Uma semana, um texto: E se Obama fosse africano?, de Mia Couto

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Este texto circulou bastante na semana que hoje finda. Também pudera! Li-o primeiro no Azenha e acabo de receber um e-mail de um dos intelectuais que mais entendem de África no Brasil, não apenas por isto mas também por ter residido em Moçambique. É uma perspectiva diversa descrita pelo notável escritor António Emílio Leite Couto ou simplesmente Mia Couto.

E se Obama fosse africano?

Por Mia Couto.

Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.

Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.

Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de “nosso irmão”. E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.

Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: “E se Obama fosse camaronês?”. As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.

E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?

1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.

2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.

3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes.

O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente “descobriram” que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado ‘ilegalmente”. Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.

4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um “não autêntico africano”.

O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos “outros”, dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).

5. Se fosse africano, o nosso “irmão” teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada “pureza africana”. Para estes moralistas – tantas vezes no poder, tantas vezes com poder – a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.

6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado – a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.

Inconclusivas conclusões

Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.

Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.

A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos – as pessoas simples e os trabalhadores anónimos – festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.

Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.

No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos.

Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política.

Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.

Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente.

É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.

Jornal “SAVANA” – 14 de Novembro de 2008

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11 comments / Add your comment below

  1. E se Obama fosse latino-americano?
    Provavelmente teria feito tantas alianças para chegar ao cargo, estaria sentado num mesa de negociações conciliando interesses tão conservadores, inclusive racistas e “brancos”, que o cara a essas alturas já estaria quase um Michael Jackson…

  2. Falei sobre o texto também lá no “Luz” e ganhei de presente um comentário “uau” maravilhoso do Manoel 😉
    Depois de 8 anos de Bush, o mundo precisa respirar um pouco. Obama não é africano, não é negro, é um americano mestiço. Independente da cor, ele terá que mostrar eficiência para governar. Mas pela cor, estando onde está, terá que ter eficiência em dobro? Um tanto quanto confuso, mas ninguém nunca questionou quando um peruano se candidatou ao senado japonês ou um chinês governou uma Guiana (situando apenas o continente americano) Se Obama fosse africano e governasse os EUA, aí sim seria espantoso. O mundo se espanta com Obama, porque como estadista, comparado pelos americanos a Lincoln e FDR; todas as nações querem um Obama para chamar de seu. Agora somente o tempo dirá para que ele veio. Beijus

  3. puxa vida, que artigo incrivel! até fiquei meio assim…chorosa.

    tbm fiquei chorosa no discuro do obama…até que um idiota falar pra mim que o tal do nostra damus previa ser obama um novo anti-cristo. não que eu acredite em nostra damus, mas eu tenho medo do anti-cristo. mais um? um mundo com tantas áfricas tá carente de um messias.

    beijos, e obrigada por postar. vou tirar uma print e distribuir aqui em casa, papai foi mtas vezes pro congo, vai gostar de ler.

  4. Milton,

    retornando de 8 dias de viagem de férias, é um prazer encontrar esta postagem, nota 10, e alguns comentários no Blog Viciado que me permito transcreve-los porque acredito que não tenha lido. TODOS se referem ao seu texto, lá postado. E tem muito outros…

    Alice Salles disse…
    Pergunto o mesmo que o Jorge, nao quer fazer umas musiquinhas (que de “inhas” nao teriam nada) a partir dessa sua forma fantastica de proferir pensamentos?!

    9/11/08 12:25

    Silvares disse…
    Excelente.Tão longe e tão perto. Vivemos a milhares de quilómetros e, no entanto, os nossos corações parecem estar à mesma exacta distância do cérebro que os escuta e tenta mantê-los a bater no seu lugar. Obrigado por mais esta porta Eduardo. Este blogue é, cada vez mais, de visita obrigatória. Milton, acho que vou fazer-te umas visitinhas. Só para espreitar o teu coração a bater.
    🙂

    9/11/08 15:09

    Anny disse…
    Muito, muito, muito bom!
    Esta é a primeira vez que comento aqui e não será a última.
    Parabéns pelo texto.

    9/11/08 15:42

    Ví disse…
    Eduardo,que linda escolha…original e tão relevante…merecidíssimo (snif snif) ;-}}

    beijos

    10/11/08 07:47

    peri s.c. disse…
    O blog do Milton é um dos melhores que temos à disposição.

    10/11/08 10:50

    Anny disse…
    Vou fazer uma citação deste texto, na pubicaçação de hoje, no Blog Linha
    http://anny-linhaozzy.blogspot.com/
    Obrigada, Milton.

    Não pude deixar de te informar!
    Forte abraço e boa semana!
    Estou ilhado em Floripa e retorno amanhã para SP, para esperar que as estradas, para casa, sejam liberadas.

  5. Pois eu me choco que, em momento algum, o Mia evoque de quem é a responsabilidade pela longevidade das ditaduras na África, dos Bush Africanos: países imperialistas como a Inglaterra e os EUA.
    Quem sustentou Mobuto no poder? Quem matou Patrice Lumumba? Quem sustentou o imperialismo português e o regime racista sul-africano? Quem sustenta o Mbarak no Egito? Quem colocou o idi Amin no poder, acreditando que seria mais um “negro dócil”? Quem lhe deu treinamento e assistência militar?
    Quem matou Samora Machel?
    Será que com Obama no poder, essa realidade irá mudar para o sofrido povo africano? Para quem diz que enviará mais tropas ao Afeganistão…

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