Este interessante projecto, continuado no Brasil, poderia ter uma continuidade interessante…
Enquanto o António, barbeiro de profissão, enfermeiro e escritor nas horas vagas, se aventurava à procura por Antares, no Rio Grande do Sul, a sua família, que desconhecia o seu paradeiro, sofria na Serra.
Certo dia, o António, escreveu uma carta em segredo para um parente da sua confiança em Lisboa. A família quando soube que o António estava vivo… partiu a pé para Fátima…
Até breve…
(continuação de post anterior)
António continuou na barbearia ouvindo seus clientes. Gostava de suas histórias e, quando emudeciam, estimulava-os falando do tempo, das crianças que não cuidavam ao atravessar a rua, da inflação, do dólar, oferecia-lhes jornais, o que sempre fazia com que comentassem alguma notícia. E que dias eram aqueles! Com os meios de comunicação sob censura, parte das acontecimentos eram inevitavelmente coloridos pelas imaginações dos clientes.
Certa manhã, ocorreu um fato cômico e triste. O pai do Dr. João Cunha era um octogenário aposentado que sofria do Mal de Alzheimer. Durante sua vida ativa, fora um daqueles “construtores da casas sem diploma” e marceneiro. Eram de sua autoria muitas das residências de estilo açoriano que havia na cidade. Porém, na época de António, este homem às vezes não reconhecia mais nem seus netos e passava seus dias dizendo inumeráveis (e memoráveis) sandices. Em seus curtos momentos de lucidez, tinha o hábito de comentar política e de recitar de memória poesias de Casimiro de Abreu – o único poeta que lera com paixão durante sua vida. Pois, numa manhã nublada, vô João Cunha plantou-se bem em frente ao quartel do 17º Regimento de Infantaria com a finalidade de atacar os militares e mudar os rumos do país. A primeira fase de sua estratégia incluía um notável discurso contra a ditadura naquele local. Como era muito cedo da manhã, o orador não tivera tempo de vestir-se e apresentava-se ainda de pijamas. António — que aquela hora matinal estava barbeando um militar — tomara um susto ao ouvir inesperadamente a poderosa voz do velho iniciando seu ataque:
— Parasitas da Nação! Saiam de suas tocas e venham expor seus motivos! O fechamento do Congresso Nacional…
Quando o barbeiro viu de quem se tratava, correu a alertar João Cunha pelo telefone:
— Meu amigo! Seu pai está aqui a apostrofar os milicos! Quer briga! Ainda está de pijama; penso que acordou e veio enfrentá-los. Os milicos estão rindo dele, mas tens que tirá-lo daqui. Pode haver tumulto.
João deixou um cliente de boca aberta na cadeira de dentista para ir buscar o pai em seu Aero-Willys. Ao chegar, viu o velho, o barbeiro, alguns populares e militares frente ao portão aberto. Todos estavam sorridentes, exceto o indignado velho e António, que procurava convencê-lo calmamente a voltar para casa. Quando João Cunha saiu às pressas do carro, um dos militares gritou:
– Ô, Dr. João! Teu pai está organizando a reação comunista aqui na frente do quartel! Acho que já já vai chamar seus guerrilheiros!
Todos riram — os militares autenticamente, os populares para agradar ao piadista. Vô João Cunha continuava:
— Desrespeito, desrespeito, corrupção e violência! Esta é a verdadeira ideologia…
— Chega, pai! Vamos para casa!
O velho calou-se imediatamente, estava acostumado a obedecê-lo. Mas, ainda trêmulo, só aceitou voltar para a casa com uma condição.
— Tira este português maricas de perto de mim. Já me basta os milicos.
Depois deste episódio, as militares sempre referiam-se à terrível ameaça representada pelo velho João Cunha. António apenas ouvia, evitando falar sobre a política brasileira ou portuguesa. Também evitava pensar em Portugal e nos amigos que deixara, porém a saudade insinuava-se lenta no peito. Começou pela comida: passou a sonhar com pratos como cabrito recheado na telha ou como trutas à moda de manteigas, antecedidos de uma sopa beirã e seguidos de tigeladas ou filhozes. Passou a buscar em vão locais na cidade em que a gastronomia fugisse do cardápio habitual da região. Neste período, também caminhava pela cidade escrevendo mentalmente cartas a seus amigos em que descrevia longa e amorosamente a região onde se encontrava e apresentava seu amigo João Cunha e outros a qualquer destinatário português do qual sentisse saudade. E estes — os destinatários — eram muitos. Pedia em troca notícias dos amigos, principalmente de Manoel Martins Ribeiro, de Maria Branco, de Rogério Simões e de alguns de seus pacientes.
O nome Maria Branco ficou-lhe impresso e o próximo passo foi o de refletir em como poderia entrar em contato com ela de forma incógnita. Maria era sua melhor amiga. Ora, se escrevesse para Manoel Ribeiro, que morava em Lisboa, e lhe pedisse para que mandasse uma carta em seu nome para Maria, contando suas aventuras… Ou melhor, se colocasse em um mesmo envelope duas cartas, uma explicativa para Manoel e outra para Maria e pedisse para que Manoel repassasse sua carta para Maria utilizando seu nome como remetente…
Decidiu-se. Escreveu cuidadosamente as duas cartas. Nelas, contava sobre sua amizade com João Cunha, sobre a gastronomia local, informava detalhadamente todos os seus passos que seguira até Cruz Alta e pedia à Maria o favor do qual dependia sua tranquilidade:
Maria, querida. Avise os meus que estou bem. Fiz amigos no Brasil e pretendo aqui ficar pelo tempo necessário aos esbirros me esquecerem. Diga que morro a cada dia de saudades, que estou em uma pequena cidade, que se visse o mar ficaria melhor, que detesto a comida, que tenho bons amigos e que um dia volto.
(continua)
(1) O texto em itálico lá do início é de autoria de Rogério Simões. O restante é meu.
(2) Todos os personagens citados nesta história são reais, à exceção do personagem principal António Barbeiro. Maria Branco e Rogério Simões são blogueiros e os restantes são parentes meus de Cruz Alta.
A primeira coisa que a história me lembrou foi a piada estúpida de um português que enviou à terrinha duas cartas à Maria, uma dentro da outra, na esperança que, se uma se extraviasse, outra chegaria às mãos da mulher… piadinha mais sem graça. Por que a gente se lembra dessas babaquices?
O “projecto” decerto é bom. Dá para misturar lembranças e personagens reais com irreais para compor um quadro de afetos e laços entre emigrados, imigrantes, perdidos entre terras de uns e outros, a trocarem mútuas saudades e, mais importante, impressões sobre a composição do Grande Quadro da História, ou simplesmente as transformações humanas em meios sociais e geográficos cada vez mais extensivos, confusos, integrados e desintegrados.