Luís Fernando Veríssimo deve ter escrito mais de dez crônicas acerca desta grande figura. Eu, aqui de baixo, escrevo a minha primeira. Fredolino Schirmer foi o proprietário, chef e maître do saudoso restaurante Floresta Negra, de Porto Alegre. A comida de Fredolino era… melhor economizar nos adjetivos. Não só o Luís Fernando ia lá, muita gente ia reverenciar as criações de Fredolino. Havia quem viajasse para conhecer o Floresta, outros atrasavam compromissos para visitá-lo e nós, que morávamos aqui, não nos incomodávamos com as longas filas para entrar no restaurante.
Conheci Fredolino numa destas filas. Ele saiu do restaurante, examinou o número de pessoas à espera – entre as quais estava eu – e berrou:
– Olha aqui, ó. Vão embora!
Não acreditei que o senhor que dissera aquilo, voltando imediatamente para o restaurante, pudesse ser o lendário Fredolino Schirmer, mas era. A cidade inteira sabia que Fredolino era um mestre da cozinha, mas que costumava tratar mal, muito mal seus clientes. O Veríssimo, que estava sempre lá, discordava. Além de exaltar a qualidade internacional de sua produção, escrevia que o dono do Floresta tinha uma espécie muito particular e incompreendida de gentileza. Eu diria que o velho Fredolino desejava apenas que as pessoas fruíssem do melhor e defendia-as agressivamente de sua própria vulgaridade. Só isso.
Mas voltemos ao restaurante: tentei novamente e consegui entrar. Já acomodados – eu, minha ex-mulher e um casal de amigos -, recebemos a atenção do maître, aquele mesmo senhor que berrara conosco na fila outro dia. Devo dizer que todos nós tínhamos um pouco de medo do velho (o Luís Fernando também, ele que negue!). Então, quase desculpando-nos por importuná-lo, pedimos nossos pratos. O meu era um linguado ao molho de maçã, coisa até então inimaginável. Minha ex me imitou, ou eu a ela, não interessa. Quando fomos servidos, ela viu Fredolino aproximar-se com uma enorme pimenteira e, ao mesmo tempo que protegia o prato com as mãos, perguntou com toda a delicadeza e receio:
– Será que vai ficar bom com pimenta?
Fredolino trovejou:
– Claro que fica bom! – e tacou-lhe enorme quantidade da coisa, enquanto ela tirava rapidamente as mãos do caminho.
Recebi outra chuva em meu linguado e afirmo-lhes: aqueles linguados não morreram em vão!
Outra vez, a mãe de uma amiga minha foi ao Floresta e – em noite de lotação completa – perguntou a Fredolino:
– Esta nata é uma coisa dos deuses! De onde o senhor tira esta maravilha?
Fredolino não respondeu, mas logo depois ela soube que receberia uma resposta literal quando o viu avançando pelo salão com um enorme balde de plástico ornamentado por uma colherona. Mostrou-o a ela enquanto mexia a colher e disse para todo o restaurante ouvir:
– Tiro daqui, ó!
Devo dizer-lhes que esta senhora é uma mulher finíssima, educadíssima, destas que a simples idéia de estar num restaurante lotado, sendo observada pelos circunstantes enquanto olha para baixo, bem dentro do balde de nata de um Fredolino aos gritos, basta para perturbar o sono por meses.
Hoje almocei com a minha mulher e perguntei-lhe se ela o conhecera. Dez anos mais jovem do que eu e tendo passado muitos anos fora de Porto Alegre, disse-me que apenas conhecera sua fama de cozinheiro e de intratável. Mas, sendo ela também habilíssima nestas coisas de culinária, pensa que um chef tem que ter opinião e que não deve curvar-se inteiramente aos gostos pessoais dos clientes, se achar que o resultado ficará prejudicado. Mas ela disse mais sobre Fredolino: acredita que é normal os artistas terem certos desvios de comportamento e que o contato com certos porto-alegrenses metidos poderia gerar efeitos danosos ao humor do velho. Recordo-me que alguns de nós – provincianos que tínhamos o privilégio de conviver com o mestre – pretendíamos dar palpites em seus pratos e éramos quase expulsos do Floresta Negra! Ainda estão em minhas retinas as vezes em que vi Fredolino balançar negativamente a cabeça, dizendo para uma mesa de desavisados:
– Se vocês querem comer isto, erraram de restaurante. Vão embora!
Outra vez ouvi uma senhora de idade solicitar determinado prato. Como resposta, obteve esta pérola: minha senhora, na sua idade e a esta hora tardia eu não aconselharia este prato. Vou trazer-lhe outro mais leve e adequado, de minha escolha. E dirigiu-se à cozinha.
Outro fato curioso era a política de preços do Floresta. Naqueles tempos de inflação, Fredolino demorava meses para reajustá-los. Assim, nosso melhor restaurante tornava-se muito barato em alguns períodos. Porém, um belo dia, tínhamos a surpresa de ver os preços multiplicados por três ou cinco. E ai de quem reclamasse! O período mais sensacional do Floresta foi o ano de 1986. Com o congelamento de preços baixado por Dílson Funaro durante o governo Sarney, pudemos comer meses e meses no Floresta a preços módicos. Foi um ano inesquecível.
Fredolino Schirmer faleceu há uns 20 anos. Sua esposa Christa publicou um livro com as principais de receitas de seu marido pela Editora Tchê!, em 1992. Para encontrá-lo, só em sebos. Como ele ficou na casa da minha ex, não tenho certeza se Christa publicou a receita do linguado com o qual sonhei esta noite.
Em tempo: acabo de encontrar uma crônica de Luís Fernando Veríssimo com referências aos grande Fredolino:
(…)Quando conheci o Gerry Mulligan, em Porto Alegre, a fase das drogas já ficara muito, muito para trás. Ao contrário de Chet, Gerry tinha vencido sua luta contra a dependência, era um respeitável senhor de barbas brancas. E a longa sucessão de mulheres na sua vida – que incluíra a atriz Judy Holliday – tinha acabado numa bela italiana chamada Franca, que Gerry conhecera durante a gravação do seu disco com o Piazzolla, na Itália, e aposto que ficou com ele até o fim. Era evidente que a Franca tinha tudo dominado.Depois da apresentação fomos jantar com Mulligan, mulher e trio, a convite do adido cultural americano. O melhor restaurante de Porto Alegre, na época, era o “Floresta Negra”, cujo dono e maitre, “seu” Fredolino, era uma figura controvertida: muitos confundiam com rudeza o que era apenas bom humor alemão, já que as duas coisas nem sempre se distinguem. Estávamos acostumados com seu jeito, e com o fato que em noites de muito movimento a dona Christa e sua equipe, na cozinha, não davam conta, e a comida demorava.
Mas Franca não queria saber do folclore do lugar, queria alimentar o seu homem. E deu-se o choque de culturas. “Seu” Fredolino já expulsara gente do restaurante por menos do que ouviu da italiana, naquela noite. Por um momento a mesa ficou suspensa, à beira de um incidente internacional. O adido cultural e eu, representando nações neutras, ficamos calados. Mulligan nem tomara conhecimento do confronto, aquela era a área de ação da mulher. Manteve a sua pose de patriarca viking.
“Seu” Fredolino talvez tenha se dado conta de que enfrentava uma leoa, e a possibilidade de grandes estragos materiais no seu restaurante. Recuou. Ninguém foi expulso. Dali a pouco veio a comida. Estava ótima. Acho que a Franca até elogiou. As forças do Eixo estavam recompostas. Durante o jantar, não adiantou eu querer perguntar ao Mulligan sobre Zoot Sims e outros que tinham tocado com ele, inclusive o Chet Baker. Ele só queria falar no Garcia Marquez.
Eu nunca fui expulso por Fredolino. Um dia, arranquei dele uma gargalhada. Foi uma pequena glória ver a mesa me olhar boquiaberta.
Mas nada de compara ao Lira, cujo restaurante, em bairro popular (Rocas), simplesmente preparava a melhor carne-de-sol de natal nos anos 60 e 70. Era, inclusive, o restaurante preferido dos industriais, comerciantes e políticos do Estado. Só que a sua carne-de-sol era preparada segundo o “figurino” local: a carne acompanhada de arroz branco, macaxeira, feijão verde, farofa d’água e manteiga do sertão. Numa certa ocasião, o ministro Andreaza, em pleno período Médici, foi, com grande comitiva, provar da famosa carne-de-sol. Só que esperava mais ingredientes e foi logo exclamando/perguntado: “Mas só isso!?” Lira, na hora, quase aos berros, não fez por menos: “Tá achando ruim? PODE IR EMBORA!!!” Constrangimentos generalizados e explicações gerais. Um abraço.
Gostei do Fredolino, e adoraria ter jantado lá um dia, mesmo sob risco de expulsão à menor bola fora que desse à mesa.
É o “Nazista da Sopa” do Seinfeld…
Me pareceu aquela piada de um freguês de bar que tenta de toda forma entabular conversa com o dono do bar. Tenta futebol, mas antes de terminar a frase o dono o interrompe: “Aqui não se fala disso. Cada um tem seu time, e pode se sentir ofendido com qualquer comentário.” Constrangido, o freguês releva a grosseria e, de bom coração, tenta falar sobre as eleições. “Opa, opa, opa! Política é terminantemente proibido aqui.” diz o dono. “Já deu briga de partido e não é bom”, conclui. O freguês engole em seco, espera uns dois minutos e, educadamente, pergunta ao dono do bar: “Sobre sexo o senhor permite que se fale?”. O velho analisa a questão e, abrindo um sorriso, diz: “Ah, sim. Sobre sexo parece não haver conflito. Pode falar a vontade.” Ao que o freguês então diz, com flexão em cada palavra: “Então vá tomar no cu!!!”
Aqui no Rio também é famoso o português do Bip-Bip, um boteco ordinário em Copacabana, que costuma maltratar os fregueses quando eles exigem um salgado mais sequinho ou uma cerveja mais gelada, mesa mais limpa ou para guardar um lugar enquanto “eu vou ali num instantinho”. Fecha o bar com os clientes ainda consumindo, chama cliente de corno e mulher de puta. Vai entender porque alguém ainda frequenta o lugar…
“Eu diria que o velho Fredolino desejava apenas que as pessoas fruíssem do melhor e defendia-as agressivamente de sua própria vulgaridade.” – você nos colocou a favor dele o texto inteiro por causa dessa frase. Quem não gostaria de se permitir a isso?
Oi Milton
Conheci e bem o Fridolino (se não me engano era com I). Como o pai era europeu e falava alemão nos incluíamos na lista dos “bem tratados”. O mau-humor dele acho que era mais “marketing” combinado com a maneira alemã de ser, rsss
Mas o que quero dizer é o seguinte: eu tenho o livro de receitas. Se quiseres te envio uns xerox. Só não sei se está aqui na Suiça ou no Brasil.
Já cozinhei diversas delas e funcionaram muito bem 🙂
abs
Não sei o porquê, mas achei que viria no final alguma analogia ao Dunga… Mas aqui não se escreve mais sobre futebol.
Pensei o mesmo. Até achei que o Milton, tão bom de diálogos, fosse contar o encontro dos dois.
Oi, Ivo.
Aqui: http://www.futebolsul21.com.br/2010/06/22/onde-moram-as-diferencas-de-interesses-entre-a-globo-e-dunga/
Grande abraço.
Se a receita do linguado é a do Filet de peixe a Normandie, que leva 1 1/2 xícaras de maçãs fatiadas, a Crista publicou sim.
Milton,
tu tem que ir no Lipe Bar, ali na Felipe Camarão. O cara é gente boa pra caralho. Presenciei diversas atitudes fregolinas dele. Uma vez um magrão se enganou e furou a fila do banheiro. Como eu tava pagando a conta, deu pra perceber que o cara não teve consciência de que estava passando na frente de uma fila. Resultado: foi expulso do bar aos xingamentos de “Aqui, não! Vai na Padre Chagas se tu quer te achar o dono!”
Pô, legal. Gostei do estilo!
Oi Milton, dei boas risadas. Entrei na internet para saber se em 63 o Floresta Negra já existia. Sabes me dizer? Queria que o personagem do meu livro jantasse lá, mas o ano é 1963, dezembro. Se puderes me ajudar, ficaria grata. Um beijo
Não sei, infelizmente…
Tenho o livro de receitas do Floresta Negra. Posso fazer uma cópia, é só pedir.
Fui ao Floresta Negra em 1987, durante uma vez viagem que fiz a Porto Alegre. Não tenho lembrança do senhor Fridolino mas, sim, do sabor inesquecível do prato que comi e minha memória vai guardar enquanto eu estiver vivo: pato recheado com repolho roxo e spatzel. Sem sombra de dúvida, uma das melhores experiências que tive à mesa em minha vida, talvez a melhor.