A convivência com a maldade e com o luto

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E lá vou eu contar para minha filha que, na sua ausência, alguém deu uma salsicha envenenada para sua cachorra. Como se diz isso? E como se explica e consola depois?

Gosto muito de cães, sou o que se costuma chamar no sul de “cachorreiro”, mas não sou de verter lágrimas por bichos. Talvez tenha ouvido muito o Geraldo Vandré cantar “Disparada”, então acho que bichos são bichos, e com maior ou menor sofrimento são passíveis do marca, tange, ferra, engorda e mata…, mas com gente é diferente. Quando vi nossa Maria Callas — a Callas filhote pastor alemão de 5 meses que estava sendo ensinada pela Bárbara — agonizando debaixo da churrasqueira; quando minha mulher e eu, ambos de pijamas, a levamos para um plantão veterinário; quando ouvi que estava morta; quando soubemos que havia vomitado “salsichas”… que salsichas?, só dávamos-lhe ração; fui menos tomado de pena e luto do que pelo ódio de estar no lugar em que sempre quis estar, porém acompanhado de anônimos que, talvez desejando entrar depois na casa sem a indesejável presença de um cachorro, escolhe matá-lo, avisando-nos com toda a clareza suas intenções.

Minha mulher ouviu um ganido tão alto e desesperado que acordou. Assustada, me chamou. Começamos a chamar pela Callas. Nada. Chamamos o segurança da rua. O homem veio. Já estava achando que fora roubada quando a vi sob a churrasqueira, bem da maneira que os cães escolhem para morrer, escondidos. Não vejo motivo para que minha filha passe um longo luto e já providenciamos a compra de um filhote de 34 dias. Com seu amor pelos bichos, ela logo vai preocupar-se com o crescimento do substituto. Não quero não dar muito espaço para sua dor. O que mais posso fazer?

Dentro das circunstâncias, tudo muito razoável. Mas e as circunstâncias? Já sabemos que não podemos deixar o cachorro ir até a grade da frente da casa. Teremos que impedi-la disto, seu limite agora será a porta da garagem. E assim vamos nos adaptando às exigências de uma vida cada vez mais estreita e estranha. A grade já foi anormal, as muitas trancas também, os cães tornaram-se parte da segurança e alarme, há seguranças na rua e agora só podemos permitir que nosso cão fique numa grade atrás da grade, vendo a rua de longe. Tudo bem.

Preocupo-me mais em evitar um luto doloroso a minha filha. Desde que ela aprendeu a expressar seus desejos e até hoje, garante que será veterinária. Nossa única sorte que é neste fim de semana ela esteve com a mãe e apenas retorna ao meio-dia. O que dizer a ela? Falar que luto é como quando perdi o pai que me criou e de quem eu gostava demais? É quando um filho morre? É quando o vôo da TAM cai levando nossa irmã? É quando um terremoto mata milhares de pessoas? Digo que gente é diferente? Que é errado dar tanto amor aos bichos? E é mesmo? Ah, sei lá.

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15 comments / Add your comment below

  1. Andorinha, andorinha, meu canto é mais triste…
    Meu post também foi de luto, querido… e da busca de consolo….
    E também já choramos por aqui nosso cãozinho que cresceu com as crianças e um monte de gatos envenenados e estropiados pela violência inexplicável dos arredores.
    Também já postei sobre isso. Mas hoje, meu canto é mais triste… pena não te servir de consolo, muito menos à pequena Bárbara.
    Sinto muito. beijinhos a ela. E trate de arrumar um cachorrinho logo. Isso sim é um consolo para quem perde um animalzinho.

  2. Milton, estou chocada! Deve ser uma sensação tremendamente desagradável saber que um estranho rondou a casa. Boa sorte ao novo filhote! E abraços a Bárbara e a xará!

  3. eu sou muito grosso e tosco com bicho. bicho é bicho e fico possesso quando sou obrigado a testemunhar animais sendo tratados como humanos, ou com amor desmedido na (minha) escala de “saudável”.

    [quando digo isso, evidentemente sou assolado pela patrulha que me aponta o dedo e diz que eu sou um monstro e tudo o mais que vem junto, etc. ]

    agora, se alguém tem a capacidade de maltratar ou matar um animal indefeso, seja cachorro, gato ou pterodáctilo, ganha um inimigo em mim. crueldade não se justifica.

    minha avó era a pessoa mais doce que conheci. uma santa. incapaz de não sorrir, de ficar braba, de xingar. se dizia (e eu concordava com “arrã”) que teria recepção de estadista ao chegar no céu. a única coisa que a tirava do sério era maus tratos com os bichos. 1m50cm, enfrentou e surrou um carroceiro que judiava do cavalo arriado e queimou um homem com o cigarro que usava para torturar um gato. aprendi o espírito com ela.

    enquanto penso que não gostaria de viver neste mundo, espero que a Bárbara não fique triste demais por muito tempo. e que o evento não a faça envelhecer mais que o devido. abraço.

  4. Perder qualquer coisa ou gente, lápis, caneta bic, carteira, dinheiro, cachorro, gato, passarim… perder é triste e provoca raiva. São dois sentimentos que alimentam o luto. Sabe-se que passam, tristeza e raiva, mas enquanto duram são companhias desagradáveis. A tristeza se alimenta das boas lembranças e da certeza de não usufruir mais daquilo que se foi; a raiva, pela impotência diante do fato consumado e, às vezes, de quem o provoucou (quando é o caso). Há outra emoção em jogo: a identificação com o objeto perdido. Aí, meu caro, pode-se complicar a vida: quero morrer com o que morreu, sem ele minha vida perde sentido, etc. Por isso, que a Bárbara curta o luto, a dor e a raiva. Mas deixe sua alma fértil para florir novos amores.

  5. Agradeço muito os extraordinários comentários deixados até agora.

    A vida seguiu razoavelmente bem hoje. Mesmo que a Bárbara tenha reclamado que “a Callas era mais legal” que o novo filhote, logo já estava atirada no chão, ensinando-lhe bons modos.

    Obrigado.

  6. A questão é que nós humanos humanizamos sim algumas coisas, alguns de nós mais que outros. Algumas coisas ou seres são mais humanizáveis que outros. Depende da cultura e, nesta, do indivíduo.
    A nominação é uma das formas pelas quais humanizamos nosso universo. Quando perdemos uma caneta por mais história que ela tenha é uma caneta Mas bárbara perdeu Maria (Callas).
    Segundo um texto clássico do antropólogo americano Marshall Sahlins, por isso comemos porcos e não cães. A comensalidade dos animais é, para nós, inversamente proporcional à sua humanização (à forma como os simbolizamos humanizando-os).
    Acho que quanto mais humano é aquilo que perdemos, mais sofremos.

  7. nossa milton, vc postou enquanto eu escrevia!
    Que bom que ela já tem um filhotinho! isso a manterá ocupada… e apaixonada!
    bjs, f
    Conte para nós o nome do bebê!

  8. Detesto bichos em casa, mas vou contar uma história pessoal.
    Quando morava em São Paulo hvia um gato que miava a noite toda e irritava-me muito. Espantava-o e ele sempre voltava.
    Não tive dúvida, arrumei uma espingarda de chumbinho e fiquei de tocaia aquela noite.
    Na hora certeira, lá estava o gato miando e com aquels, sei lá como se diz, ganidos. Preparei a arma, engatilhei e olhou bem para ele. Bem nos olhos. Como resultado o gato continuou miando por anos e eu jamais senti incômodo por isso.
    Matar um bicho assim?

    Branco

  9. aaaah milton,
    eu então! sou suspeita; adoro meus 2 cachorros, e o fato de serem tão indefesos, doe mais quando são mal tratados. Bichos são bichos , e precisam de nossa proteção. Sinto muito pela perda .
    Beijos Stella

  10. Milton, toda solidariedade a tua filha e família. Essa experiência de ver o bicho morrendo por crueldade de quem não acredita nas próprias palavras é terrível, mesmo. Só como sugestão fica a idéia de enfrentar, sei lá direito como, mas de não recuar. Esse tipo de gente perversa quer mesmo é se espalhar e é preciso enfrentá-los. Um abraço carinhoso na tua filha e na família.

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