Morre José Saramago (1922-2010)

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“No fundo, não invento nada, sou apenas alguém que se limita a levantar uma pedra e a pôr à vista o que está por baixo. Não é minha culpa se de vez em quando me saem monstros”.

Morreu nesta sexta-feira o escritor português e prêmio Nobel de literatura José Saramago, aos 87 anos, em Tías, Lanzarote, Espanha. Dia triste, tristíssimo para todos os amantes dos livros, da literatura e das ideias. Faleceu em casa.


Reproduzo aqui o texto de Luiz Schwarcz para o blog da Companhia das Letras.

Saudade não tem remédio

Acabo de ver o escritor José Saramago morto. Quando a notícia apareceu na internet, liguei pelo skype para Pilar, que sem que eu pedisse me mostrou José deitado na cama, morto. Tenho falado com Pilar quase todos os dias. Sabia que não havia chance de recuperação, o destino de José já estava traçado, os médicos não acreditavam mais na possibilidade de um novo milagre, como o do ano passado, quando venceu, contra todas as expectativas, os problemas pulmonares que o acometiam.

Posso dizer que José Saramago era um grande amigo meu e da minha família. Quando vinha ao Brasil hospedava-se em minha casa, no quarto que foi da Júlia, minha filha. Ele detestava hotéis. Viu meus filhos crescerem. Fui conhecer sua casa em Lanzarote logo que se mudou com Pilar, abandonando Portugal. Assisti emocionado a cerimônia do Nobel em Estocolmo — pouco antes, no hotel, aprovamos, Lili e eu, o vestido de Pilar para o evento. Estava em Frankfurt quando ele recebeu a notícia do prêmio; celebramos juntos.

A obra de Saramago veio para a Companhia das Letras por acaso. No fim da feira de Frankfurt de 1987 (no segundo ano de vida da editora), ao me despedir de Ray-Gude Mertin, uma amiga pessoal e agente literária de muitos autores brasileiros, comentei que José era dos meus autores favoritos. Conversa à toa, de fim de feira. Não fazia ideia de que ela representava o escritor português, junto com a editora Caminho, e que estava para mudar Saramago de editora no Brasil. Atrasei minha partida e voltei, com a bagagem no porta-malas do táxi, para falar com Zeferino Coelho sobre a Companhia das Letras.

Foi tudo muito rápido, Jangada de pedra foi o primeiro livro, lançado em abril de 1988 com a presença do autor no Brasil, junto com Pilar, jornalista que conhecera em 1986 e que mudou tanto a sua vida. A empatia foi imediata, apesar da minha gafe inicial —perguntei-lhe em plena praia de Copacabana se era verdade que, em Portugal, Psicose, de Hitchcock, fora intitulado O filho que era mãe, e Vertigo, A mulher que morreu duas vezes.

Em seguida fui a Lisboa. Já éramos bem amigos, ele queria me mostrar o novo livro que escrevia. Em sua casa, na rua dos Ferreiros à Estrela, José leu trechos de A história do cerco de Lisboa, e me levou para jantar no seu restaurante favorito, o Farta Brutos. Pilar foi minha guia de Lisboa na ocasião, reservou o hotel num velho convento na rua das Janelas Verdes, e mostrou os locais que aparecem no meu livro favorito de Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis. Comprei com Pilar o primeiro computador de José. Antes disso, ele datilografava três vezes cada livro para entregá-lo completamente limpo a seus editores.

No Brasil, o lançamento de Jangada de pedra foi uma festa interminável. Filas enormes na livraria Timbre e a efusão de beijos e abraços no escritor fizeram-no exclamar, “Luiz, esta gente quer me matar de amor”. Daí para frente, esse amor dos brasileiros por José Saramago só cresceu, suas visitas se tornaram mais frequentes, e vários dos últimos livros lhe ocorreram em viagens pelo país, nas quais estávamos juntos. Lembro-me ao menos de três ocasiões em que isso aconteceu. A mais recente delas foi em sua última estada no Brasil, quando da publicação de A viagem do elefante, livro que José resolveu lançar mundialmente aqui, em novembro de 2008, como presente ao carinho e aos amigos brasileiros. Ele já estava muito fraco, e a viagem era mesmo uma ousadia. Ao chegar em minha casa, numa das nossas primeiras conversas, me disse que não escreveria mais, estava se sentindo velho e cansado.

Depois do evento de lançamento no SESC Pinheiros, vencida uma fila enorme de autógrafos — Saramago nunca recusava autografar, nem mesmo doente —, fomos ao Rio, para a continuidade dos eventos. Ao pousarmos na cidade, enquanto eu recolhia as bagagens, José anunciou, para Lili, Pilar e eu, que decidira voltar a um velho projeto e que no voo achara a solução que faltava para Caim, que acabou sendo seu último livro.

Eu poderia contar outras tantas histórias aqui. Poderia até falar das nossas discordâncias, de uma discussão amigável que tivemos, sentados no alto do Bauzinho, em São Bento do Sapucaí, olhando para o horizonte da Serra da Mantiqueira, que nós dois adorávamos. Mas o espaço é curto: um blog, mídia que Saramago curtiu muito antes que eu. Em outro momento, quem sabe. Agora só quero me despedir mais uma vez de José. Com as melhores lembranças, o amor, e minha saudade. Maldita palavra, tão portuguesa, que agora ficará associada ao meu amigo. Mas saudade não tem remédio, não é, José?

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32 comments / Add your comment below

  1. Nessas horas é interessante comparar o que cada um fala sobre o assunto, vejam o primeiro parágrafo da notícia no New York Times:
    Jose Saramago, who became the first Portuguese-language winner of the Nobel Literature prize after seeing his popularity at home dampened by his unflinching support for Communism, blunt manner and sometimes difficult prose style, has died at 87, his publisher said Friday.

    Ou seja, diz que ele teve sua popularidade na terra natal limitada pelo seu suporte ao comunismo, personalidade grosseira e estilo de prosa às vezes difícil.

    O que me espanta é a antipatia do NYT até na hora da morte!

    Aposto que quando o Paulo Coelho morrer, só vão falar bem dele.

    1. Na premiação do Nobel ao Saramago, o mesmo informativo comparou o português à Madona e outros do show businnes envolvidos em causas sociais. Minha esposa defendeu uma tese acadêmica de contraposição dos romances “O Ensaio Sobre A Cegueira” com “Os Cus de Judas” (esse do Lobo Antunes). Foram dois anos de prazer e comprometimento em que liamos juntos o máximo do Saramago, e saíamos procurando todo tipo de curiosidade sobre esse escritor. Acabamos apaixonados pelo Saramago. Citávamos frases um para o outro na hora do almoço, esnobávamos da prematuridade incipiente do primeiríssimo romance de Saramago, o “Terra do Pecado”, reconhecíamos as diferenças de nossos títulos preferidos (eu prefiro o “Ano da Morte de Ricardo Reis”, ela o “jangada de Pedra”), admiramos juntos a exímia educação do Dario Fó, que mandou um pedido singelo de desculpas a Saramago por ele ter ganho o Nobel, e não quem realmente merecia (tá lá num tocante texto de “Cadernos de Lanzarote”). Liguei para a Dani assim que li isso aqui e lhe contei. Ficamos ambos tão tristes que revela o quanto o amor está centrado em um contato espiritual que vem da escrita de alguém que nunca vimos, mas que conhecemos tão bem. O Nyt, ao se posicionar assim, revela mais de seus articulistas do que a verdade desse grande português que faleceu hoje.

  2. Gostava de Saramago, mas a maldição do Nobel caiu sobre ele, fazendo-o crer que suas palavras ganharam enorme dimensão, de forma que, a partir de dado momento, cabia-lhe proferir juízos definitivos sobre tudo, e escrever romances que deixaram de ser literatura e passaram a ser panfletos em defesa de pontos de vista para ele inatacáveis sobre a sociedade, e sempre com acento apocalíptico, como o Ensaio sobre a Cegueira.

    Ainda gosto de Saramago, mais pelos seus livros anteriores ao Nobel, com uma coisa aqui e outra ali depois. Só não entendo como alguém pode sair de Portugal para morar em uma ilha inóspita, e além de tudo espanhola. Vai ser turrão assim lá no Olimpo, caraças!

        1. Marcos,
          um jornal aqui de Poa reproduziu uma entrevista dele na Folha em 1999 (única parte boa da reportagem) onde ele comentava que um Nobel sempre passava a ser considerado um homem que tinha opinião definitiva sobre tudo. Esta era a parte ruim do prêmio e tirava-lhe um pouco a liberdade.
          Sim ele era turrão. Joyce , Becket, Salinger não?
          Nesnta mesma reportagem sai, em tom de crítica, uma frase sua que não conhecia:
          Eles (os israelenses) não aprenderam nada com o sofrimento de seus pais e avós.
          O troncha chamou isto de anti-semita. Eu achei um puta homenagem aos judeus (os não sionistas) ao colocar um patamar diferente de discussão.
          Branco

    1. Marcos
      Sobre o “Ensaio…”, só um comentário. Fui ler preparado para não gostar. Havia lido que era alegoria forçada, panfletário. Mas me supreendi página à página. A verdade é que os personagens me comoveram. Fiquei profundamente envolvido, estava ali com eles, interessava-me verdadeiramente pelo seu destino.
      Coisa que não consegui sentir em um livro muito melhor escrito, com virtuose narrativa, como Memorial do Convento.

      Estou triste, bem triste.

  3. “Estamos afundados na merda do mundo e não se pode ser otimista. O otimista, ou é estúpido, ou insensível ou milionário” – Saramago.

    Parece-me que um Nobel tem muitas finalidades e em minha humilde opinião a mais importante é a visibilidade ao ganhador e por que não usar essa visibilidade para causas importantes?

    Marcos… já esteve nas ilhas canárias? Minha irmã esteve lá no ano passado e amou… ela diz que o lugar é a minha cara… que com certeza amaria morar lá :-)… ela me conhece hehe
    http://www.orkut.com.br/Main#Album?uid=9532510089592842356&aid=1241420088

    1. Saramago foi o único escritor que se manifestou contra o “paredon” feito por Fidel, onde se executou dissidentes intelectuais ao regime de Cuba. Foi à tv e rasgou sua carteirinha de décadas de filiação ao partido comunista. Suas atitudes, antes ou pós nobel, a mim parecem muito coerentes e independentes. Sobre Lanzarote, numa matéria de uma revista vi o quanto essa ilha tem uma beleza árdua e natural, que a mim agradaria bastante, ainda mais na casa confortavel que Saramago morava. Lembrando também que “O Ensaio Sobre a Cegueira” foi escrito ANTES da premiação de Estocolmo, e sua função de parábola moralista não serve a nenhuma visão apocalíptica, antes pelo contrário, já que os cegos recuperam-se da cegueira e se prestam à construção de um posicionamento social trasnformador, como se pode constatar na sequência “Ensaio Sobre a Lucidez”, em que a mesma personagem principal se embrenha em uma revolução silenciosa de boicotar as eleições nacionais.

      1. Correções:

        1) Saramago se posicionou contra recentes execuções em Cuba com uma frase mais ou menos assim “Até aqui cheguei”, isso depois de, no Roda Vida da TV Cultura, declarar ter Fidel como um de seus heróis; portanto, menos tijolo e mais barro;

        2) Correto, me confundi, porque num livro posterior (o tal Ensaio sobre a Lucides) a mesma personagem do Ensaio sobre a Cegueira é assassinada depois do Estado ocupar totalitariamente uma nação que se negou a votar nos candidatos de sua fraudulenta democracia – é este o livro de pregação, mas não o único, posteriormente escrito.

        3) Não queria lembrar, mas Saramago, num cargo qualquer do primeiro governo pós-revolucionário português se dispôs a examinar matérias e livros para CENSURA PRÉVIA. Não é acusação vazia; ele mesmo defendeu sua posição posteriormente, defendeu-a e justificou-a.

        No mais, cada um tem sua leitura sobre livros, fatos e sobre a própria vida, é claro. E eu continuo deplorando canonizações.

        1. Sobre Saramago rasgando a carteira do partido, veja no Youtube, deve ter lá. Não vi a declaração citada sua no Roda Viva, e a acho uma incógnita, visto o taxativo repúdio do autor contra Fidel, na ação mencionada acima.

          Sobre seu iten 3, fiquei curioso, mas não vou pesquisar no Google, por achar também improvável, pois sei que após a Revolução dos Cravos, o poder instituído fez foi fechar o jornal para o qual ele escrevia, o atirando na rua. Apartir de então que ele se recusou a tudo e se concentrou em ser escritor. Saramago censor? Esta é de matar. A não ser que seja um Saramago estilo o sósia de Philip Roth em Operação Shylock, pois basta ler sua peça “A Noite” para saber que seu posicionamento avesso à dita revolução não compartilharia com esta hipótese.

      1. Saramago reproduz o ambiente de transição ambigua, semelhante à fase final da ditadura militar brasileira, que foi o período mencionado. “A Noite”, como toda produção teatral dele, é menor que a de seus reomances, mas escxlarece.

  4. Saramago descobri quase que por acidente, em 1988, ao abrir A História do Cerco de Lisboa num sebo e , dada a minha ignorância e presunção, espantar-me de autor tão bom não ser conhecido entre nós. Depois de ler O Memorial do Convento em seguida, conversei com o Milton e ele contou-me sua história. Desde aquele ano já gostaria que ele ganhasse um Nobel.
    O texto dele sobre o Fidel foi uma das mais significativas contribuições de um intelectual pragmático. o “até aqui cheguei” mostra-nos sua caminhada e coerência.
    Por fim, Milton, sim é um dia triste para nós, mas um dia ambíguo. Dada a sua inevitabilidade, a dignidade com que ocorreu nos consola e faz-nos inveja.
    Branco
    PS.: Putz, ficou meio barroco? Não revisei

    1. “Dada a sua inevitabilidade, a dignidade com que ocorreu nos consola e faz-nos inveja.” Disse tudo Branco. O barroquismo acidental deve ter sido uma homenagem inconsciente.

    2. Eu não ligaria de queimar no tal mármore do inferno por essa inveja.

      Meirelles disse tudo: “A lucidez naquele grau é um privilégio de poucos, não consigo escapar do clichê, mas definitivamente o mundo ficou ainda mais burro e ainda mais cego hoje”.

  5. Porque hoje é dia cinza. E daí que Saramago era comunista? Continuo a respeitar os comunistas, suas convicções e contradições. Acredito na solidariedade, numa sociedade solidária que faça justiça social, mas não suporto naufragar na utopia. Recuso a enxergar apenas o determinismo de uma história que ainda não aconteceu e tecer reflexões amarguradas e ressentidas sobre os fatos da vida. A convicção comunista de Saramago é apenas uma folclórica característica de sua personalidade. Admiro a maneira como ele enfrentou os dogmas da Igreja Católica, bem como suas inovações na escrita, sua forma de escrever que prende e encanta o leitor, muitas vezes passava por cima dos pontos, das vírgulas, das maiúsculas, das exclamações e interrogações, de certas regras rígidas que devem ser quebradas. Ficamos – sim – um pouco mais cegos com a morte desse ‘moleque’ inovador chamado José.

    1. “A convicção comunista de Saramago é apenas uma folclórica característica de sua personalidade”. Como é que alguém pode dizer uma bobagem tão grande? Difícil comentar… Ainda bem que o velho não pode mais ouvir (acho).

  6. Texto que escrevi no meu blog sobre a morte de Saramago:
    Saramago ou simplesmente José

    A morte não foi intermitente com José Saramago. Ela, a indesejada das gentes, que em um dos romances do escritor decidiu parar de agir, resolveu agora nos levar o gênio. Como ele mesmo escreveu uma vez, “somos uma pequena e trémula chama que a cada instante ameaça apagar-se”. A chama, ou o lança-chamas, apagou-se. Já disseram que o mundo ficou mais burro nesta sexta-feira. A cegueira vai continuar, a lucidez vai diminuir, vamos continuar presos na caverna.

    As mentes pequenas, que não aceitavam um contestador como Saramago, hoje se regozijam. Livraram-se do incômodo. Será? Creio que não. Seus livros estão aí, cada vez mais se multiplicando, como a cegueira do seu romance adaptado para o cinema. Continuarão chegando a todos os continentes, tal qual a jangada de pedra que se desprendeu do continente europeu. Ele continuará incomodando por muito tempo ainda.

    Saramago, um “ser amargo” para alguns, que não esquecerão O evangelho segundo Jesus Cristo, censurado pela Igreja Católica e pelo governo português, por mexer com um mito inatacável. “Ser amargo” para os acreditam em um deus bondoso, na verdade um deus sanguinário, desmascarado no mais recente livro, Caim. “Ser amargo” para quem não sai de um shopping center, uma caverna platônica dos tempos modernos. “Ser amargo” é dizer um não para a história oficial. “Ser amargo” para os burocratas, “ser amargo” para os políticos, “ser amargo” para a Igreja, religiões, padres, pastores. “Ser amargo” para os capitalistas e para os banqueiros.

    Mas “ser amargo” não é um defeito. Um ser doce não vê nossas idiossincrasias, não põe o dedo na ferida, aceita que tudo aconteça sem contestar e deixa os poderosos se perpetuarem. Um “ser amargo” nos deixa de olhos bem abertos, rói a cadeira do rei até ela quebrar.

    Ser amargo, sal amargo, Saramago. Ou simplesmente José. Que seus livros continuem jogando pimenta nos nossos olhos e nos guiando para sair da escuridão dessa caverna chamada mundo.

    http://cassionei.blogspot.com/2010/06/saramago-ou-simplesmente-jose.html#links

  7. Fiquei triste diante do inevitável. Gosto muito de ler Saramago, que sempre me surpreende pela “sadia obsessão” na abordagem dos temas de seus livros, com uma linguagem contínua como o pensamento.

  8. Talvez, agora, vai-se descobrir o gênio que era o Saramago. Mas ele verdadeiramente o era. Um escritor que sabia, como poucos, manusear as palavras, como se somente dele fossem dependentes e a ele somente as pertencesse. De um estilo único e inigualável, fez provocações ao homem, fazendo-o pelo menos pensar, principalmente sobre Deus e a igreja. Desse modo, Azinhaga, que era tão pobre quando por lá ele nasceu, herda suas lembranças póstumas e tão ricas. Sem este José, portanto, o mundo fica menos crítico, e sem este Saramago, fica mais cego e desassistido.

  9. Por que em nossa cultura o que é aparentemente conhecido é considerado banal? Por exemplo, na academia, se um livro é muito citado e já traduzido, e se alguém o utiliza como referência de argumentação, logo, quase imediatamente, é rebatido por um novo autor, geralmente pouco conhecido, e o defensor do velho livro é rápido-rapinamente considerado possuidor de magra bagagem intelectual e, por outro lado, o outro, o interlocutor aparentemente bem informado, logo, em seguida, ganha adeptos e, numa ladainha infernal, a discussão passa para um nível, dito e considerado, “mais elevado”.

    Quem não se lembra, por exemplo, há poucos anos, da lenga-lenga neo-liberal que, com todos os sons possíveis e inimagináveis, afirmava e jurava de pés juntos que o estado deveria ser o menor possível dentro de uma economia dita, então, sadia. Ai de quem argumentasse o contrário! Era considerado um troglodita diante da pungente economia global. O mercado era o novo deus que tudo regularizava. A lei da oferta e da procura era indiscutível e… blá-blá-blá-blá-blá-blá-blá-blá-blá.

    Porém, o que aconteceu? Viveu-se, e se vive a maior crise desde a quebra da bolsa, em 29. E qual a solução que está sendo, paulatinamente, tomada? A interferência do estado na economia para extirpar o câncer em que o mercado se degenerou.
    Note, a seguir, a minha afirmação quase infantil: tanto o remédio quanto a doença possuem como sujeitos – seres humanos! Óbvio, não?! Pois é, mas chegamos onde chegamos.

    Outro exemplo da nossa patologia: um ser insone liga a televisão numa madrugada e se depara com canais, que são concessões estatais, a dizer mais ou menos assim: “se você está, aí, com insônia, isso é um sintoma de uma possessão maligna…” – e continua o urubuzão da miséria – “…a tua presença agora aqui é a prova de que Deus quer interceder e mudar a sua vida repleta de derrotas afetivas, econômicas e… blá-blá-blá-blá-blá-blá-blá-blá-blá”. Em seguida segue uma sequência de testemunhos, cadeiras de paraplégicos, de pernas escancaradas ao vento, prontas pra foder com qualquer demônio. E num inferno que nem Dante imaginou, aparece um bando de protozoários do saco de Deus a dizer na voz de seu líder momentâneo – televiso: “… contra fatos não há argumentos!”.

    Pois é, ao pobre insone resta só tomar a última cerveja e evacuar belzebu – ex-amigo de Deus – numa interjeição: “Caralho!”.

    Porém, a maltrapilha LUCIDEZ teima ainda em vociferar: “Como é possível separar fatos de argumentos, se ambos são filhos de NÓS, definidos por nós – ditos, quase que malditos, seres humanos que não se compreendem! Óbvio, não?! Pois é, mas chegamos onde chegamos!

    Quer outro exemplo? Lembra do mensalão, onde o PT insano, quase que corrupto, fez o jogo destas mesmas oligarquias que sempre condenara? Pois é, o Partido ERROU!
    ERROU MESMO! Pois usou do mesmo veneno das serpentes que tanto combatera HISTORICAMENTE, por décadas. Mas onde errou?

    Esqueceu que seus lideres eram seres humanos – mesquinhos, ávidos pelo poder, muito mal resolvidos quando no papel social de autoridades. Sim, alguns dos nossos, ditos companheiros, têm seríssimos problemas com o simples corte de cabelo que não satisfaz a ordem, a autoridade do pai, interno, imaginário (o resto deixo pro Cláudio, muito mais competente do que eu neste campo…). Mas o que quero ressaltar é que em função de NOSSO ERRO, verdadeiras PUTAS históricas tentaram pousar na grande mídia como vestais. MAS SE FODERAM!
    Lula foi re-eleito e, com certeza, Dilma será a primeira mulher na Presidência do Brasil. PAU NA BUNDA DELES! MIL VEZES!

    Mas onde quero chegar com este tributo a Saramago?
    Se fosse possível agora estar diante de seu cadáver declamaria o seguinte agasalho poético:

    “É sempre melhor o impreciso que embala do que
    o certo que basta,
    Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba
    não basta,
    E nada que se pareça com isto devia ser o sentido
    da vida…” /1/
    Pois…
    “Na casa do poeta,
    o comprimento é o tempo;
    a largura, a escritura;
    e altura é o pensamento
    onde o firmamento mora.” /2/

    /1/ Fernando Pessoa
    /2/ Ramiro Conceição

  10. Há algum tempo escrevi para amigos que “adolescente, corria para comprar disco novo dos Beatles. Hoje a sensação é a mesma com os livros do Saramago. Acho que não mudei muito”.
    Sei lá, estou me sentindo meio órfão de ídolos.

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