Tô brincando com o pensamento, pai

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Publicado em 12 de fevereiro de 2004

Só a indiferença é livre. O que tem caráter distintivo nunca é livre; traz a marca do próprio selo; é condicionado e comprometido.

THOMAS MANN

Tento ser duro, mas resisto tanto quanto um pedaço de gelo ao sol. As crianças viajaram em férias com sua mãe, C. foi fazer um trabalho a 467 Km de distância e eu me vi com a toda a liberdade e tempo do mundo. Que beleza! Fiz planos para trabalhar muito e, nas folgas e nos finais de semana, ouviria Mahler no devido volume – os vizinhos têm de ser culturalizados, não? -, leria sem interrupções até dizer chega e, quando cansasse de tudo isto, abriria a porta de casa em direção a um cinema, sem ter que combinar nada nem esperar longamente, fora do quarto, por aquela tradicional escolha de roupas femininas…

Nos primeiros dias, cumpri meus objetivos com brilhantismo; depois, algo começou a emperrar além da falta da presença física que começava a incomodar. Eu havia lido, ouvido e visto tanta coisa que precisava comentar com alguém. Pensei em escolher alguns interlocutores inteligentes, mas este estava em férias, aquele compreenderia a parte Mahler do discurso mas não a parte Thackeray/Bernhard, aqueloutro não tem muito humor e… é melhor ligar logo para a C.

Descubro assim que aquilo que observava em meu filho quando criança acontece também comigo. Explico: Bernardo, quando pequeno, narrava sua vida para quem estivesse perto e, mesmo que não houvesse ninguém para ouvir, seguia descrevendo para si mesmo todos os acontecimentos e idéias que lhe ocorriam. Muitas vezes eu chegava perto dele e perguntava: “E daí, narrando a vida?” Não foram poucas as vezes que achei que estava criando o Rei dos Chatos! Porém, a idade fez-lhe muito bem.

Agora sou eu quem precisa descarregar suas histórias e acontecimentos sobre a namorada. Já minha filha foi diferente, era muito silenciosa. Brincava em tal silêncio que era bom sempre verificar se ela brincava de verdade ou se estaria desacordada (talvez morta) em algum canto da casa. Bárbara hoje fala pelos cotovelos, mas não é raro termos dúvidas sobre sua presença conosco, tais os silêncios em que abisma-se. Muitas vezes, sem fazer barulho, vou observar o que ela faz. É incrível, seu passatempo preferido é o de caminhar sobre os sofás, pulando de um para outro e voltando pelo mesmo caminho enquanto ouve a música que ponho no CD. Por que faz isto? De início, pensava que ela gostava de ouvir música erudita, mas mudei de opinião. Hoje sei que aquilo é somente uma trilha sonora para…

— Bárbara, o que tu tá fazendo?
— Tô brincando com o pensamento, pai.

Tendo hoje 10 anos, minha filha não é mais uma criança potencialmente suicida como são as pequenas e, muitas vezes, confiro sua presença e estado – vígil ou soporífero -, gritando assim:

— Babi, tá brincando com o pensamento?
— Sim!

Sou hábil em criar subterfúgios, não? O que eu queria dizer desde o início é que estou morrendo de saudades deles. São 22 dias sem ver meus filhos e 19 – com uma pequena interrupção durante o Fórum Social Mundial — sem ver a C. Isto me faz mal. Voltem, por favor, sinto falta de vocês!

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5 comments / Add your comment below

  1. Você escreve melhor quando fala dos seus. Então esse caboco aí é que é o fã incondicional do Zappa? Aprendi que o conflito, na infância, gera pessoas talvez não melhores, mas mais ricas internamente. A Bárbara dizer “Tô brincando com o pensamento” é uma das coisas que, quando ver similar em minha filhota Júlia, só isso já vai ser determinante do meu amor. Criar um misto de Mafalda, Pollyana, e Pequeno Príncipe, para que o caminho natural da conversão se faça em um adulto mais humano e não indiferente, com bom ouvido, bons olhos e excelente coração, é tudo que a paternidade me pondera fazer. Um garoto que monologava sua vida (eu fazia o mesmo), e na mesma medida de idiossincrasias maravilhosamente estranhas que meu Eric faz, tem que resultar nesse cara que saiu do casulo do senso comum e só se basta com coisas tais como Zappa, Mahler… Bela família. Também passo pela mesma sensação de deslocabilidade: estou só em casa, pois todo mundo foi à capital tomar vacina e consultas de rotina.

  2. Quando ganho algumas horas de refresco da minha digníssima esposa, penso, “oba! vou me esbaldar!”; se, no entanto, não aparece nenhum programa digno de nota, volta para casa, ponho uma música para tocar, leio e… fico contando as horas. Se ela atrasa o telefonema funcional uns dez minutos, começo a ficar nervoso; se atrasa meia hora, estou quase em pânico, quase indo ao telefone para procurá-la (odeio usar telefones, só em último caso). Quando ela chega, estou confortavelmente assentado no sofá, vendo, indiferente à chegada dela, qualquer partida de futebol (pode ser campeonato russo, holandês…). “Se divertindo?”, ela pergunta, “Assim assim”, eu respondo e penso “Agora você vai ver!”

    Brincar com o pensamento é próprio de crianças, só elas fazem isso; nós, adultos, quando brincamos com o pensamento, elaboramos demais, sem chegar, porém, à filosofia, a exemplo das crianças, cujas questões naturais tocam em seu tecido último, mas não consegue romper a casca. O perigo é o brinquedo se profissionalizar e a criança virar, sei lá, um Pondé. Tudo o que não precisamos é um espelho reacionário dentro de casa.

  3. ‘na solidão na penumbra do amanhecer.
    Via você na noite, nas estrelas, nos planetas,
    nos mares, no brilho do sol e no anoitecer.

    Via você no ontem , no hoje, no amanhã…
    Mas não via você no momento.

    Que saudade…’ Mário Quintana

    A saudade que sinto da minha filha (longe de casa há mais de um ano com volta prevista para daqui seis meses) parece que irá me sufocar, mas há momentos de lembranças tão boas…

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