Publicado no último sábado no Sul21.
No dia 2 de julho de 1961, exatamente há 50 anos, Ernest Hemingway acordou, levantou-se silenciosamente deixando a mulher Mary dormindo e dirigiu-se ao recinto onde estavam guardadas suas armas. Pegou uma espingarda que usava para caçar pombos e, encostando o céu da boca no cano da arma, puxou o gatilho. Trinta anos antes, o pai do escritor, o médico Clarence Edmonds Hemingway, tinha se suicidado em seu consultório com a velha pistola Smith & Wesson do avô.
O suicídio é um tema recorrente na obra e na vida de Hemingway: aparece frequentemente em livros e cartas da mesma forma como aparecia nas conversas com amigos. A saúde e as finanças foram os motivos para o suicídio do pai. No caso de Ernest, os motivos foram a depressão e a série de enfermidades, como a hipertensão, o diabetes e a perda de memória. Anos antes, sua mãe, Grace, uma professora de canto amante da ópera que atormentava tanto o marido quanto o filho, enviou-lhe pelo correio a pistola com a qual o seu pai havia se matado. Hemingway interpretou o pacote como uma sugestão, não admitindo que aquilo pudesse ser uma simples lembrança.
Robert Jordan, personagem principal do romance Por quem os sinos dobram, conjeturando a respeito do pouco valor dado à vida durante a Guerra Civil Espanhola, evocou a lendária figura de seu avô, soldado na guerra civil americana. Como Hemingway faria, os pensamentos de Jordan acabam adquirindo a direção trágica da figura do pai, que se suicidou com a pistola do avô. No romance Ter ou não ter, o protagonista Richard Gordon fala do suicídio com as seguintes palavras: “Outros seguiram a tradição indígena da Colt ou da Smith & Wesson, instrumentos bem fabricados que, com o apertar de um dedo, fazem cessar a insônia, acabam com os remorsos, curam o câncer, evitam as falências ou abrem uma saída a situações intoleráveis. São admiráveis instrumentos americanos, fáceis de levar, de resultado seguro, bem projetados para por fim ao sonho americano quando este se transforma em pesadelo, e cujo único inconveniente é a porcaria que deixam para a família limpar”.
Indo em direção do autor, é claro que a rede de referências que lemos na obra de Hemingway não é nada aleatória: é inequívoco que trata-se de um escritor cuja obra está inteiramente ligada a suas vivências. Ele foi correspondente de guerra em Madrid durante a Guerra Civil Espanhola e o resultado foi Por Quem os Sinos Dobram. Antes viajara para a Europa em 1918 em plena Primeira Guerra Mundial e resultado foi Adeus às Armas — também apaixonou-se pela enfermeira Agnes Von Kurowsky, que o inspirou na criação da protagonista do mesmo romance, a inglesa Catherine Barkley. Paris é uma Festa foca-se em sua vida em Paris como um dos principais membros da “Geração Perdida” junto com Ezra Pound (1885–1972), Scott Fitzgerald (1896–1940), a esposa Zelda (1900-1948) e Gertrude Stein (1874–1940), a criadora da expressão.
O inteligentemente nostálgico último filme de Woody Allen, Meia-Noite em Paris, traz todos estes intelectuais circulando por Paris, se bem lembro, de Pound. A postura caricatural do ator Corey Stoll serve muito bem para caracterizar Hemingway como uma espécie de intelectual de ação, sempre pronto para aventuras e para o enfrentramento.
Mas temos mais comprovações da ligação quase jornalístiva entre a vida e a obra de Hemingway: na Espanha produz Morte à Tarde sobre as touradas; as caçadas na África Central são contadas em As Verdes Colinas da África (1935); de suas experiências como pescador em Cuba, surge seu último romance publicado em vida, o notável O Velho e o Mar, que lhe rendeu o Pulitzer. Scott Fitzgerald, consciente que o amigo inspirava-se na vida real, brincava: “Você vai precisar de uma mulher ou de uma viagem exótica a cada livro?”. Então não é de surpreender que ele escrevesse tanto sobre o suicídio que cometeria.
Hemingway era um escritor profundamente original ao recusar certo beletrismo que passou a grassar na primeira metade do século XX. Gostava de frases e parágrafos curtos, de ir direto ao assunto e de frases afirmativas. Também era um furioso revisor de si mesmo e certamente não aprovaria a publicação dos três romances que “ganhou” post mortem.
Apesar das qualidades de Por quem os sinos dobram e do grande filme de Sam Wood com uma estonteante Ingrid Bergman (OK, há Gary Cooper para quem o preferir), muitas escolas brasileiras mantém O Velho e o Mar entre suas leituras obrigatórias. O pescador Santiago, que pesca e traz um peixe descomunal do alto mar sem no entanto lograr protegê-lo do ataque dos tubarões, é análoga ao desalento do Robert Jordan. Se lá Jordan demonstra a gratuidade da vida, aqui Santiago chega à praia vitorioso por ter pescado o maior peixe já visto, mas trazendo apenas um esqueleto sem carne para comprovação. Após o feito, os outros pescadores passam a respeitar e auxilar o velho. Talvez tenha sido o que faltou à Hemingway naquela manhã de 2 de julho de 1961.
O que acho mais interessante quando falam em Hemingway — escritor de cujos romances não gosto — é que esquecem que, acima de tudo, ele era um dos melhores contistas que os EUA produziram.
Seus romances, de modo geral, são isso: contos artificialmente esticados. Acho que é por isso que “O Velho e e o Mar” continua nos currículos escolares. Este é um livro quase perfeito em sua reflexão sobre a existência humana.
E uma implicância pessoal: os personagens de Hemingway são uns chorões, quase sempre. Jake Barnes chora pelo que deixou nos campos da Bélgica e não pode oferecer a Lady Ashley (que vai por sua vez vai buscar em tudo quanto é cabra que use calças), Robert Jordan chora pela vida que se vai, o coronel Cantwell chora pela juventude perdida. Só não chora Santiago, e é por isso que “O Velho e o Mar” é tão bom. 😉
Ia escrever mais alguma coisa mas creio que o Rafael ja disse tudo. Falta, talvez, dizer que Hemingway é um grande escritor que nunca escreveu um grande romance. Uns 20 de seus contos estão entre os melhores da literatura, como “Um Lugar Limpo e Bem Iluminado” e outros que cito repetitivamente. E, lembrando o que Anthony Burguess disse sobre o autor, o que fica permanentemente de Hemingway é a sua música. Sem ele, teria sido muito difícil o surgimento de vários autores, como Bellow, Garcia Márquez, etc.
Bah, Hemingway é uma bosta! Sabe por que os personagens dele são chorões? Porque é a única maneira do autor dar alguma “profundidade” a eles em meia a rudezas machistas e demonstrações fálicas diversas. Quer dizer, não adianta porra nenhuma…
Charles, eu tive que catar Hemingway no original para entender de verdade a música a que Burguess se refere. Não me ajudou a gostar dos romances, mas ajudou a entender um pouco a gênese estilística da literatura moderna. E Marcos, não há nada de mal em rudeza machista e demonstrações fálicas. Nem todo escritor é — nem deve ser — uma Virginia Woolf. O problema é que essa não é a única forma de agregar profundidade a personagens. É só uma forma piegas, fácil, e é esse o problema de Hem.
“Não há nada de mal em rudeza machista e demonstrações fálicas” – há sim, quando elas partem de Hemingway. “Nem todo escritor é uma Virginia Woolf” – azar da maioria absoluta dos escritores, menos de Virginia Woolf.
Leio Hemingway como um escritor análogo a uma fase do cinema dos anos 50. Às vezes, ele me parece um Kazan por escrito. Havia filmes muito machinhos naquela época e creio que ele foi um escritor típico daquela época de transição.
Eu gosto. Reconheço a boa qualidade dos contos, mas não consigo desprezar com facilidade O Velho e o Mar, nem Por quem os sinos dobram.
Ele ganhou o Nobel. Leva todo o jeito de quem ganhou, mas não vou pesquisar agora. Vou é almoçar.
Gosto de Hemingway. Ele tinha o espírito jovem – quando percebeu que o corpo não o acompanhava mais, escolheu o melhor caminho: bang! Tenho um carinho especial por “O sol também se levanta”. Seus contos são maravilhosos.
Engraçado que nunca achei o Hemingway machista, e, como já defendi antes, acho até o contrário, pois suas personagens femininas tem mais força e domínio do que os seus heróis. Lembro que um de seus melhores contos, a curta vida de Francis Macowber (ou coisa assim, não vou no Google), a cena emblemática é justo a que a mulher, a título de ter errado o tiro ao leão, numa caça na África, assassina seu marido, que a havia tiranizado a vida inteira. Hemingway é imprescindível. Seus diálogos, suas descrições físicas e de cenários. Como disse GGM, em tudo que Hemingway botava os olhos para traduzir em seus textos, as coisas passavam a lhe pertencer. A Paris de seu melhor livro, Paris É Uma Festa, por exemplo, é soberba. Com todos os seus erros, suas fraquezas e sua arrogância muitas vezes espontãnea de americano em plena supremacia da era do império, ele ainda é um grande escritor.
Rafael, não leio mais o H há 20 anos, mas já li tudo dele, até as duas biografias do Carlos Baker, e percebi, e bebi, fartamente a música de Hemingway.
Adorei isto aí, Charlles. Dá para explicar melhor sobre a música de Hemingway?
Milton Cardoso, trata-se da música literal mesmo de Hemingway. Seus textos tem uma musicalidade própria, seca, direta, envolventemente lírica.
Em relação à natureza percebe-se isso realmente. Quando leio Faulkner tenho a estranha sensação de estar ouvindo jazz e fico com vontade de tomar duas doses de um bom uísque.
Umberto Eco cita o que Dwight MacDonald fala sobre O Velho e o Mar: personagens numa aura de generalidade (o Garoto, o Velho) a fim de sublinhar a impressão de que não são indivíduos, mas “Valores Universais” – e “que o leitor, através deles, está fruindo uma experiência de ordem filosófica, uma revelação profunda da realidade”; estímulo à hipersensibilidade nas passagens de extremo azar do Velho; por a publicidade do produto na boca do produto (“constant editorializing”), como no trecho em que o Velho diz: “Sou um velho estranho” – MacDonald comenta acidamente: “Então não diga, meu velho, prove”.
Mesmo assim, isso não diminui o valor de O velho e o mar para mim, até porque tudo isso pode ser identificado em tantas e tantas obras, excelentes ou ruins. Mas acho que, para o tal MacDonald, se O velho e o mar for música, deve ser a Pour Elise de Beethoven.
Conheço o Velho e o Mar, e vou atrás de seus contos, além de Por Quem os Sinos Dobram, e vou dizer: o cara é muito injustiçado pela crítica.
Até hoje, li três romances de Hemingway e muitos contos. Os romances são As ilhas da corrente, O sol também se levanta e O velho e o mar. Só gostei deste último e o mais fraco é As ilhas da corrente. Quanto aos contos, gostei muito e mais que qualquer um de Os assassinos – tem muita tensão e ritmo. Acredito também que Hemingway é um autor injustiçado por muitos críticos. Há quem não goste de O velho e o mar.
Oi,
Sabe que eu li, um livro do Hermingway. Logo em seguida, li sua biografia.
Nunca mais, quis lê-lo, em parte porque, não sei se gostei da sua escrita…
Mas, mais por preconceito, achei ele fraco, sem criatividade escolhendo o suicídio como o pai… Além do mais extremamente vaidoso, devia ter um problema de conquistador e querer as mulheres aos pés. Bem foi a impressão que tive, achei muito egocêntrico…
Por conta disso, não tenho vontade de voltar as suas obras pode??
Pura antipatia… rsrsr
PS: Até porque, temos que tomar cuidado com as biografias… Ah e Meia Noite em Paris é tudo de bom né, poder ver os escritores clássicos num filme, voltar ao passado. Eu tb queria ter vivido na Belle Èpoque, ou na Paris dos escritores!!!
Abç
Orquidea