coisa esquenta e eles passam aos beijos e carícias… As brincadeiras e a rotina dos quintais passam da infância para o erótico, sempre puxadas por Capitu.

— Sou homem!

Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminário, mas como se pensa em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue era da mesma opinião. Outra vez senti os beiços de Capitu.

Capitu é linda. Bentinho também arranca suspiros, mas só tem olhos para ela, que, por sinal, puxa-o com os belos olhos e o engole.

Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.

Ele vai para o seminário, o que se torna uma tortura. Bentinho gosta de mulheres. Certa vez, no caminho para o seminário, vê uma muito bonita cair na rua e…

No seminário, a primeira hora foi insuportável. As batinas traziam ar de saias, e lembravam-me a queda da senhora. Já não era uma só que eu via cair; todas as que eu encontrara na rua mostravam-me agora de relance as ligas azuis. De noite, sonhei com elas. Uma multidão de abomináveis criaturas veio andar à roda de mim, tique-taque… Eram belas, umas finas, outras grossas, todas ágeis como o diabo. Acordei, busquei afugentá-las com esconjuros e outros métodos, mas tão depressa dormi como tornaram, e, com as mãos presas em volta de mim, faziam um vasto círculo de saias, ou, trepadas no ar, choviam pés e pernas sobre a minha cabeça.

Ele consegue livrar-se do seminário e casa com Capitu. E então começa uma certa estranheza que apenas aumenta.

A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me mostrou que o ar de impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também.

E depois eu deixo para você descobrir o que e como acontece.

Mais detalhes, sem spoilers decisivos. No seminário, ele tinha conhecido Escobar, de quem se tornou inseparável. Eles tinham tudo em comum, inclusive o plano de sair de lá e não como padres. Escobar casa-se com Sancha, uma amiga de Capitu. Logo têm uma filha que recebe o nome de Capitolina… Depois de alguns anos e após penosas tentativas, Capitu finalmente tem um filho, e o casal pôde retribuir a homenagem que Escobar e Sancha lhes haviam prestado: o filho é batizado com o nome de Ezequiel, como Escobar.

Só que Ezequiel vai ficando cada vez mais parecido com Escobar… E Bentinho desconfia. A temática do ciúme, abordada com brilhantismo nesse livro, provoca polêmicas em torno do caráter de uma das principais personagens femininas da literatura brasileira: Capitu.

Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à bênção do costume. Todas essas ações eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para me não descobrir  mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém.

Assim como o enorme afeto e amor entre Capitu e Bentinho, a história do adultério (?) é composta por poucas pinceladas. Tudo é meio vago. Machado foi um mestre absoluto e deixa enorme espaço para nossa imaginação. Ele não apenas conta a história sem grandes detalhes como deixa para nós discutirmos se houve a traição de Capitu. Mas Bentinho enxerga no filho a figura do amigo e fica convencido de que fora traído pela mulher.

Cada um acha uma coisa. Como mais ou menos escreve Hélio Guimarães no posfácio desta linda edição da Carambaia — pois escrevo de memória — o livro pode ser sobre um adultério (traiu!), sobre o ciúme masculino (não traiu!), ou ainda uma denúncia a respeito do violento comportamento dos homens detentores do poder e da narrativa (sem dúvida não traiu, seus misóginos!) ou ainda uma gloriosa afirmação e reivindicação do desejo (pfff, e daí se traiu?).

Carlos Drummond de Andrade dizia que ler Machado de Assis era uma tentação permanente, quase um vício a ser combatido. Perguntem a um drogado (ou ex) quão fácil é livrar-se de um vício.

Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 — Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1908)

Sobre “As Academias de Sião”, conto de Machado de Assis

Sobre “As Academias de Sião”, conto de Machado de Assis

O conto completo está aqui, dentro do site Domínio Público.

As Academias de Sião, de Machado de Assis, dá pano para muitas mangas, apesar de não ser um de seus maiores contos. O pano para as mangas é tecido ao longo de um plot mais do que original para a época: as academias de Sião tentavam resolver um peculiar problema: “Por que é que há homens femininos e mulheres masculinas? O que as induziu a discutir isso foi a índole do jovem rei. Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita feminilidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial horror às armas. Os guerreiros siameses gemiam, mas a nação vivia alegre, tudo eram danças, comédias e cantigas, à maneira que o rei não cuidava de outra coisa”.

Uma das academias venceu, a que declara que a alma é sexualizada. E ela extermina (literalmente) as outras. Kinnara, a mais bela concubina do Sião era uma mulher máscula: “Um búfalo com penas de cisne”. Kinnara convence o rei para que suas almas troquem de corpo por seis meses. Cumprido o prazo, cada uma seria restituída ao corpo original. A fábula de Machado pega emprestado temas orientais, sobretudo hindus. Basta lembrar o parentesco do conto com a “história hindu” de Thomas Mann As Cabeças Trocadas, onde há um personagem belo, mas com um corpo magérrimo, e outro feio, mas de belo corpo. Em Mann, há a troca de cabeças; em Machado, a de almas.

Após a troca, Kalaphangko, ou o corpo do rei agora com alma de Kinnara cuidou da fazenda pública, da justiça, da religião e matou uns tantos que não pagavam impostos. “Sião finalmente tinha um rei”, afirma Machado. Já a alma do rei “espreguiçava-se todo nas curvas femininas de Kinnara”. Sim, Machado de Assis diverte-se sempre conosco. E nós com ele.

O conto parece indicar que a alma masculina seria mais ativa e racional, enquanto a feminina seria passiva e emocional. Mas Machado de Assis não está aqui criando teses e sim controvérsias e boas piadas. Um pouco mais sobre Kinnara. Quando há a troca de almas, ela passa a um plano secundário e Kalaphangko planeja matá-la para não desfazer a troca, porém ela revela estar grávida e o rei sente-se incapaz de matar seu próprio filho, símbolo de sua virilidade e da continuidade da linhagem real. Ou seja, primeiro Kinnara consegue fazer a troca de corpos através de um beijo e depois logra não ser morta pela maternidade, um predicado físico feminino. Neste sentido, a simples Kinnara é mais uma mulher decisiva num mundo machadiano cheio delas. As mulheres de Machado seduzem, escolhem, querem e conseguem, expelindo sensualidade tanto em lentas e inexoráveis secreções ou como em espasmos (ou jatos…).

Tenho vontade, mas reluto em fazer uma interpretação do século XXI sobre um conto que não é mais do que um scherzo de Machado. Mas há outros aspectos intrigantes neste conto cheio de curiosidades que independem do instrumental psi de nossos dias. (1) Machado não cai em momento algum nas piadas fáceis e depreciativas de uma sociedade machista — e estamos em 1884. (2) Diferentemente de Tolstói, por exemplo — um escritor absolutamente contemporâneo de Machado — , o brasileiro não está nem um pouco preocupado em explicar o mundo ou em trazer a Verdade e a Solução a seus leitores. Ele apenas narra brilhantemente os fatos e nos deixa aqui pensando… (3) Os acadêmicos consideram uns aos outros perfeitos estúpidos, mas permanecem academia, inclusive protagonizando o festivo momento final de As Academias de Sião, cantando todos juntos o hino “Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo!”.

A bela Kinnara — àquele momento já destrocada — não entendia como os membros da academia podiam ser a claridade do mundo quando reunidos e se detestarem separadamente… Mas sabemos que é assim. É notável que o fundador da Academia Brasileira de Letras nos passe uma noção tão bufa e verdadeira do comum das academias — locais que  podem ser melhor descritos como cestas de ofídios do que como clarões para o mundo.

Analfabetismo (Algarismos, números e nomes), de Machado de Assis

Analfabetismo (Algarismos, números e nomes), de Machado de Assis

Machado de Assis – 15 de Agosto de 1876

Gosto dos algarismos, porque não são de meias medidas nem de metáforas. Eles dizem as coisas pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não havendo outro, não o escolhem. São sinceros, francos, ingênuos. As letras fizeram-se para frases: o algarismo não tem frases, nem retórica.

Assim, por exemplo, um homem, o leitor ou eu, querendo falar do nosso país dirá:

– Quando uma constituição livre pôs nas mãos de um povo o seu destino, força é que este povo caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso desfraldadas. A soberania nacional reside nas Câmaras; as Câmaras são a representação nacional. A opinião pública deste país é o magistrado último, o supremo tribunal dos homens e das coisas. Peço à nação que decida entre mim e o Sr. Fidélis Teles de Meireles Queles; ela possui nas mãos o direito a todos superior a todos os direitos.

A isto responderá o algarismo com a maior simplicidade:

– A nação não sabe ler. Há 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses uns 9% não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. Não saber ler é ignorar o Sr. Meireles Queles: é não saber o que ele vale, o que ele pensa, o que ele quer; nem se realmente pode querer ou pensar. 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber por que nem o quê. Votam como vão à festa da Penha, – por divertimento. A constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado.

Maurits Cornelis Escher (1898-1972)
Maurits Cornelis Escher (1898-1972)

Replico eu:

– Mas, Sr. Algarismo, creio que as instituições …

– As instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho uma reforma no estilo político. Não se deve dizer: “consultar a nação, representantes da nação, os poderes da nação”; mas – “consultar os 30%, representantes dos 30%, poderes dos 30%”. A opinião pública é uma metáfora sem base: há só a opinião dos 30%. Um deputado que disser na Câmara: “Sr. Presidente, falo deste modo porque os 30% nos ouvem…” dirá uma coisa extremamente sensata.

E eu não sei que se possa dizer ao algarismo, se ele falar desse modo, porque nós não temos base segura para os nossos discursos, e ele tem o recenseamento.

Referências:

– ASSIS, Machado. Analfabetismo. In: Crônicas Escolhidas. São Paulo: Editora Ática S.A, 1994.

Uma(s) lista(s) de melhores contos, na minha humilde opinião e na do El País

Uma(s) lista(s) de melhores contos, na minha humilde opinião e na do El País
Machado de Assis e Guimarães Rosa.
Machado de Assis e Guimarães Rosa.

O Brasil sempre privilegiou o conto, mas os europeus nunca deram grande importância ao gênero. O Caderno de Cultura Babelia do jornal espanhol El País publicou uma notícia que fala sucintamente da recente valorização do conto naquele país, pedindo para que autores espanhóis citem seus contos favoritos da literatura não espanhola. Curiosamente, nenhum conto foi citado duas vezes. Depois, coloco uma relação de contos favoritos deste blogueiro.

Relatos universales que no hay que perderse

Escritores, editores y libreros que han participado en este especial sobre el renacer y la nueva valoración del cuento en España comparten con los lectores títulos de sus cuentos favoritos en español y otras lenguas.

— El llano en llamas, de Juan Rulfo, y Bartleby, el escribiente, de Herman Melville (Berta Marsé).

— Carta a una señorita en París, de Julio Cortázar, y La dama del perrito, de Antón Chéjov (Cristina Cerrada).

— La Resucitada, de Emilia Pardo Bazán, y El bailarín del abogado Kraykowsky, de Witold Gombrowicz (Cristina Fernández Cubas).

— El Aleph, de Jorge Luis Borges, y Una casa con buhardilla, de Antón Chéjov (Eloy Tizón).

— El espejo y la máscara, de Jorge Luis Borges; Una luz en la ventana, de Truman Capote, y Donde su fuego nunca se apaga, de May Sinclair (Fernando Iwasaki).

— Bienvenido, Bob, de Juan Carlos Onetti; El álbum, de Medardo Fraile; En medio como los jueves, de Antonio J. Desmonts; Alguien que me lleve, de Slawomir Mrozek; Los gemelos, de Fleur Jaeggy; La colección de silencios del doctor Murke, de Heinrich Böll, y Guy de Maupassant, de Isaak Babel (Hipólito G. Navarro).

— Un tigre de Bengala, de Víctor García Antón, y La revolución, de Slawomir Mrozek (José Luis Pereira).

— No oyes ladrar los perros, de Juan Rulfo; El veraneo, de Carmen Laforet; La corista, de Antón Chéjov, y Rikki-tikki-tavi, de Rudyard Kipling (José María Merino).

— Continuidad de los parques, de Julio Cortázar, y El nadador, de John Cheever (Juan Casamayor).

— El Sur, de Jorge Luis Borges; Parientes pobres del diablo, de Cristina Fernández Cubas; Tres rosas amarillas, de Raymond Carver, y La dama del perrito, de Antón Chéjov (Juan Cerezo).

— El infierno tan temido, de Juan Carlos Onetti, y Los muertos, de James Joyce (Juan Gabriel Vásquez).

— Las lealtades (de Largo Noviembre de Madrid), de Juan Eduardo Zúñiga, y El nadador, de John Cheever (Miguel Ángel Muñoz).

— Continuidad de los parques, de Julio Cortázar, y William Wilson, de Edgar Allan Poe (Patricia Estebán Erlés).

— Ojos inquietos, de Medardo Fraile; Noche cálida y sin viento, de Julio Ramón Ribeyro, y Míster Jones, de Truman Capote (Pedro Ugarte).

Minha relação saiu um pouco grande, apesar de ter sido escrita improvisadamente. Mas se pensasse mais, talvez não mudasse demais. Vamos a ela.

Contos estrangeiros:

— A Viagem, de Luigi Pirandello;
— O Velho Cavaleiro Andante, de Isak Dinesen (Karen Blixen);
— Ponha-se no meu lugar, de Raymond Carver;
— A Fera na Selva, de Henry James;
— Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville;
— A Enfermaria Nº 6, de Anton Tchékhov;
— Queridinha (ou O Coração de Okenka), de Anton Tchékhov;
— A Corista, de Anton Tchékhov;
— A Dama do Cachorrinho, de Anton Tchékhov;
— Olhos Mortos de Sono, de Anton Tchékhov;
— Os Sonhadores, de Isak Dinesen (Karen Blixen);
— A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói;
— Uma Alma Simples, de Gustave Flaubert;
— As Jóias, de Guy de Maupassant;
— Os Mortos, de James Joyce;
— O Licenciado Vidriera, de Miguel de Cervantes;
— O Artista da Fome, de Franz Kafka;
— A Colônia Penal, de Franz Kafka;
— A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe;
— Berenice, de Edgar Allan Poe;
— William Wilson, de Edgar Allan Poe;
— O Primeiro Amor, de Ivan Turguênev;
— Três Cachimbos, de Ilya Ehrenburg;
— A Loteria da Babilônia, de Jorge Luis Borges;
— A procura de Averróis, de Jorge Luis Borges;
— O jardins dos caminhos que se bifurcam, de Jorge Luis Borges;
— Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Jorge Luis Borges.

Contos brasileiros:

— Missa do Galo, de Machado de Assis;
— Uns Braços, de Machado de Assis;
— Noite de Almirante, de Machado de Assis;
— Um Homem Célebre, de Machado de Assis;
— A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa;
— Meu tio, o Iauaretê, de Guimarães Rosa;
— A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa;
— O Duelo, de Guimarães Rosa;
— Guapear com Frangos, de Sérgio Faraco;
— O Voo da Garça-pequena, de Sergio Faraco;
— Corvos na Chuva, de Ernani Ssó;
— Contrabandista, de João Simões Lopes Neto;
— Baleia, de Graciliano Ramos (não é um conto, mas pode funcionar como tal);
— O homem que sabia javanês, de Lima Barreto;
— O Vitral, de Osman Lins;
— O Afogado, de Rubem Braga;
— Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia Fagundes Telles;
— Feliz Aniversário, de Clarice Lispector;
— Uma Galinha, de Clarice Lispector;
— O Japonês dos Olhos Redondos, de Zulmira Ribeiro Tavares.

Corvos na Chuva, de Ernani Ssó

Corvos na Chuva, de Ernani Ssó

Corvos na Chuva Ernani SsóQuando falei com Ernani, ele me disse que Corvos na chuva era uma coletânea de contos escritos nos últimos, sei lá, 25 ou 30 anos. Logo fui torcendo o nariz, achei que leria uma série contos desiguais em suas perspectivas, temas ou em qualidade, mas errei. O saldo foi muito, muito positivo. Acho que Ernani passou um bom filtro na coleção e, dos 15 contos do livro, deliciei-me verdadeiramente com uns 12, mas quando não gostei, a coisa foi realmente séria. Cheguei a reler Nana, nenê, O anjo exterminador e Safáris. Estava desconfiado de mim, queria conferir se não estava sonolento ou cansado demais para entender a intenção do autor. Porque o resto é excelente, a começar pelo conto que dá título ao livro e fecha o volume.

Corvos na chuva é uma realização extraordinária. Tem história clara e bem contada — onde todas as revelações vêm na hora certa — sob uma furiosa e sofisticada metalinguagem. Coisa rara. Olha, é arrebatador mesmo. Outros excelentes contos são Primeira comunhão, O rei da sanfona e o curtíssimo As férias do coveiro. Os dois primeiros são interessantes e diferentes abordagens ao amor adolescente. Já o terceiro é para se dobrar de rir. Deve ser da fase inicial e mais humorística de Ssó. Puro humor negro.

Os outros contos revelam um autor com pleno domínio de seus meios. Seu virtuosismo e ritmo dobra-se facilmente às necessidades de cada história. Ou seja, nenhum dos oito contos não citados são esquecíveis e um deles… Bem, vamos escrever algumas frases sobre o ousado Outra missa.

Outra missa é uma nova versão de Missa do galo, obra-prima de Machado de Assis. Ssó passa a narração em primeira pessoa para Conceição. Meus sete leitores são cultos e sabem que, no original, o narrador é o estudante Nogueira. A nova versão é respeitosa e nela as intenções da moça ficam, obviamente, mais claras para o leitor. Afinal, Conceição é o “polo ativo”, por assim dizer, da rarefeita história. Mas a sutileza de mostrar ao leitor o crescendo no qual a sedução ainda é possível (e até provável) e a demonstração de que o momento de decisão tinha passado e não seria mais possível recuperar, só estão no conto de Machado e no de Ssó. Lembro de um antigo livro em que vários autores — Autran Dourado, Lygia Fagundes Telles, Antônio Callado, Osman Lins, Nélia Piñon… mais alguém? — recriaram o conto de Machado e nenhum deles chegou perto desta pequena joia criada por Ernani Ssó.

Recomendo muito.

P.S. — Ernani me esclarece por e-mail: “As férias do coveiro é o penúltimo conto escrito. O último foi o Outra missa“.

Ernani Ssó | Foto: Ramiro Furquim/Sul21.com.br
Ernani Ssó | Foto: Ramiro Furquim/Sul21.com.br

Carolina, a mulher que “não deu filhos” a Machado de Assis

Carolina, a mulher que “não deu filhos” a Machado de Assis

CARTADEmachadoecarolinaLi hoje contrariado um texto que dizia que a esposa de Machado de Assis — a muito amada Carolina Augusta Xavier de Novais — “não tinha lhe dado filhos”. Céus, que expressão boba. Se Carolina não deu a filhos a Joaquim Maria, também Joaquim Maria não os deu a Carolina. E não creio que ninguém considere Machado incompleto porque não teve filhos. “…não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, escreveu o personagem-título de Memórias Póstumas de Brás Cubas. E se isto vale para um homem, vale para uma mulher.

Mas é fato que algumas pessoas com filhos veem com desconfiança os que não têm. Parece que traem a espécie humana. Em nosso passado agrário, ter filhos até podia ser uma questão fundamental. Afinal, famílias grandes podiam trabalhar extensões maiores de terra, produzindo maior prosperidade e alimento. Além disso, os pais contavam com os filhos para suportarem melhor a velhice.

Lembro que alguns antigos casais narravam com orgulho o fato de terem voltado da lua-de-mel com uma encomenda. E, se a coisa demorasse a acontecer, o mundo passava a ver a mulher — e exclusivamente ela — como portadoras de algum distúrbio, como a Carolina de Machado. E se o problema fosse com o cara?

Porém, em nossos dias, sabemos que a maioria de nossos filhos não cuidará de nós na velhice e nem renderá grana.

Outro fato atual é que o sexo parece estar cada vez mais afastado da reprodução. O cara não precisa ser um Bach para ser considerado viril e nem a mulher super parideira é um sucesso. Também nunca ouvi um amigo dizer publicamente que gostaria de ter filhos com uma mulher, só ouvi que “essa é pra casar”, quase sempre dito em tom de brincadeira para uma mulher linda e inteligente.

Para mim, ter filhos foi e é motivo de enorme grande alegria. Mas e daí que alguns não tenham? É uma escolha facultativa mesmo neste país atrasado, evangélico e sem aborto legal. É uma escolha que não é simples, pois significa a forma de vida que alguém quer para si. E, para os que não conseguem tê-los por algum motivo físico, há milhares de crianças necessitadas de pais que lhes deem amor.

Mas tudo isso só pela frase sobre Carolina?

Machado de Assis e a Exibicionista

Machado de Assis e a Exibicionista

Cada qual sabe amar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial é que saiba amar.
Machado de Assis, em Missa do Galo

Anteontem, me senti como o Nogueira da Missa do Galo, o que não entendeu D. Conceição.

Eu esperava a Elena chegar enquanto uma mulher roçava-se em seu amigo ou amante ou marido, olhando para mim. Sempre olhando para mim. Na hora, achei que fosse algo casual — vocês sabem, estou a anos-luz de ser um Paul Newman ou Alain Delon, além disso, estou perto dos sessenta, isto é, sou feio e sem atrativos –, mas quando voltava meus olhos para lá, ela me olhava.

Impossível dizer que seja envergonhado, mas também não sou cara-de-pau. Minha possível vergonha fica sob o Homo Faber que sou e aquilo que posso chamar de Homo Ludens, alguém sempre pronto a se divertir. Esta criança interior ri, avacalha e satiriza muito. De certa forma, ela me protege.

E comecei a ficar irônico. Eu dava um tempo, mas quando passava meus olhos pela cena, estava sendo observado. E aguardava… Era um local absolutamente público, aberto, na rua. Cada um se excita a seu modo, talvez dissesse Machado. Há parafilias para todos os gostos. O exibicionista tem a fantasia de que o observador ficará sexualmente excitado, o que só aumenta sua própria excitação. Então, eu era um reles apoio. Como não se divertir, ainda mais que estava esperando, sem fazer nada?

Elena chegou toda linda e feliz. Sempre fico surpreso com sua alegria ao me ver.

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O conto Missa do Galo é uma das obra-primas de Machado. As histórias de Machado costumam ser assim: ele conta o que ocorreu trinta anos. A Missa também é um conto retrospectivo. Maduro, o narrador Nogueira relata um acontecimento do passado. Menino do interior, quando tinha 17 anos, Nogueira morava na casa do escrivão Meneses. Estava ali, no Rio de Janeiro, para estudar. Naquele ano, já de férias, prolongou sua estada na Corte a fim de assistir à Missa do Galo. O escrivão Meneses, mesmo casado com dona Conceição — uma santa, segundo o narrador — mantinha um caso extraconjugal. Todos sabiam disso, inclusive sua esposa. Uma vez por semana, dizia que iria a um teatro ou outro lugar e ia encontrar-se com a amante. A noite de Natal foi uma dessas ocasiões e Conceição devia estar especialmente ofendida.

E a santa provavelmente pensou que a saída do marido propiciaria condições para que ela própria tivesse uma aventura. Assim, ao que tudo indica — pois como sempre Machado não afirma nada —  premedita um encontro com o jovem. Lendo na sala, o jovem Nogueira aguarda o horário da Missa e ela chega, procurando ser envolvente. E ele não capta as intenções de Conceição. Suas roupas, seus gestos, suas atitudes, seu andar, suas frases ambíguas são de sedução. Mas, vocês sabem, há o momento da sedução. Quando este passa, o reaquecimento é complicado. E tudo esfria, só reaquecendo inutilmente na memória de Nogueira, muito tempo depois.

Sim, não tem muito a ver com a situação que vivenciei, só o fato de eu ter ficado sem entender nada.

“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta.”

Pode-se entender, se nem mesmo o narrador entende?

cinema leo

Vocês sabem quais são os cinco livros mais cobrados no Enem e vestibulares?

Vocês sabem quais são os cinco livros mais cobrados no Enem e vestibulares?

Um cursinho pré-vestibular paulista — esqueci o nome — fez uma revisão em todo o país e chegou à conclusão de que as questões de literatura costumam cair mais sobre estes livros do que em outras plagas. Não tive surpresa, mas lamento a presença de O Cortiço, livro que achei apenas bom. Mas não sei como o substituiria por outro(s). Guimarães Rosa talvez seja complicado demais para gente tão jovem, mas talvez haja vários Ericos e Amados que poderiam entrar no lugar do Azevedo, para não falar em modernos como Raduan Nassar, que, poxa, poderiam comparecer. Os outros quatro da lista são obras indiscutíveis e nem dá para polemizar. Vontade de largar o trabalho e reler os quatro últimos AGORA.

O Cortiço, de Aluísio Azevedo
Dom Casmurro, de Machado de Assis
Vidas Secas, de Graciliano Ramos
Laços de Família, de Clarice Lispector
A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade

Clarice com um amigo.
Clarice com um amigo.

Machado de Assis e a “cagada” da livraria-editora Garnier

Machado de Assis e a “cagada” da livraria-editora Garnier

Qualquer bibliófilo sabe que a primeira edição de uma obra é sempre mais valiosa que as outras, apesar de muitas vezes ter sido impressa em papel de pior qualidade ou da má qualidade de sua impressão. O seu valor acaba por ser alto justamente porque são raros e poucos a possuem.

Mas, há casos em que uma primeira edição se torna mais valorizada devido a um erro tipográfico que escapou à revisão do editor ou do autor e foi parar nas livrarias. Corrigido o erro nas edições subsequentes, estes exemplares conquistam então o status de raridade bibliográfica. Este é o caso da primeira edição das Poesias Completas de Machado de Assis, publicado em 1901 pela Livraria Garnier.

Machado de Assis – Poesias completas. 1ª edição. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1901. VI, 376 p., 24 p. Frontispício de Machado de Assis. Possui notas, índice e catálogo da Garnier.
Machado de Assis – Poesias completas. 1ª edição. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1901. VI, 376 p., 24 p. Frontispício de Machado de Assis. Possui notas, índice e catálogo da Garnier.

Ao organizar este volume das suas poesias, Machado de Assis reuniu os livros Crisálidas (1864), Falenas (1870) e Americanas (1875), expurgando-os de algumas poesias e acrescentando um novo conjunto, intitulado Ocidentais.

No começo do século XX quase todos os livros desta editora eram impressos na França, mas, apesar da revisão, às vezes escapavam alguns erros. E foi justamente nesta obra, do mais importante autor brasileiro, que escapou um erro gravíssimo: Machado escrevera à página 20, no prefácio, “… cegára o juízo …”, e o tipógrafo francês trocou o “e” por um “a”!

Machado de Assis – Poesias Completas (com erro tipográfico)
Machado de Assis – Poesias Completas
(com erro tipográfico)

O erro só foi percebido depois que a edição já estava na livraria e alguns exemplares tinham sido vendidos. Para corrigir o erro, um empregado da livraria (Everardo Lemos) sugeriu raspar com cuidado a letra a e escrever a letra e com tinta nanquim.

Machado de Assis – Poesias Completas (com erro corrigido à mão)
Machado de Assis – Poesias Completas
(com erro corrigido à mão)

Depois o editor Garnier providenciou a reimpressão da folha com o erro, para substituí-la em todos os exemplares que ainda não tinham sido vendidos…

Machado de Assis – Poesias Completas (com erro corrigido tipograficamente)
Machado de Assis – Poesias Completas
(com erro corrigido tipograficamente)

Por causa disso existem três tipos de exemplares da primeira edição das Poesias Completas de Machado de Assis: o primeiro sem a correção (raríssimo) com a palavra cagara, o segundo com a correção feita a mão e o terceiro com a folha impressa sem o erro.

O felizardo que possuir na sua biblioteca um exemplar sem a correção tem em mãos uma obra cobiçada por qualquer bibliófilo digno deste nome. O Mercado Livre já vendeu a obra com a correção feita à mão por R$ 850,00, uma barbada.

Adaptado do blog Tertúlia Bibliófila.

Mário de Andrade, os 70 anos da morte da figura central do modernismo

Mário de Andrade, os 70 anos da morte da figura central do modernismo
csc
Mário de Andrade (1893-1945)

Publicado no Sul21 em 28 de fevereiro de 2015

Durante o velório de Mário de Andrade, Edgard Cavalheiro me perguntou, no jardinzinho que havia na frente da casa: “Para encontrar na literatura brasileira uma morte desta importância é preciso voltar até quando?”. Respondi: “Até a morte de Machado de Assis.”

Antonio Candido

Mário de Andrade (1893-1945) viveu apenas 51 anos, mas foi por mais de duas décadas uma figura central da cultura brasileira. Sua morte completou 70 anos na última quarta-feira (25), permitindo que sua obra entre em domínio público em 1º de janeiro de 2016. Em 2015, ele será o homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece em julho, e receberá uma série de lançamentos.

Como dissemos, Mário foi, em seu tempo, figura central da vanguarda artística de São Paulo. Exerceu cargos públicos e foi também músico, mas ficou muito mais conhecido como poeta, ensaísta e romancista. Mário esteve pessoalmente envolvido em praticamente todas as áreas relacionadas com o movimento modernista de São Paulo. Seus ensaios cobriram grande variedade de assuntos e foram amplamente divulgados na imprensa da época. Mário foi o maior incentivador da Semana de Arte Moderna, evento ocorrido em 1922 que reformulou a literatura e as artes visuais no Brasil, tendo sido um dos integrantes do “Grupo dos Cinco” (os outros quatro foram Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade). Ninguém delineou melhor as ideias por trás da Semana do que o prefácio de seu livro de poesia Paulicéia Desvairada.

Mário de Andrade
Mário de Andrade, nacionalismo e múltiplos projetos

O prefácio não fala do livro, mas sim de uma atitude geral perante a literatura. É uma espécie de manifesto poético em versos livres. Depois de fundar o “Desvairismo”, Mário afirma que luta por uma expressão nova, por uma expressão que não esteja agarrada ao passado. Outra das ideias expressas por Mário de Andrade neste Prefácio/Manifesto é que a língua portuguesa é uma opressão para a livre expressão do escritor no Brasil. Ele afirma a existência de uma “língua brasileira”, que seria das mais ricas e sonoras. Para reforçar esta ideia do brasileiro como língua, grafa propositadamente a ortografia de modo a ficar com o sotaque brasileiro. Deste modo, Mário de Andrade não apenas atava os parnasianos como era um nacionalista.

Também era contra a rima e todas as imposições externas. “A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas”. “Os portugueses dizem ir à cidade. Os brasileiros, na cidade. Eu sou brasileiro”.

Suas múltiplas atividades incluíam um meticuloso levantamento sobre a história, o povo, a cultura e especialmente a música do interior do Brasil, tanto em São Paulo quanto no Nordeste. Andrade também publicou ensaios em jornais de São Paulo, algumas vezes ilustrados por suas próprias fotografias, a respeito da vida e do folclore brasileiros. Entre as viagens, Andrade lecionava piano no Conservatório, havendo sido também aluno de estética do poeta Venceslau de Queirós, sucedendo-o como professor no Conservatório após sua morte em 1921.

Mário foi nota de Cr$ 500.000 em tempos de inflação
Mário foi nota de Cr$ 500.000 em tempos de inflação

Em 1938, Mário de Andrade reuniu uma equipe com o objetivo de catalogar músicas do Norte e Nordeste brasileiros. Tinha como objetivo declarado “conquistar e divulgar a todo país, a cultura brasileira”. O âmbito do recém-criado — por ele, Mário — Departamento de Cultura foi bastante amplo: a investigação cultural e demográfica, além de publicações culturais.

Assim dito, dá a impressão de que estamos falando sobre o criador de um projeto de arte vitorioso — mas não é bem assim.

A capa do volume da Nova Froneira
A capa do volume da Edições de Janeiro

Sua recém lançada biografia Eu sou trezentos – Mário de Andrade: vida e obra (Edições de Janeiro/Biblioteca Nacional), de Eduardo Jardim, mostra um homem que dedicou sua existência a um projeto artístico para vê-lo derrotado no fim da vida.

– Não à toa, ele vai ficando mais amargurado. O Mário morreu com 51 anos. Você pega as fotos dele e vê uma pessoa arrasada, um homem velho – afirma Jardim, professor aposentado do Departamento de Letras da PUC-RJ. – Os admiradores de Mário o apresentaram como um escritor consagrado, mas ele foi sacrificado pelo ponto de vista autoritário.

Depois de ser demitido do Departamento de Cultura de São Paulo, em 1938, com o Estado Novo, Mário entra em um período de depressão. Enquanto esteve à frente do órgão, viu-se perto de concretizar seu credo modernista de uma arte social que servisse aos interesses coletivos do país. A reforma proposta por ele visava criar canais entre cultura erudita e popular, nacional e estrangeira, fundar uma arte para estabelecer vínculos comunitários.

Com a demissão — acompanhada de acusações de corrupção –, Mário mudou-se para o Rio, onde entregou-se à bebida, permanecendo afastado de amigos queridos que moravam na cidade, como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Nomeado por Gustavo Capanema, passou a ocupar cargos menores no Ministério da Educação e Cultura, que seriam incompatíveis com quem já tivera centralidade na vida cultural do país. Mesmo assim, ele ajudou a fundar as bases do que hoje é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). E sua visão de conservação do patrimônio cultural é usada até hoje.

amar— O Capanema quebra o Mário de Andrade. Bota ele no Rio como um zé ninguém, um funcionário que tinha que bater ponto. Você imagina um intelectual da estatura dele batendo ponto? No meio do Estado Novo, ele tinha um projeto antiautoritário, de inclusão – afirma Jardim.

O trabalho de Eduardo Jardim não analisa a sexualidade de Mário, a qual sempre teria intimidado seus biógrafos. A família o trata como “solteirão assexuado, dedicado exclusivamente ao trabalho”, mas Moacir Werneck de Castro, Mário de Andrade – Exílio no Rio, foi o primeiro a tratá-lo como homossexual. Tal fato não altera sua obra, mas até hoje há um surpreendente pudor em torno do assunto.

Ele foi o autor de dois romances: Amar, verbo intransitivo (1927) e Macunaíma (1928). O primeiro causou um escândalo na época, uma vez que descreve a iniciação sexual de um adolescente com uma mulher madura, uma alemã contratada pelo pai do jovem. O segundo, desde sua primeira edição, é apresentado pelo autor como uma rapsódia, e não como romance. É considerado um dos romances capitais da literatura brasileira.

macunaimaA fonte principal para Macunaíma vem do trabalho etnográfico do alemão Koch-Grünberg, conforme relata o próprio autor. Koch-Grünberg, no livro Von Roraima zum Orinoco, recolheu lendas e histórias dos índios taulipangues e arecunás, da Venezuela e Amazônia brasileira. A partir desses materiais, Andrade criou o que ele chamou rapsódia, termo ligado a tradição oral da literatura. O protagonista, Macunaíma, é chamado de “o herói sem nenhum caráter”. A frase característica do personagem é “Ai, que preguiça!”. Como na língua indígena o som “aique” significa “preguiça”, Macunaíma seria duplamente preguiçoso. A parte inicial da obra assim o caracteriza: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite.”

Mas estamos perdendo tempo. Há um belo texto Antonio Candido — publicado no livro Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cincoenta: Mário de Andrade visto por seus contemporâneos (Nova Fronteira) — que dá uma noção muito mais rica de Mário de Andrade do que aquela poderíamos ambicionar.

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O Mário que eu conheci
Antonio Candido

Acho que tomei conhecimento da obra de Mário de Andrade na antologia renovadora de Estêvão Cruz, adotada pelo meu professor de Português na 3ª série do curso secundário no Ginásio Municipal de Poços de Caldas. O primeiro livro dele que li deve ter sido Primeiro andar, comprado na excelente livraria da cidade, Vida Social, que além dos clássicos e das novidades, além de obras em francês e inglês, tinha essa coisa rara: alguns livros dos modernistas, sempre editados em pequenas tiragens e muito mal distribuídos. Foi a única livraria em toda a minha vida onde vi Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, cuja edição quase secreta foi de 500 exemplares. Em 1938, já em São Paulo, li Macunaíma. Em 1939 e 1940 li os outros livros de Mário.

Só em 1940 vim a conhecê-lo pessoalmente, numa visita que lhe fizemos Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes e eu. A partir dali tivemos relações cordiais mas meio cerimoniosas, embora nos víssemos com certa frequência, inclusive porque São Paulo era menor, com pouco mais de um milhão de habitantes e toda a gente se cruzava nas poucas exposições, livrarias e espetáculos.

No fim de 1942 comecei a namorar sua prima Gilda de Moraes Rocha. Ele sempre morou com a mãe, D. Mariquinha, e uma tia solteira, D. Nhanhã, da qual era afilhado. Em 1930 Gilda e a irmã, Maria Elisa, vieram de Araraquara, onde o pai era fazendeiro, estudar em São Paulo e ficaram residindo lá. O pai delas era sobrinho muito ligado a D. Mariquinha Andrade. Gilda tinha dez anos e se tornou uma espécie de pupila de Mário, morando na mesma casa até o dia em que se casou comigo, em dezembro de 1943.

Em 1941 fundamos a revista Clima e ele fez para o primeiro número, a pedido de Alfredo Mesquita, o admirável ensaio sobre a posição do intelectual naquele momento, “Elegia de Abril”. No número 8, janeiro de 1942, publiquei uma resenha da edição reunida das suas Poesias. Ele gostou e agradeceu. Antes de sua morte ainda publiquei uns três artigos sobre escritos dele.

Em 1942 foi fundada no Rio a Associação Brasileira de Escritores, a famosa ABDE, e logo se cuidou de criar a seção paulista. A finalidade era defender os direitos autorais e arregimentar os intelectuais contra a ditadura do Estado Novo. Lembro que assisti então a uma cena curiosa, que já contei em livro mas vale a pena repetir. Estávamos conversando sobre a fundação da seção paulista na sede provisória, um grupo grande, inclusive Mário de Andrade, quando chegou Oswald. Vendo Mário, com quem era brigado, parou na porta e disse: “Boa tarde a todos”. Todos respondemos, menos Mário. Então teve lugar um diálogo virtual entre os dois, que se comunicavam de certo modo sem se falarem. Oswald, que sempre quis sem êxito fazer as pazes com Mário, informou que estava chegando do Rio, onde era grande o entusiasmo pela associação e onde todos achavam que Mário deveria presidir a seção paulista, concluindo: “Esta é também a minha opinião.” Na conversa que se generalizou Mário disse, dirigindo-se ao grupo, que considerava de fato importante a ABDE, mas não aceitava ser presidente, achando que devia ser Sérgio Milliet. Esse diálogo sui generis continuou por algum tempo, até que Oswald soltou uma das suas piadas irresistíveis. Todos riram, Mário tentou ficar sério, não conseguiu e estourou também na risada. Afinal o presidente acabou mesmo sendo Sérgio Milliet. Mário ficou vice e eu, segundo-secretário.

Em janeiro de 1943 ele fez em sua casa uma leitura de “Café”, poema dramático que tinha acabado de redigir, estando presentes Gilda, Oneida Alvarenga, seu marido Sílvio, Luís Saia, um argentino de passagem, Norberto Frontini, e eu. Fiquei transportado ouvindo Mário ler. Hoje “Café” não me toca muito, mas lido por ele naquele momento me pareceu um exemplo extraordinário de literatura política, “participante”, como se dizia. Passados uns dias escrevi a ele uma carta longa manifestando a minha opinião. Ele respondeu com outra também longa, na qual explicava a gênese e a estrutura da peça. Nos anos de 1950 Décio de Almeida Prado a publicou no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo.

A pedido de Otávio Tarqüínio de Sousa fui intermediário entre Mário e Frontini, que tinha vindo com o encargo de arranjar livros brasileiros para a coleção mexicana Tierra Firme, do Fondo de Cultura Económica, que estava começando. Ele queria que Mário escrevesse um livro sobre a música popular brasileira. Mário não quis, mas indicou Oneida, que fez uma obra fundamental sobre o assunto. Graças às gestões de Frontini, Caio Prado Júnior escreveu a História Econômica do Brasil para Tierra Firme.

Naquele janeiro de 1943 eu me tornei crítico oficial, chamado “crítico titular”, coisa que hoje não existe mais, da Folha da Manhã, atual Folha de S. Paulo, publicando todas as semanas um rodapé de cinco a seis laudas datilografadas tamanho ofício. Mário nunca comentou comigo artigos meus, mas acho que em geral os apreciava, porque uma vez me disse amavelmente: “Uma boa parada é artigo seu com caipirinha”, explicando que parada é como se designa no Nordeste uma boa combinação (goiabada com queijo, por exemplo), e contou: “Domingo (dia do meu rodapé) gosto de pegar o bonde, ir até o Largo Paissandu, tomar uma batida no Café Juca Pato, comprar o jornal e vir de volta lendo seu artigo”. Mas pelo menos uma vez criticou severamente um deles, de fato bastante errado, sobre mestiçagem e literatura, e mais tarde, quando Lauro Escorel começou a sua notável e infelizmente breve atuação como crítico titular d’A Manhã, do Rio, me disse rindo: “Tome cuidado, mineiro. Tem um paulista no Rio que está passando na sua frente.”

Eu costumava escrever os artigos à mão e ir à casa onde Gilda morava com as tias-avós para ela os datilografar. Eu tinha máquina, mas era um pretexto para vê-la. Às vezes, enquanto eu ditava, Mário entrava para pegar um livro e ouvia alguma coisa. Certo dia eu estava ditando um artigo sobre o novo romance de Oswald, Marco zero. Para me preparar, tinha lido a obra anterior dele e achara certos livros muito ruins. Aliás, sempre achei a obra de Oswald admirável numa parte e ruim na outra, e ele chegou a me atacar feio por escrito devido a isso, mas depois fizemos as pazes e ficamos bons amigos. Naquele momento eu estava comentando Estrela de absinto [de Oswald], quando Mário entrou e eu disse que o achava péssimo. Mário não retrucou, encontrou o livro e, saindo, virou-se da porta e disse com um sorriso meio sem graça: “Eu acho muito bom.”

Ainda nesse ano de 1943 dei uma grande mancada. Ele me pediu para ler um seu relato de viagem, O turista aprendiz, dizendo que não estava certo se valia a pena publicar e queria a minha opinião. Eu estava para casar, sobrecarregado de trabalho, fazendo a tradução de um enorme livro americano para juntar dinheiro, de modo que só dei uma olhada no texto e acabei não lendo, apesar do sentimento de culpa por essa desconsideração a um escritor da estatura de Mário, que tinha confiado em mim. Afinal chegou o dia do casamento. O civil foi na casa onde moravam a noiva e ele. Fui para lá com o manuscrito e quando entrei ele vinha descendo a escada. Entreguei-o dizendo que tinha achado muito interessante e depois conversaríamos a respeito…

Em 1944 resolvi fazer concurso para a cadeira de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, na qual eu era assistente de Sociologia. Naquele tempo o sistema era diferente: abria-se a inscrição e qualquer pessoa que tivesse diploma superior podia concorrer. Eu era licenciado em Ciências Sociais, mas tinha vontade de passar para Literatura e pensei: “É uma oportunidade. Não vou ganhar a cadeira (tinha 25 anos), mas, se for aprovado, fico livre-docente, o que me dá o grau de doutor em Letras, e assim poderei um dia ensinar Literatura na Universidade” (o que de fato aconteceu anos mais tarde).

Para a tese resolvi pedir sugestões a Mário. Ele me escreveu então uma carta sugerindo vários temas, visivelmente de cunho acadêmico, tendo em vista a situação convencional. Acabei não aceitando nenhum, mas o interessante foram certas opiniões dele na ocasião.

O diretor da Faculdade (então de Filosofia, Ciências e Letras) era um biólogo eminente e muito culto, André Dreyfus, que insistiu com Mário para concorrer, mas ele não aceitou a sugestão. Pediu então que ao menos fizesse parte da banca, e ele recusou também isso. A mim, disse que detestava concursos, não acreditava na sua eficiência como critério de seleção e se tivesse aceitado seria para me dar o primeiro lugar (éramos seis concorrentes). Eu estranhei esta falta de objetividade e ele voltou ao argumento, dando um exemplo: só aceitara participar da banca de um concurso de História da Música, no Rio, porque decidira previamente votar num dos concorrentes, Luís Heitor Correia de Azevedo, por saber que era o melhor, independente de provas. E reiterou que achava detestável a situação de concurso e seu ritual. Eu disse que gostava, achava bonito. Ele comentou rindo: “Ô mineiro arrivista!” Afinal não chegou a ver o concurso, que começou cinco meses depois de sua morte.

Mário costumava ir à Livraria Jaraguá, na Rua Marconi, no mesmo lugar onde houve depois outra com o mesmo nome, mas esta não tinha nada a ver com a primeira, que era encantadora, com uma sala de chá no fundo. Mário saía do Patrimônio Histórico, quase em frente, e ficava lá batendo um papo. Para explicar a cena engraçada de que participou um dia na Jaraguá, abro parêntese.

Uma vez fiz uma brincadeira literária. Tendo dedicado um rodapé a certa tradução de Maiakovski para o espanhol, publicada em Buenos Aires, pouco depois escrevi em Clima, com pseudônimo de Fabrício Antunes, um artigo contra o meu, dizendo que o sr. Antonio Candido não tinha entendido nada. É que, comparando a tradução de um poema que em espanhol era “La nube en pantalones” com a francesa, intitulada “L’homme nuage” (O homem nuvem), dei um palpite: a tônica na tradução espanhola parecia ser a nuvem, vestida de calças, quando na verdade se tratava de homem se sentindo nuvem. A tônica se deslocava, portanto, do natural para o humano. Era um jogo mental para me divertir, mas então aconteceu o inesperado: uma senhora russa me telefonou entusiasmada, dizendo que Fabrício Antunes obviamente sabia russo e tinha razão, e me pedia para apresentá-la a ele. Eu lhe disse que se tratava de um rapaz muito esquisito do Sul de Minas, caixeiro viajante que passava raramente em São Paulo, de modo que talvez custasse a voltar, mas quando viesse eu certamente os aproximaria. Meus amigos da revista sabiam de tudo, é claro, e Gilda contou o caso a Mário, que se divertiu muito.

Ora, uma tarde estávamos na Livraria Jaraguá ele e eu quando entra Lívio Xavier, intelectual de grande saber, e me pergunta quem era esse Fabrício Antunes que certamente sabia bem russo. Repeti a história do rapaz sul-mineiro e Mário, da cadeira onde estava, vendo o desenrolar da conversa, tentou segurar o riso, mas não conseguiu. Felizmente, Lívio não percebeu.

Em 1944 veio a São Paulo um argentino chamado Luís Riessig, que fundara em Buenos Aires uma instituição interessante, o Colégio Livre de Estudos Superiores. Ele escreveu a Mário dizendo que gostaria de conversar sobre a possibilidade de fundar um igual aqui. Mário me pediu para participar da conversa e marcou encontro às duas da tarde em frente ao Mappin, na Praça Ramos de Azevedo. Cheguei pontualmente, antes do argentino, e vi que Mário estava aborrecido, por um motivo que logo explicou mais ou menos assim: “Agora no almoço, em casa, houve uma cena desagradável. De vez em quando, para brincar, eu espicaço minha mãe contra minha tia. Minha mãe fica irritada, briga com minha tia, eu aí entro no meio, fico do lado desta e sou bruto com minha mãe. Foi o que aconteceu hoje. Não sei por que faço isso. Complexo de Édipo não é, porque já me auto-analisei…”

Em janeiro de 1945 houve em São Paulo o I Congresso Brasileiro de Escritores, verdadeira arregimentação dos intelectuais contra a ditadura. Foi um acontecimento memorável, com delegações maiores ou menores de todos os estados. Mário estava na Paulista, com Oswald, Sérgio Milliet, Monteiro Lobato, Fernando de Azevedo e outros, num total de 26, dos quais eu era o caçula. Mário foi assíduo, vestido sempre de branco no calorão que fazia, mas calado, sem participar dos debates nem das comissões.

Durante o Congresso houve um grande jantar na casa de Lasar Segall. Eu não fui, mas Paulo Mendes de Almeida foi e me contou uma cena divertidíssima. Estava lá um jovem escritor hispano-americano que se pôs a dizer coisas de um complicado pedantismo sobre a poesia a partir de Rimbaud, segundo ele o poeta supremo. Paulo, para o descartar, disse que quem entendia de Rimbaud era Rubens Borba de Moraes, a quem o rapaz se dirigiu com a mesma parolagem abstrusa. Rubens, por sua vez, tirou o corpo dizendo que cuidara de poesia na mocidade, mas agora era apenas bibliotecário, e passou a bola adiante, dizendo que bom conhecedor de Rimbaud era Mário de Andrade, ali presente. O rapaz delirou, bradando: “Mário de Andrade, el grande Mário de Andrade está acá? Quiero conocerlo, quiero conocerlo!” “É aquele ali”, disse Rubens mostrando. O rapaz se precipitou excitadíssimo, repicando o estranho jargão, que Paulo Mendes reproduzia na chave do bestialógico. Mário, já meio no pileque, exclamou: “Quanta besteira! Olhe aqui moço, poesia é safadeza! A gente quer pegar uma mulher, não pode, aí faz um poema. E comigo é na piririca!” Atarantado, o rapaz perguntava ansioso para os lados: “Que es esto de piririca? Que es esto de piririca?

Nesse Congresso Paulo Emilio e eu provocamos involuntariamente duas explosões de Mário. A primeira foi devida ao seguinte: Paulo alertou a mim e a outros que determinado intelectual, não sendo eleito por São Paulo, fora incluído meio de contrabando na delegação de outro estado, o que era irregular e nos contrariava politicamente. Redigiu-se então um protesto e fomos pedir a adesão de Mário, que ficou danado e recusou. Nós procuramos argumentar que era algo politicamente importante, aí ele estourou, dizendo que por isso é que não queria saber de política, que era uma indignidade e não assinava mesmo. Tremendo de raiva, foi se juntar a um grupo próximo formado por Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e, se não me engano, José Lins do Rego. Trinta e sete anos depois, em 1982, pouco antes e morrer, Sérgio Buarque me disse, como quem quer tirar um peso da consciência, que precisava confessar uma coisa: certa vez tinha me censurado com Caio Prado Júnior e Mário de Andrade. Percebendo do que se tratava, não o deixei explicar, dizendo: “Eu sei. Foi no I Congresso de Escritores e vocês tinham toda a razão”. De fato, nós estávamos agindo mal por birras políticas.

A segunda explosão foi no encerramento do Congresso, no Teatro Municipal, onde Oswald fez um discurso notável, no qual lançou a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República. As oposições achavam que era cedo, o Partido Comunista não queria precipitação, mas nós socialistas independentes e também muitos liberais aplaudimos, porque era uma boa pancada na ditadura em declínio. Além disso, Oswald fez troças divertidas com a alta sociedade de São Paulo, provocando protestos violentos. Todo o mundo acabou berrando e lembro de um senhor agranfinado perto de mim que enfrentou as vaias (inclusive minhas) com muita coragem, parecendo pronto para dar bengaladas. Na saída, em frente do teatro, Paulo Emílio e eu fomos falar com Mário e gabamos o discurso de Oswald. Ingenuidade nossa. Ele perdeu a calma e falou exasperado que não reconhecia a Oswald autoridade moral para falar mal da sociedade paulistana. Nós ficamos passados e fomos tratando de dar o fora.

Isso foi no fim de janeiro de 1945. No dia 17 de fevereiro Gilda e eu recebemos um telegrama de Mário (não tínhamos telefone, coisa dificílima naquele tempo), convidando para irmos no dia 20 conhecer Henriqueta Lisboa, que viria a São Paulo e estaria presente na festinha de aniversário da sobrinha dele, em sua casa. Fomos, e em dado momento eu estava conversando com ele e seu irmão mais velho, Carlos de Moraes Andrade. Naturalmente ele tinha ficado constrangido por ter tido aquele rompante na porta do Municipal e perguntou risonho se eu o tinha levado a sério, alegando que era simples brincadeira. Eu fingi que acreditei e ele passou a manifestar muita amargura, dizendo já estar cansado de sofrer injustiças e ser atacado. Eu observei que não tinha razão, porque poucas pessoas eram mais estimadas e admiradas. “Eu é que sei”, disse ele bastante amargurado, e seu irmão o apoiou citando um dito popular: “Pimenta não arde no olho do vizinho.” Mário prosseguiu na mesma craveira, dizendo-se convencido de que o intelectual não devia se meter em política, que o recente Congresso lhe tinha ensinado isto e que a partir daquele momento se fecharia na torre de marfim. O que tivesse de dizer como cidadão diria da torre de marfim, não dentro de algum partido ou movimento.

Isso foi no dia 20 de fevereiro. No dia 25, morreu. Luís Martins foi nos avisar no começo da noite e Gilda e eu fomos para o velório. No dia seguinte vi uma cena impressionante: os Irmãos do Carmo, que ele fora e talvez nunca tenha deixado formalmente de ser, vieram rezar alinhados dos lados do caixão. Eram uns oito com o hábito, batina marrom e um manto comprido de lã creme.

Durante o velório, Edgard Cavalheiro, escritor bastante em voga naquele momento, autor de biografias de Fagundes Varela e de Monteiro Lobato, me perguntou, no jardinzinho que havia na frente da casa: “Para encontrar na literatura brasileira uma morte desta importância é preciso voltar até quando?” Respondi: “Até a de Machado de Assis.” “Pois é exatamente o que estou pensando”, disse ele. “Machado de Assis em 1908 e Mário de Andrade agora”. O enterro foi no Cemitério da Consolação, muito concorrido, e impressionava a tristeza profunda de todos, como se todos sentissem uma espécie de enorme vazio na cultura do Brasil.

Uns dias depois fui ao escritório do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional e Luís Saia, delegado deste em São Paulo, me disse com os olhos espantados: “Tem um envelope com o seu nome na mesa do Mário”. Depois da morte de um amigo, coisas desse tipo parecem mensagem, e, meio perturbados, fomos abri-lo. Lá estava, com a letra de Mário no envelope grande: “Para o Antonio Candido”. Eram alguns poemas de Lira Paulistana, inclusive a versão final de “Meditação sobre o Tietê”, datada de poucos dias antes.

Naquele ano de 1945 preparei a primeira edição de Lira Paulistana e do Carro da miséria, pois Mário queria que saíssem em tiragem independente, antes de serem incorporadas às Obras completas que o editor José de Barros Martins estava publicando. Editei-os com um título que contrariou Oneida Alvarenga e Luís Saia, conhecedores mais seguros das intenções do amigo: Lira Paulistana seguida de O carro da miséria. Segundo eles, deveria ser: Lira Paulistana e O carro da miséria. Preparei também a edição de Contos novos, que só saiu em 1947, salvo engano. A Nota do Editor, anônima, foi escrita por mim.

Não lembro em que altura (fim de 1945, começo de 1946?) foi inaugurado o busto dele por Bruno Giorgi no jardim da Biblioteca Municipal, onde está até hoje. Na inauguração falaram Sérgio Milliet, diretor da Biblioteca, e Carlos de Moraes Andrade em nome da família. Oswald compareceu emocionado e discreto. (Não tem qualquer fundamento o boato segundo o qual teria escrito palavras desagradáveis no pedestal.)

Decidiu-se então promover a leitura pública de “Café”, ainda inédito, e eu achei que a pessoa indicada era Carlos Lacerda, que fora muito amigo de Mário, tinha uma bela voz abaritonada e viera para a inauguração do busto. Falei com ele e ele aceitou, mas foi precipitação minha, porque Oneida Alvarenga e Luís Saia, discípulos queridos muito chegados a Mário, vetaram, alegando que este desaprovaria totalmente as atitudes políticas que Carlos vinha assumindo, que aliás eu também reprovava. Muito sem graça, tive de lhe dizer que era melhor eu próprio ler. “Já percebi”, disse magoado. “É coisa da Oneida e do Saia”. Assim, em vez da bela voz de Carlos, “Café” foi comunicado ao público na minha, fraca e abafada.

Mário de Andrade era um homenzarrão feio e simpático, muito cordial, com um riso bom que quando virava gargalhada sacudia o seu corpo inteiro. Era certamente um feio charmoso que despertou várias paixões. Vestia-se bem, usava uns chapéus de aba meio larga enterrados na cabeça e calçava sapatos sob medida da Sapataria Guarani, a mais cara de São Paulo, sempre no modelo escocês furadinho de bico afinado. Os pés e as mãos eram enormes e ele me parecia ter pouca naturalidade, mas com os íntimos devia ser diferente.

Um dos seus hábitos mais constantes era ir, geralmente à noite, tomar chope no Bar Franciscano, que ficava na Rua Líbero Badaró perto de uma esquina da Avenida São João, com fundo envidraçado sobre o Vale do Anhangabaú. Sentava numa mesa redonda de canto, perto do balcão, e ia consumindo sucessivas “pedras”, que são canecas grandes de louça clara. Os amigos sabiam que podiam encontrá-lo no Franciscano e ele costumava marcar encontros lá, por vezes à tarde. Foi de tarde que me convocou uma vez para conhecer João Alphonsus, que estava de passagem e me pareceu de pouca fala. Outra tarde de 1942 fui conhecer Fernando Sabino, que ainda não tinha vinte anos e já publicara um livro de contos: Os grilos não cantam mais. Ele e Mário admiravam os romances de Otávio de Faria, de certo porque estes abordavam problemas da adolescência católica que lembravam os deles. Eu os achava ruins e nesse encontro Fernando os defendia enquanto eu os atacava. Ele quis conhecer as minhas razões e eu disse que eram várias, inclusive o fato de Otávio escrever prolixamente mal e os seus romances não questionarem a ordem burguesa, concluindo: “Eles não tiram o sono de Roberto Simonsen” ― figura de proa da alta burguesia industrial de São Paulo. O meu sectarismo elementar era devido ao período de militância bastante radical que eu estava vivendo. Mário escutava, risonho.

Em 1943 Jorge Amado publicou Terras do Sem Fim, que foi uma inflexão na sua obra, por ser menos panfletário e mais compreensivo, inclusive humanizando representantes da oligarquia agrária. Gostei muito e escrevi um artigo favorável, levando-o como de costume para Gilda bater à máquina. Vendo do que se tratava, Mário me disse: “Quero ver se você percebeu uma coisa em Terras do Sem Fim“, mas apesar da minha curiosidade, não explicou o que era. Mais tarde refiz a pergunta e ele disse com certa ironia: “Este livro não tira o sono de Roberto Simonsen (**)…”.

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Antonio Candido é professor aposentado de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. Foi professor de Literatura Brasileira da Universidade de Paris (1964-1966) e Professor Visitante de Literatura Brasileira e Comparada da Universidade de Yale (1968). Recebeu vários prêmios, entre os quais Machado de Assis (da Academia Brasileira de Letras), Almirante Álvaro Alberto, Moinho Santista, Jabuti, Camões e Alfonso Reyes. Entre os seus principais livros estão o clássico Formação da Literatura Brasileira (1959), Tese e Antítese (1964), Os Parceiros do Rio Bonito (1964), Literatura e Sociedade (1965), O Discurso e a Cidade (1993).

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(*) Com informações da resenha de Maurício Meireles, publicada em O Globo.

(**) Político, economista e escritor, presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).

Pesquisa identifica Machado de Assis em foto histórica da Abolição da Escravatura

Pesquisa identifica Machado de Assis em foto histórica da Abolição da Escravatura

A Brasiliana Fotográfica identificou a presença de Machado de Assis na fotografia da Missa Campal de Ação de Graças pela Abolição da Escravatura realizada no dia 17 de maio de 1888, no Campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. O autor da foto foi Antonio Luiz Ferreira.

Machado Missa Campal

A identificação de Machado de Assis foi confirmada por Eduardo Assis Duarte, doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (USP) e professor da Faculdade de Letras da UFMG. Segundo ele, Machado de Assis teve uma “atitude mais ou menos esquiva na hora da foto, em que praticamente só o rosto aparece, dando a impressão de que procurou se esconder, mas sem conseguir realizar sua intenção totalmente. Atitude esta plenamente coerente com o jeito tímido que sempre adotou em público, uma vez que dependia do emprego público para viver e eram muitas as perseguições políticas aos que defendiam abertamente o fim da escravidão.”

Ali, à direita, meio escondido atrás do senhor de barba branca
Ali, à direita, meio escondido atrás do senhor de barba branca

Machado de Assis, a Polca, o Jazz, Shostakovitch e o Pestana

Em um famoso conto de Machado de Assis, Um Homem Célebre, havia um grande compositor de polcas, o Pestana, que queria fazer algo maior, grandioso, mas — que diabo! — só lhe saíam mais polcas. O que fazer? O personagem fazia o maior esforço, passava meses trancado em casa a fim de parir a grande obra, porém não produzia nada além de belas polcas, que logo se tornavam popularíssimas e eram assobiadas pelo povo nas ruas, para desespero do Pestana. Estas eram compostas copiosa e rapidamente. Acabou rico, infeliz e doente. Coitado.

Com Shostakovitch o caso é diferente. Compôs copiosamente obras-primas, tem obra profunda e numerosa, mas, um belo dia, resolveu escrever suítes para grupos de jazz. Vocês podem adivinhar o que aconteceu? Saíram apenas… polcas. Polcas e valsas. Ah, vocês não acreditam? A esplêndida Valsa 2 da Suíte Nro. 2 foi utilizada por Stanley Kubrick na abertura de De Olhos bem Fechados, com um ritmo e um solo de sax que nos obriga a levantar e ensaiar uns passinhos pela sala. É o “Grande Projeto Falhado” do imortal Shosta e, mesmo assim, é muito bom e divertido.

Ospa com programa jazzístico, poético e zombeteiro

Ospa com programa jazzístico, poético e zombeteiro
Cristina Capparelli mandou bem e sobreviveu
Cristina Capparelli mandou bem e sobreviveu ao concerto que “matou” Gershwin

Com o tempo, a gente vai aprendendo. Os concertos regidos por Manfredo Schmiedt obedecem à seguinte lei de formação: são bem trabalhados, minuciosos, seguros, além de ousados e equilibrados. Não foi diferente ontem. A Ospa rendeu muito frente a boa parte da comunidade musical de Porto Alegre, lá presente para saudar a pianista Cristina Capparelli, solista do Concerto em Fá, de George Gershwin.

O programa começou com Evocação de Augusto Meyer, peça do crasso porto-alegrense Armando Albuquerque, amigo de Meyer, o bom poeta e melhor ensaísta que colocou o mulato Machado de Assis no lugar onde está merecidamente até hoje, ou seja, no Olimpo das letras nacionais. Albuquerque é grande compositor. Tenho seus discos Mosso e Uma ideia de café — títulos sujeitos às flutuações de uma memória vagabunda — e afirmo que são boníssimos. Evocação é um peça curta e muito interessante, com a surpresa de vermos o pianista André Carrara arranhando bastante bem um acordeon durante um solo com a percussão. O diálogo poético entre Meyer e Albuquerque foi um início promissor de concerto.

Não tem problema, ele sabia disso. O norte-americano George Gershwin tinha uma cultura musical limitada, mas era um imenso melodista. Escreveu centenas de canções, sendo uma espécie de Schubert com seus mais de 500 lieder negros. Certo preconceito dos representantes da alta cultura de sua época hesitava em considerá-lo “erudito”. Não foi o caso do grande Maurice Ravel, admirador da música e da fortuna de Gershwin. Há muitas piadas a respeito. Ora, o Concerto em Fá é bem conhecido. Foi uma encomenda da Filarmônica de Nova Iorque, estreada pelo próprio compositor ao piano em 3 de dezembro de 1925 no Carnegie Hall em Nova Iorque. O curioso é que, em fevereiro de 1937, Gershwin tocava o Concerto Em Fá com a Filarmônica de Los Angeles quando sofreu um desmaio. Levado ao hospital, recebeu o diagnóstico de tumor cerebral. Morreu cinco meses depois, aos 39 anos, no auge.

Porém, Cristina Capparelli saiu caminhando após o concerto — não foi necessária a intervenção dos maqueiros — e espero que esteja tão bem quanto esteve como solista. Excelente interpretação do concerto de Gershwin. Gostei muito de todos na interpretação do segundo movimento (Adagio — Andante com moto). Os sopros soaram tristes, dignos de uma big band de Duke Ellington, com destaque para o trompetista Tiago Linck, secundados pelo trio de clarinete, flauta e trompa, pilotados por Augusto Maurer, Klaus Volkmann e Israel Oliveira.

A diversão da noite veio por conta de Jacques Ibert e seu Divertissement. Raros “Divertimentos” são tão alegres e zombeteiros quanto este. Para orquestra reduzida, tem início agitado e atlético ao estilo do melhor Hindemith, boa escrita para sopros — e os atuais sopros da Ospa sempre respondem bem às demandas mais complicadas –, citações da Marcha Nupcial, a tangos e tem no coração uma incrível valsinha, bem burlesca, além de um solo anárquico, talvez inspirado no Bloco de Lutas, a cargo de André Carrara. Mais um show dos sopros numa música tão boa e feliz que nem parece francesa.

A Sinfonietta Prima de Ernani Aguiar, finalizou com dignidade o belíssimo programa. Depois de um severo primeiro movimento, temos um lastimoso Lento assai, seguido de uma magoada Marcha-rancho que vai desembocar num Finale daqueles que parecem formar uma mola nas cadeiras de parte da plateia, o que leva algumas pessoas a imediatamente erguerem-se e aplaudirem. E foi feito para isso mesmo.

Então, quem foi à Reitoria da Ufrgs não se arrependeu.

O célebre gaiteiro André Carrara -- pão de queijo e carne de sol.
O célebre gaiteiro André Carrara — pão de queijo e carne de sol | Foto: Augusto Maurer