Esta é minha segunda leitura desta novela de Turguêniev. Quando a li pela primeira vez, era um adolescente de uns, talvez, 15 anos, e o livro me causou forte impressão. A história é a mais simples possível: Vladimir Petróvitch, um jovem de dezesseis anos, apaixona-se pela filha do seu vizinho, a bela Zinaída, alguns anos mais velha e a quem não faltam pretendentes. O final é surpreendente não pela escolha de Zinaída, mas por seu realismo e violência.
Turguêniev faz parte do intocável G5 dos russos do século XIX: Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov e Gógol. É o mais europeu do grupo e sabe levar uma narrativa como poucos. Sua Zinaída é perfeita e serviu de modelo para muitas personagens semelhantes que a seguiram – trata-se da irresistível e bela mulher, atrás da qual há uma multidão de homens servis e alguns adolescentes que não conhecem o significado da palavra inatingível. Estes sentem medo, vergonha, adoração, devoção e coragem, tudo em paroxismo e às vezes ao mesmo tempo…
A novela, narrada na primeira pessoa por Vladimir, é uma obra-prima psicológica e talvez sua autodescrição deste seja o melhor do livro, apesar de que é impossível ao leitor não se apaixonar pela louquinha e coquete Zinaída. Mas o que é efetivamente interessante é a construção lenta e alegre de uma trama que repentinamente despenca sobre nossa cabeça. Turguêniev é um mestre e mereceu a sorte de ter sido traduzido por Tatiana Belinky neste pocket da L&PM. Uma joia.
Me sinto mais próximo de Bazarov, o niilista humanista de Pais e Filhos, do mesmo Ivan Turguêniev que, além de tudo, era médico como o querido Tchékhov (o personagem bazarov, não o Turguêniev). Escrito do ponto de vista de um russo residente na Alemanha, o niilismo em Ivan Turguêniev não vai pelo caminho dostoievskiano de Os Demônios (ou Os Possessos), quase um autoexorcismo de Dostoiévski, então avesso ao seu passado esquerdista mais radical (embora ele tenha sido, apesar de seu monarquismo, uma espécie de socialista russo, e até morrer). Este conto/novela Primeiro Amor é singular por começar lírico e bucólico, mas finalizar de maneira soturna, como se à primeira hora da manhã o sol viesse cálido para iluminar com técnica impressionista a paisagem, as pessoas e seus sentimentos, e no final do dia rompesse uma tempestade dos infernos, com graves consequências morais. Turguêniev é estranho; poderia ser, sobretudo, um autor superficial, marcado pelo ocidentalismo, mas seus livros vão em sentido oposto às opções de sua vidinha besta. Por isso não podemos amá-lo como a Tchékhov, nem admirar sua coragem como fazemos com Dostoiévski, sequer a radicalidade pessoal absurda de um Tolstói um tanto avessa à opção pelo “classicismo” literário.
Disso tudo chego a uma conclusão: esses amantes de livros são criaturinhas demasiadamente afetadas!
Pais e Filhos é um grande livro, cheio de qualidades e de uma síntese aparentemente impossível até a chegada de Tchékhov.
Afetados, nós? Não, só cheios de charme intelectual…
Cheios daquele ar intelectual FORA DE MODA!
Ser fora de moda não tem problema, porque está na moda, embora o paradoxo, paradoxalmente, esteja fora de moda, com o que o intelectual também; sua posição, então, talvez seja a do tal olho do furacão, lá, paradinho, vendo o mundo dar voltas a 500 por hora, se desfazendo em virtualidades que impedem a visão da relatividade última de todas as coisas, adeus catastrofismo inerente a uma visão que se quis crítica, mas é apenas apocalíptica com toda sua gênese religiosa.
Pô, mas que trolha é essa?
Catralho, que trolha, Marcos!
Com esse seu resgate, Milton, senti-me imperiosamente motivado a ler obra. Comprei esse mesmo pocket da L&PM em 2008, mas até hoje nunca cheguei a ler. Está na minha estante com as minhas centenas de livros. Um desafio ler neste tempo de internet e informações voláteis que se dissipam e surgem a todo momento.
Obrigado por ter resgatado a minha memória. Já o separei. Apesar está lendo O vermelho e o negro de Stendhal, não escusarei a possibilidade de ler Primeiro Amor.
Abraços!
Na minha opinião, vale o investimento de tempo. Uma sentada de duas ou três horas, quiçá menos, ou uma deitada sem dormir e está lido!
Abraço.
Bem, o que vem a seguir também fala de amor…
ANDARILHO DO CAOS
by Ramiro Conceição
Um filho
ensina
a gente
uma nova
geografia
sempre:
lá, onde existia um medo,
um brinquedo agora está;
cá, onde havia a malícia,
agora uma inocência há.
Ter um filho é se tornar um deus mortal,
um andarilho vital entre a Terra e o Caos.
Acabei de sair do tonél caledoscópico de Arco-ìris da Gravidade e vejo que necessito de algo menos complicado. Li pouco Turgueniév_ Pais e Filhos, e Ronin_, e a escassez de títulos desse autor por aqui mostra o quanto ele é injustiçado. Lembro que Hemingway o tinha como o melhor autor russo_ uma espécie de sua encarnação passada_, e para ele os Contos de Caçador tem as mais genuínas representações do gênero. Sempre quis ler esse volume de contos, mas nunca o achei em nossa língua.
Aliás, não sei se alguém aqui leu Ronin, cujo personagem do título é um intelectual da alta roda que despreza o casamento. Li esse romance há uns vinte anos, e nunca mais o achei nas livrarias, mas muitas cenas se conservam em minha memória. Os diálogos, então, me deixaram perplexos. Mas já que a tendência sempre é de tergiversar, constato agora que mesmo em Ronin, uma obra menos conhecida de Turgueniév, há as informações subvernientes por detrás da aparência inofensiva da história, o que me remete ao Arco-íris da Gravidade, onde Thomas Pynchon radicaliza fazendo o mesmo que o velho russo, mostrando realidades não tão veladas que afloram sobre o lixo e a pasmaceira cotidiana.
O que pretendo dizer é que Turgueniév tinha para destrinchar os fogos fátuos das transformações que estavam para mudar tanto a Rússia quanto todo o resto do mundo, nos campos filosófico, histórico, político, feminista ( talvez o tema de Ronin, não sei se posso confiar plenamente na interpretação de um rapaz de 16 anos), daqueles idos tranquilos cheio de presságios do século 19; e era o que fez tanto mais em Pais e Filhos, com sua análise sutil da ruptura das tradições familiares para a imersão numa moderna concepção niilista da existência pelo prisma da ciência ( Ivã Karamazóv explicando a seu irmão Aliócha o que aprendeu com seus estudos na avançada europa, que tudo não passava da produção elétrica de fios nervosos que atravessavam por todo nosso corpo).
Depois de cem anos, Thomas Pynchon faz a mesma coisa, mas já sem presságios para analisar, pois o futuro vívido e o niilismo brutal já domina a nova roupagem da realidade. Turgueniév criou o termo “niilismo”, para tentar moldar as ideias deslumbrantes que povoavam as imaginações dos europeus sobre os caminhos da humanidade; Pynchon já não tem esse conforto, o que ele tem de explorar é uma zona original, sem pistas, o herdeiro direto da viagem ao inferno e a constatação desanimadora que afinal antigos espíritos superiores como Lúcifer já não dão a mínima importãncia para o homem. O homem de Pynchon é um Adão num Eden de escombros, com logomarcas do Mc Donalds e da Coca-Cola, coisa que nas sombras insurgentes do mundo de Turgueniév jamais poderia-se ter uma visão tão pessimista.
Vi também esse novo niilismo no soberbo romance A Insustentável Leveza do Ser (olha só como é o preconceito, adiei a leitura de Kundera por o achar, não sei por que, um Jorge Amado theco). No final desse livro, há a forte impressão de que não há mais o que fazer, a não ser a uma contemplação budista do fenecimento através da maturidade do casal Thomas e Tereza, e da morte da cadela Karenina.
Rapaz, que coincidência! Tenho até hoje essa idéia (Kundera como um Jorge Amado tcheco!). O livro vale a pena mesmo?
Fernando, meu velho, não sei quanto aos outros títulos do Kundera, mas a Leveza é uma dessas leituras que fica com você para sempre. O livro tem aquela beleza atordoante dos pátios desertos de final de tarde, aquela verdade inassimilável de que a mulher sofrida e sem atrativos que passa por você no sentido oposto da calçada é a mesma que vc jamais saberá ser o seu mais antigo amor da infância. Kundera reduziu todos os artifícios da prosa aos elementos básicos, como se escrevesse com uma maturidade cansada e eficiente, e assim discorre sobre Nietzsche, sobre a morte do perdido filho de Stalin, sobre as rugas que perfilam as energias das infidelidades, até nos lançar nas últimas páginas totalmente esgotado afim de vermos a humanidade dolorosamente poética do título. Sem exagero, chega a ser quase insuportável a beleza do final.
Ah, Fernando…lembrei que meu interesse por Kundera foi despertado após ler a entrevista que Philip Roth fez com ele, no livro “Entre Nós” (também magnífico).
Ah, Charlles, conseguiste despertar em mim uma grande curiosidade para conhecer esse livro. Vou dar uma chance a ele. Obrigado.
Caro Milton, você se esqueceu de um autor russo fundamental: Leskov! Esse sim é injustiçado. De Turguênev as pessoas até ouvem falar, mas não de Leskov. E olha que era o favorito de Walter Benjamin. Ele, curiosamente, já profetizava o ostracismo de Leskov, dizendo que ele era propositalmente esquecido por “simplesmente dizer a verdade”.
Mas que Turguênev é subestimado, com certeza é. Inclusive, Charlles, o Harold Bloom também adora essa coletânea de contos.
De qualquer modo, Milton, agradeço a recomendação e a resenha; entrará na minha lista de livros. Vez que observo rigorosamente a ordem de chegada, daqui a uns 2 anos vou dar meus palpites sobre esse Turguênev, ok? 😀