Ingo Schulze

Ingo Schulze é quase desconhecido no Brasil. Tem 47 anos e sabe que já escreveu o grande romance de sua vida, Vidas Novas. O livro terá lançamento no próximo dia 30 pela Cosac & Naify. Ontem, assisti à palestra do Marcelo Backes, tradutor e coautor da edição brasileira, a respeito de Schulze e do livro.

Tenho de explicar o fato do autor ter escrito seu mais importante romance ainda jovem. Ocorre que Vidas Novas deriva de sua experiência pessoal, um ex-alemão oriental tragado pelo estilo de vida ocidental aos 30 anos. Schulze talvez tenha razão ao pensar que se trata da maior experiência e tema de sua vida. Como experiência é certamente irrepetível, como tema… Bem, Schulze estará na Amazônia nos próximos dias, realizando pesquisas para seu próximo livro, o que certamente indica uma não aceitação da confortável posição de autor-do-melhor-livro-sobre-a-reunificação.

É notável como a Alemanha divulga com orgulho seus autores. Na falta de Schulze — que estará presente no lançamento em São Paulo e Rio — , o Instituto Goethe convidou seu tradutor para falar e responder perguntas por duas horas. Vidas Novas retoma o pacto fáustico num tom de ironia e diálogo com o leitor. O autor constante na capa é Ingo Schulze, claro. Afinal, foi ele quem escreveu o livro! Porém, na primeira página, ele reaparece como personegem, na pele do organizador dos papéis e cartas de um certo Enrico Türmer, escritor e redator de jornal, que passa a atuar como empresário na nova Alemanha. Seu Diabo é um homem de negócios que se apresenta a ele de gravata e simplesmente aperta sua mão. Não li o livro e posso estar dizendo coisas nem tão verdadeiras assim, mas uma das muitas curiosidades do livro é que o organizador Ingo Schulze mostra-se muitas vezes hostil, combatendo e denunciando Türmer. E, para que o diálogo se amplificasse ainda mais, Schulze pediu ao tradutor e escritor Marcelo Backes que escrevesse livremente suas próprias notas de rodapé, com liberdade para duvidar, desacreditar, ironizar e debochar da dupla de personagens-narradores. Ou seja, Schulze pediu a seu tradutor que fosse também um personagem. Detalhe: Schulze, que conhece Marcelo pessoalmente, não sabe português, e não pediu ao tradutor que mostrasse ou explicasse suas intervenções, deixou-o livre para fazer o que bem entendesse.

Backes relatou em sua palestra que escreveu 3% do que gostaria. Obviamente, mesmo que o autor o instigasse a participar de um jogo literário entre ficção e realidade, ele não se sentia bem em “participar tanto” de uma obra que é considerada um dos três maiores romances europeus da década. Além disso, há a próprio DNA do Backes tradutor, o DNA de alguém que não deve aparecer muito nem encher o saco do leitor com notinhas…, fato que muitos críticos apressados confundirão com pura loucura de um tradutor descontrolado.

Após a palestra, caminhei longamente com Backes e uma de suas irmãs até um bar. Nossos assuntos já eram outros, Ingo Schulze só reapareceu quando Marcelo falou das vacinas que tomou para acompanhar o alemão na Amazônia. Afinal, colorados que somos, estávamos preocupados com o fim-de-semana futebolístico, comentávamos as mulheres que passavam, as do bar, coisas assim.

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  1. Os processos

    A notícia chegou em Prenzlau como no mundo inteiro, mas Wolfgang estava entretido na pequena reforma nos banheiros dos quartos da Pension Sonnenschein. A alta temporada deixara inúmeras depredações, e o fluxo turístico, embora limitado, para o ano de 1989, fora surpreendente, prenunciando, quem sabe, a reintegração da Alemanha, mas Wolfgang não cogitava nessas coisas, apenas em Thèrese, em meio a imprecações contra os malditos visitantes do oeste, em número que bastou para estourar com os canos, entupir esgotos, arrancar azulejos, danificar louças, um horror.

    Thèrese. Com seus vinte e cinco anos, Wolfgang pensava em se casar, mas a jovem de vinte anos só queria saber de ouvir rock’n’roll e ele, por fidelidade ao homônimo, freqüentava, quando podia, concertos de música erudita. Não apenas Wolfgang não tolerava a música ocidental, mas também ou inúmeros agentes da Stasi, dois deles os principais distribuidores de novos discos do gênero em toda a região. Estavam fechando o cerco, e em breve todos seriam enquadrados, caso as coisas seguissem no velho e lento ritmo da RDA.

    Às dezoito horas encontrou a namorada radiante, contando-lhe as novidades. Enfim, os ventos mudavam de direção!

    A lentidão terminou naquele Novembro. Na alta temporada, o fluxo de ocidentais, que já não era pequeno, foi recorde, para a felicidade de Wolfgang, cujos serviços de pedreiro ganharam remuneração extra, principalmente pela abertura de mercado. Thèrese hesitava, via toneladas de discos de todo gênero empestearam as lojas em Berlim, a poucos quilômetros de Prenzlau, mas uma cidade onde não valia a pena viver. Hoje, mesmo Thèrese, antes tão subversiva, olha-se com desconfiança para as novas vitrines, cheias de artigos, porém caríssimos, impossíveis de comprar.

    Na Igreja de St. Marien, onde se casaram, Wolfgang e Thèrese, em Novembro, no primeiro ano de aniversário da queda do Muro de Berlim, os noivos sentiam a vaga da Ostalgie no ar: o tom lamentoso daqueles que não podiam mais estender as horas para cumprir suas tarefas, agora todas urgentes e inadiáveis. A pequena cidade de menos de vinte mil pessoas convivia com a superlotação turística, e os visitantes demandavam naquele mundo antigo o mundo novo com suas instantaneidades e virtualidades.

    Na reformada casa de Wolfgang e Thèrese, as paredes foram decoradas com centenas de fotos, todas apanhadas nas ruas, de pessoas que lançavam ao lixo as antigas lembranças do chamado socialismo real. Pouco tempo depois, antes mesmo do nascimento do primeiro filho, Georg, as paredes estavam nuas. As fotos foram todas vendidas aos turistas. Em uma das molduras que sobreviveram, Wolfgang expunha a primeira nota de marco alemão ocidental ganha por ele, qual moeda número um do Tio Patinhas. O euro viria, mas devagar. É preciso respeitar os processos.

    1. Marcos, esse é fodidão
      porque sabemos que
      NEM OURO QUE RELUZ É TUDO.
      Desta maneira,
      sempre vem alguém nos visitar…

      SENHOR DOS SOBEJOS
      by Ramiro Conceição

      Quem é este senhor que aparece,
      sem convite, sem confetes,
      mas sempre com sobejos,
      sem beijos e com migalhas
      de alegrias dentro da sala?
      Ah, sim… Parece que o reconheço
      de alguma memória perdida na história…
      Ah, sim… ― Bem-vindo, senhor medo!

      PS.: “NEM OURO QUE RELUZ É TUDO” é um aforismo que inventei – daquele outro famoso e capitalista “nem tudo que reluz é ouro” -, e que acabou virando um poema que já publiquei aqui, neste Blog.

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