Para H., esteja onde estiver
Acho que posso dizer o mês em que comprei o tal Monza. Foi em dezembro de 1997. A primeira façanha que fiz com ele foi a de encostar numa das colunas do edifício em que morávamos. Nunca arrumei o arranhão nem no carro, nem na coluna. Eu não desejava adquiri-lo. A empresa passava por sua primeira crise e eu preferia que ficássemos – eu, minha ex e meus filhos – com o Uno novo e completo que tínhamos. Mas minha ex encheu o saco, queria ir para a praia e precisávamos de um carro maior. Eu disse que levaria a tralha primeiro e voltaria para buscar o resto, isto é, as pessoas; mas Suélen (ou Pâmela, nunca lembro o nome de minha ex) não quis de modo algum.
Eu que comprasse um segundo carro, maior. OK. Na época, ainda não me dava conta de que há anos odiava mortalmente Pâmela e que nossa relação era doentia. Comprei em 1997 um Monza 90. Não era um grande carro, mas também não era nada inaceitável. Procurei o maior e mais barato possível e apareceu aquela coisa azul-marinha, 4 portas, 1.8, gasolina. Já na loja eu o chamei de fusca grande, pois ele não tinha nenhum acessório agradável: vinha sem direção hidráulica, sem ar condicionado, sem rádio — instalei depois um — e os vidros eram de girar manivela. Mas era simpático, apesar de ter sido recebido por Suélen com um “mas não tem ar condicionado!”.
Fomos para a praia, ficamos amigos de um bando de argentinos e nos despedimos deles da forma mais emocionada, voltando para nosso inferno. Em 1998, meu filho tinha 7 anos e minha filha, 4. Era e ainda é divertido ficar com eles quando não estão brigando. Aliás, eu só convivia com eles e com amigos. Em casa, evitava a companhia de Pâmela. Muitas vezes saíamos com nossos amigos e depois eu tinha que levar a babá em casa de madrugada. Eu nunca retornava imediatamente. Esperava que Suélen dormisse antes, pois sua voz, ouvida distintamente, era-me irritante. Ficava dando voltas, dirigindo pela cidade. Aquilo era um alívio e eu ia me afeiçoando ao fusca grande.
Naquele ano nos mudamos para uma casa maior e lá fui eu com meu Monza. Aí vocês sabem, não?, quando a coisa fica insustentável, a gente arranja problemas com a maior facilidade. Eu ia numa academia e tinha muito contato com minha professora, claro. A gente estava há dias naquelas piadas e brincadeiras de sedução, que normalmente não levam a lugar nenhum, quando ocorreu a festa de fim de ano. Ah, que maravilha. A festa era na Cachaçaria Água Doce e vocês, meus experientes sete leitores, sabem o quanto bebe um homem infeliz. Apesar de minha querida H. ter surgido tão sozinha quanto eu, não dei muita importância ao caso e me atirei à cachaça. Passamos a festa inteira sem conversar.
Na saída, eu estava simplesmente podre, pedindo uma cama enquanto minha amiga finalmente chegava-se a mim.
— Estava observando o que tu bebeste. Foi uma grandeza, né?
Não sou um bêbado chato, só fico tonto e com sono. Meu humor não varia muito. Eu respondi que achava impossível ir em linha reta até a porta do carro. Ela anunciou que iria me monitorar. Fui na frente, com ela a três passos de mim, rindo. Entrei no carro e ela entrou pelo outro lado. Foi então que notei que H. viera sem seu Gol preto. Eu a achava muito bonita e sempre pedia para ela me empurrar durante alguns alongamentos. Quando vi que ela largava todo o seu peso sobre mim, passei a solicitar seus serviços assim:
— quero sentir o peso do teu corpo sobre o meu…
e ela achava graça. Eu também. Dentro do carro, por uma dessas ideias idiotas que sobrevêm aos bêbados, sugeri que fôssemos para o banco de trás. Isso numa travessa da Carlos Gomes. Sim, ela também estava embriagada, é certo. Não me passou pela cabeça a palavra “Motel”, entendem?, estava há muito tempo fora do mercado. Pois após os amassos, enquanto procurava abrir as calças para me sentir mais livre, consegui cair no vão entre os bancos. Lembro de nosso ataque de riso.
Acabamos na casa dela. Olha, fui muitas vezes lá e creio nunca ter sido descoberto. Lembro que H. ligava para minha casa e ou eu atendia ou Suélen me passava a ligação. Era tão, mas tão claro que não era visto. Minha ex saía muitas vezes sozinha, eu também. Ela gostava de uns simulacros de ciúmes, eu não. Espero sinceramente que ela me corneasse tanto quanto eu a ela ou mais, mas duvido muito, ela é de família católica e curitibana. Lembram quando eu escrevi sobre roubo de livros, dizendo que o bom ladrão de livros não olha para os lados, agindo com naturalidade? Pois é. O pessoal da academia nos via como um casal, todos sabiam, éramos um casal. Não nos escondíamos.
Uma vez, fui visto pelo chefe de Pâmela no cinema. Só que os homens têm aquela solidariedade natural e ele disse para ela que tinha me visto no cinema… sozinho. Sensacional a manifestação de bom humor do chefe, fiquei quase nervoso.
Mas voltemos ao Monza. Houve um dia em que o meu consórcio preventivo foi sorteado e eu, em 2001 — em minha opinião prematuramente — , vendi por quase nada o Monza de tantas alegrias. Por que falo nele hoje? Ora, porque o vi. Está em péssimo estado aos 20 anos. Eu estava voltando da clínica onde está internada minha mãe. A gente perde a dignidade na velhice. Ou ganha outra. Olhei a placa, era ele, o final 2287. Lembrei de seu cheiro e o do perfume de H. — muito mais próxima de mim do que minha mulher — , lembrei do dia em que meu filho disse do banco de trás que deus não existia porque ele andara de avião e não vira ninguém nas nuvens, lembrei de minha filha querendo que eu SEMPRE parasse nas praças para andar de balanço – podia ficar horas balançando-se, olhando o mundo à sua volta — , lembrei de Pâmela perguntando se aquele carro nos levaria MESMO à Florianópolis e, fundamentalmente, de que ele nunca, mas nunca mesmo, me deixou na mão.
Foram 4 anos só botando gasolina, água, pastilhas de freios novas, ar nos pneus e, pô, trocando óleo. Certamente, na casa de Suélen, há fotos em que ele aparece de forma casual. As fotos acima são falsas, de um irmão gêmeo mais metido, com ar e direção, modelo Classic, também de 1990, que está a venda por R$ 3.900,00 num site aê.
1- Muito bom. Adorei o texto!
2- Quando comprei meu carro atual, não tinha ar, nem rádio e o vidro é de girar a manivela, mas fusca grande é a pqp!
3- Todos os usos que ele tem são de conhecimento de minha senhora.
Ah, sei, tens um fuscão.
Gostei muito do texto! Essas relações com carro são estranhas pra mim, que nunca tive um e nem ao menos sei dirigir. Alias, eu tenho alguma “autonogsia”, porque sou incapaz de distinguir um carro do outro (com excessão de alguns muito antigos e característicos, como brasília, combi, fusca, etc). Eu tenho uma certa vergonha, porque os carros pra mim são só grandes, pequenos ou caros; por outro lado, já me disseram que isso é prova incontestável de que não meço o valor das pessoas através de seus carros. Realmente.
O único carro com a qual eu tenho um problema especial é o Uno. Toda família, alias. Assim que o Uno foi lançado (parece que na época era um carro bom e não o mais econômico, né?), meu pai o elegeu carro oficial da família. Naquela época de vacas gordas, a cada dois anos ele trocava o Uno branco por… outro Uno branco. Ele teve mais de 5 anos brancos, tenho certeza.
Quando comecei a namorar com o Luiz, ele tinha um Palio azul, zero. Casamos e ele decidiu vender o carro pra conseguir dinheiro. Quando ele me disse por telefone que tinha comprado um Uno branco, achei que era pura sacanagem. E não era. Imagine que eu passava pela minha própria garagem e não olhava pro carro. Quando alguém nos ultrapassa ou qualquer coisa assim, achava que a pessoa estava no seu direito…
Quando trocamos o Uno pelo Ka, a única que não gostou foi a Dúnia, porque ela tinha mais espaço atrás.
Errata:
*Ele teve mais de 5 Unos brancos, tenho certeza. *
Caminhante.
Eu não sou do tipo homem-que-adora-carros. Aliás, não consigo sustentar uma conversa sobre carros com outros “caras” por mais de 2 minutos. Já deixei de fazer amizades por causa disso. Mas me mantenho vagamente atualizado quando aos nomes e modelos.
A Nikelen sim, é do teu time mesmo. Quando compramos nosso carro, ela disse à mãe dela que tinha comprado um carro muito legal. E a mãe dela perguntou: Que carro é?
Resposta: Ahhh… é um preto!!
Eu também não sou aficcionado por carros, mas sou mais ou menos forçado a me preocupar com a manutenção dos mesmos…
Na verdade, o que me chama a atenção são os carros antigos como os Karmann-Ghia e os Maverick.
Tive um Uno preto e outro cinza chumbo.
Amor ao monza é quase chevettismo, attento. No monza é uma manobra bastante cachacística, parabéns.
Saudade, né? Quanto à manobra, tu achas que eu me lembro? Só sei que caí no vão…
Factóide: quando eu era criança e passávamos de carro por uma pracinha os adultos tinham que tapar meus olhos para eu não ver os balanços e pedir para parar.
Se meu Monza falasse !
Ah ! Agora, lembrei do episódio do Marcelo (com sua carteira recém comprada) “dirigindo” na chuva, com fusca da empresa – e nós de carona – quase capotando na praça do Lindóia !
Estamos vivos, um milagre semelhante ao dos chilenos de hoje!
Texto delicioso, Milton. Eu tenho aqui um Gol 1997, todo estiloso e completo. Andei muito tempo sem carro, mais por uma estranha ideologia que não sei explicar e que também tem seu grau de esnobismo. Conheci minha esposa e nos namoramos, boa parte tendo que atravessar grandes distãncias á pé. Eram longas caminhadas _ muito felizes _ de madrugada, para levá-la de volta á casa dos pais. Já havia tido um carro, mas me enojava a suspeita pontual de que as mulheres se interessavam mais pelo carro que por mim. Quando fiz uma surpresa para a Dani, aos tr~es anos de namoro, mostrando o carro, ela ficou meio que chateada. Mandei fazer um letreiro em vermelho para pregar no vidro detrás: Koiannisqatsi.
Koiannisqatsi, o filme de Reggio com música do Glass? Bá, genial.
Mundo em desequíbrio a partir de um Gol…
Acho que é ficção baseado em fatos (ou sonhos) reais. Ou é fato real tratado como ficção, de modo a preencher lacunas e tratar doutro assunto, qual seja, saudades de H. e do tempo em que o sexo podia ser mais irresponsavelmente feliz. Uma tergiversação para fugir dos ciúmes e revelar um estado de ânimo no lime do adultério. Uma metáfora para indicar o reencontro não com o Monza, mas com H. Outras interpretações são possíveis.
Mas, nos dias de hoje, graças às privatizações, nossos automóveis estão em um padrão superior, bem GM, e dá tranquilamente para foder dentro de um carro popular devidamente equipado com insulfilm, mesmo estacionado na grande praça em frente à catedral e próximo aos posters da candidatura Yeda (não, aí não! – não é isso que você está pensando – aí eu broxo!).
Prezado Dr. Freud.
Espero que o Sr. não cobre por esta consulta, até porque discordo da interpretação. Bem, mas isso não lhe importa, importa apenas a primeira parte, sei.
É claro que a “interpretação dos sonhos” é puro sarro.
Mas não importa apenas a segunda, não a primeira parte, mas ambas, porque são sarro a primeira e a segunda.
Você é corajoso, Milton, em se mostrar assim. Ou é um cara vingativo…
Ou é um masoquista… Ou gosta de brincar com marimbondo…
Ou gosta de uma boa dose de adrenalina… Ou adora umas facadas pelas costas… Ou, sem dúvida, quem sabe um dia… já era…
Mas Pâmela (ou Suelen) seria (ainda) assídua leitora do blog?
Não lê.
Mas os adjacentes o lêem…
É aí que mora o perigo meu rapaz..
Tive um Monza 86, verde água, um “carrão” que me acompanhou por 17 anos! Não nos casamos, mas envelhecemos juntos. Ele já se foi, muito amassado por uma batida lateral. Eu ainda estou aqui, sem mossas visíveis (há décadas não escutava mossa!).
Como é próprio dos carros, estes vão e vêm. A gente, só vai, já que a vida não tem retorno.
gostinho de quero mais (não o monza, mas a história com H).
abçs.