Continho Realista da Impotência

A empresa onde Paulo trabalhava ganhara uma licitação para reformar e ampliar uma escola da periferia de Porto Alegre. Era um trabalho que ele, um homem de esquerda, preocupado com as questões sociais, gostava especialmente: construir escolas e casas em comunidades carentes. Houve uma reunião com a diretora. Ela parecia exultante por haver finalmente obtido a verba para a construção de mais cinco salas e por ter, diante de si, alguém preocupado em realizar um bom trabalho. Era uma valorização para a escola e para a atividade de todos sob sua gestão. Acompanhado por ela, Paulo conheceu toda a escola e acertou os horários em que os pedreiros poderiam fazer barulho, pondo abaixo algumas paredes e preparando as fundações para a ampliação. Era uma obra simples para ele, acostumado à sofisticação dos condomínios e edifícios de alto luxo.

Após o encontro, Paulo saiu da escola e procurou uma ferragem nas redondezas. A experiência ensinara-o a fazer um acordo com algum dos pequenos comerciantes próximos. Afinal, sempre faltava alguma coisa miúda. Se a empresa normalmente mandava entregar o cimento e as tintas, esquecia-se de enviar pregos, pincéis e outros materiais menos onerosos. Ele encontrou o que precisava a uns cem metros da escola. Pediu para falar com o proprietário do estabelecimento e, quando este veio lá do fundo, conversaram no balcão de atendimento.

O acordo foi fechado rapidamente e o comerciante apresentou-lhe o filho, que era quem ficava a maior parte do tempo atendendo o público. O chefe de obra poderia retirar material até determinado valor, assinaria um recibo e Paulo, ao final de cada semana, pagaria a ferragem. O nome do proprietário era Fernando, “Seu” Fernando, e o do filho, Fernandinho. Todos os conheciam assim no bairro. A conversa não demorou cinco minutos.

Quando Paulo estava despedindo-se deles, dois jovens, um negro e um branco, com armas na mão, adentraram aos gritos no estabelecimento, exigindo o dinheiro que o comerciante tinha em caixa. “Todo mundo parado, queremos toda a grana!”, gritavam eles. Um deles ficou na porta e o outro se aproximou do dono da loja, quase ao lado de Paulo. Seu Fernando começou a bravejar reclamando daqueles filhos da puta que volta e meia entravam ali. Abriu a gaveta de dinheiro e deixou duas notas de cinqüenta reais sobre o balcão, dizendo que estava bom assim. O garoto chegou-se ao balcão e quase encostou a arma  no rosto do comerciante, berrando com ainda maior veemência:

— Eu quero toda a grana que tem nesta merda! Não faz falcatrua com a gente, senão eu te furo, véio!

O comerciante, vendo a arma próxima a seu nariz, empurrou-a para o lado com a mão direita, com ar agastado e até calmo, como se estivesse acostumado àquilo. O garoto voltou rapidamente à posição inicial e deu-lhe um tiro, pegando rapidamente mais alguns reais na gaveta do caixa e sumindo com seu companheiro. Paulo levou o ferido em seu carro para o pronto-socorro. Fernando e Fernandinho filho foram no banco de trás; o silêncio deles, em oposição ao som da buzina de Paulo pedindo passagem e furando sinais, demonstrava que seria tudo inútil. Quando Paulo os procurou no espelho interno do carro, viu Fernandinho com lágrimas nos olhos, olhando pela janela. Seu pai não era visível, devia estar com a cabeça no colo do filho. A bala tinha entrado no pescoço de seu pai, sufocando-o. Após o médico confirmar a morte, Paulo foi para casa. Horas depois, indignado, deprimido e com o carro todo ensangüentado, foi depor na polícia.

Enquanto depunha, foi interrompido pelo policial.

— Acho melhor o Sr. não dizer que pode reconhecer o assassino. Aliás, acho melhor o Sr. ficar fora dessa.
— Por quê?
— Veja bem, os familiares da vítima já vieram aqui. Disseram que não viram quem matou o velho.
— O filho dele esteve aqui?
— Sim.
— Fernando?
— Sim, ele mesmo, com a mãe.
— Mas como? O filho estava junto! Ele viu!
— Meu amigo, eles vivem daquele comércio; os matadores moram no bairro. Se denunciam, os próximos serão eles, entende? O mesmo pode acontecer com o Sr., que vai trabalhar na escola ali perto. É uma temeridade se meter numa confusão dessas. Melhor não se apresentar como testemunha. É perigoso. A escolha é sua.
— E o trabalho de vocês?
— Nós mal temos gasolina para buscar os presuntos, que dirá para fazer investigações.

Paulo refletiu sobre o que o policial lhe dissera, pensou em sua família e perguntou:

— O que devo fazer então?
— O senhor não é o Batman e eu não sou da polícia de Los Angeles.
— …
— Se fosse o senhor, eu me retiraria agora enquanto eu rasgo esta folha. É para a sua própria segurança.

Dias depois, voltou à escola. No tecido cinza do banco de trás de seu carro ainda estavam as marcas deixadas por uma lavagem mal feita. O resto parecia limpo. Muito limpo, disse Paulo para si mesmo. À saída, Paulo hesitou entre voltar à ferragem para renovar o acordo, procurar outra ou deixar o assunto para depois, quando ouviu alguém lhe chamar.

— E daí, chefia? — Paulo tremeu ao reconhecer o sotaque do assassino.

Mas era outro garoto, muito menor.

— Não sai um ginásio de esportes aí pra nós?

Sorriu para o menino e respondeu:

— E o dinheiro?
— O governo tá sempre inaugurando algum ginásio poli-alguma-coisa-da-porra nos outros bairro…
— Bom, isso realmente não é comigo.
— E o que é contigo?
— Eu não sei o que é comigo.

6 comments / Add your comment below

  1. Conto sobre algo que deve ser constante, imagino…
    Aliás, meu primeiro comentário aqui. Leio há um bom tempo e te sigo lá pelo Twitter também. Parabéns pelos escritos!

  2. Seo Milton,

    Essa expressão “Não faz falcatrua com a gente” / “com o tio”, o sr. aprendeu em experiência própria, pois não?

    No mais, triste de ver essa realidade…

  3. Esta (não)ficção, contada secamente, desperta indignação. Mas escuto aqui ao lado alguém que me pergunta:
    – Indignado, chefia?
    Ao que respondo:
    – E o que vai fazer?
    – Sei lá… não é comigo.
    – E o que é contigo?
    – Eu não sei o que é comigo.

  4. Vejo aí influências do Desonra e do estilo do Coetzee!

    Depois do Casoy, daquele post memorável sobre o assassinato de um sem terra assepticiadamente ignorado por uma promotora, entre outros, aqui e ali, vejo o que só aparece nos blogs: a velha indignação que a imprensa impositiva abafa. O Brasil africano se expande a cada dia, mostrando a crueza de nosso subdesenvolvimento por sob o verniz da “civilização”. Um amigo meu aqui sofreu uma batida em seu carro de um policial militar à paisana que dirigia bêbado, o policial saiu do carro com arma em punho e ameaçou meu amigo e sua família. É revoltante o que a corporação da PM fez para inverter os fatos do acidente no boletim de ocorrência e colocar o policial indiciado como vítima: um elemento que já teve arquivado vários processos por abuso de poder e lesão corporal. Meu amigo conta a série de visitas “cordiais” que teve de policiais, todos com o apelativo “deixa disso homem, pode ser perigoso para você e sua família”.

    O que me resta fazer, agora que já não vivo mais com a porraloquice de não ter o que perder (já tenho dois humanos que amo imensamente e dois cães que são as amarras firmes de minha humildicização compulsória), é desviar do conflito e fazer uma paz em separado. Quem sou eu para tentar reação contra uma estrutura histórica e cultural centenária. Intimamente agradeço a Deus por não ter conspirado para que eu quebrasse a promessa de nunca ser policial, bancário ou advogado. Consciência limpa, e sem nome o nos jornais!

    1. …embora no fundo tenha por lema uma passagem do Faulkner em Intruder in the Dust: há momentos em que você deve se negar terminantemente a se calar; há situações em que você deve sempre falar não, mesmo se lhe bajularem com seu nome nos jornais, uma conta no banco etc.

      1. Só mais uma coisa: já não aguento olhar aí acima a foto desse grande alicerce da jurisprudência brasileira, o Gilmar Mendes. 91 dias, 06 horas, 52 minutos e 31 segundos faltando. Mas… quem será o próximo? A desgraça de um país como o nosso, em que estamos obrigados ao confinamente, é que tudo se relaciona, no pior nível.

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