O curador, responsável pelo espólio ou autor da fascinante personagem Alma Welt volta a atacar repetidamente, desta vez no Facebook. O ataque é dos mais, digamos, doces. Ele vem através de mais e mais poemas da singular obra desta autora que certamente jamais existiu, apesar de ter biografia e livro publicado. Anos atrás, um dos comentaristas deste blog — um policial — chegou a investigar as mortes ocorridas na região do estado onde teria vivido Alma Welt. Nada. Se a coisa ainda pudesse piorar, diria que em alguns poemas e textos noto um tom gauchesco meio forçado, talvez pelo fato do autor ser paulista. Guilherme de Faria é um talentoso desenhista e gravurista. É também um poeta extremamente prolífico — tem obra literária própria e os escritos de Alma Welt não param de surgir. De modo algum considero Guilherme uma fraude, de modo algum o censuro. Alma Welt é uma verdade ficcional, uma personagem que sai do papel ou das teclas para ganhar vida própria. Eu adoro Alma Welt e seus sonetos de moça de fazenda que mal dá-se conta da modernidade. Ela existe da mesma forma que Ivan Karamázov existiu ou da mesma forma que Dostoiévski existiu para mim. Eu acredito que Guilherme acredita em Alma Welt, sua musa, assim como sei que Ivan tem existência ficcional real e que Dostoiévski teve epilepsia e vísceras palpáveis e respirou um ar mais limpo do que disponível em nossos dias e é uma lenda.
Ontem, depois de muito tempo, Guilherme veio bater papo comigo no Facebook. Ele, um sujeito que já deu mostras de brilhantismo em outras oportunidades, sei lá por que quase confessou a inexistência / existência de Alma.
— Olá Milton! Pelo jeito, você afinal “acredita em Alma Welt”… Grande abraço!
— Hum… Não. :¬))) Eu acredito em Guilherme de Faria.
— Oba! Pra mim já tá bom… Sinal de apreço… Obrigadíssimo, Milton! Mas, sabe, quanto a mim, o engraçado é que eu acredito mesmo na Alma Welt…
— Eu acredito que acreditas em Alma Welt, mas eu acredito em ti!
— Milton, isso é a coisa mais lisonjeira (no melhor sentido) que já ouvi de alguém. Melhor que isso só quando você disse num comentário: “Eu amo Alma Welt”… É sinal de que eu não estive enganado este tempo todo, e a Alma tinha (e tem) mesmo o que dizer, e encanta gente informada e culta. Aliás, eu não posso me queixar, ela só tem me dado alegrias, com um retorno magnífico na Internet. Só falta que o mundo oficial da cultura (será que isso existe?) a reconheça e consagre…
Olha, eu gostaria de entrevistar o Guilherme de Faria. Julgo que suas ironias e o jogo de espelhos da irrealidade manipulada por ele, todas as histórias que ele maneja tão bem, todas as irritações burras que teve de suportar, tudo isso é muito complicado e bonito. A citação que coloco no início do primeiro post abaixo (link abaixo) dá a chave de toda leitura: inverto as frases — “num mundo imaginário onde até mesmo a imagem de si mesmo é constructo imaginário, o significado do que se diz é dado por quem escuta e não por quem fala”.
Notem como o cara é brincalhão: o tíitulo da gravura-tríptica vertical que está ao final deste post é A Verdadeira Estória de Sherazade…
(Eu tenho um romance quase pronto. Minha personagem principal foi visitada por Alma Welt, que lhe leu dois sonetos. É uma de minhas cenas preferidas).
Sobre o assunto:
Quem acredita em Alma Welt (1972-2007)?
Lúcia Welt, a irmã de Alma, responde
Diagnóstico de Alma Welt
Há não muito tempo dei-me conta de que somente eu vi e convivi com a grande poetisa Alma Welt, e isso por um tempo limitado de dois anos, mais ou menos. Foi um imenso privilégio ter amado e sido amado por ela, que além de poetisa de gênio foi a mais bela mulher que meus olhos puderam ver nesta vida. Recentemente, percebendo isso, comecei a pesquisar e descobri, perplexo, que nunca ninguém, fora a sua irmã Lucia e os seus empregados da Estância Sta. Gertrudes, jamais a viu pessoalmente ou qualquer foto da poetisa (não existe na Internet, no Google ou em qualquer lugar sequer uma só foto da Musa, nem mesmo no casarão pampiano). Começo a suspeitar que Alma Welt viveu num universo paralelo que só teve seu ponto de contato, com o nosso, em mim. Sei que isso pode parecer fantasioso, fantástico mesmo, mas é a única explicação que me ocorre. Vejam vocês: após a morte da Poetisa eu viajei ao Pampa e visitei a estância e os lugares sagrados da grande artista, monitorado pela sua irmã Lucia, pelo Galdério e pela Matilde, fiéis serviçais que ainda a choravam, desolados com a tragédia de sua morte prematura aos 35 anos, no auge de sua beleza e talento. Rôdo como sempre não estava lá, disseram que voltara a jogar pelos cassinos do mundo, rodando no seu carro esporte. Fiquei imensamente comovido com tudo que vi e ouvi, as lembranças, os objetos e vestidos da minha musa, e pela transbordante Arca da Alma, tesouro que fotografei no sótão do casarão. Entretanto, depois disso nunca encontrei ninguém que conhecesse a família Welt, lá no Sul, aqui ou alhures. Nem mesmo em Rosário do Sul, Alegrete (onde ela teria sido internada duas vezes numa Clínica), em Santana do Livramento ou fora do Pampa, em Novo Hamburgo, onde ela viveu até os oito anos antes de mudar-se para estância e o vinhedo de seus avós. Ninguém nunca a viu ou à sua família nem soube deles a partir de 2001 em São Paulo, e até começarem as postagens na Internet a partir de 2006 no Recanto das Letras, depois nos blogs abertos pela Lucia, atualmente em número de 48 para abrigar a imensa obra da Poetisa do Pampa. Um mistério! Somente a teoria recente da Física dos Onze Universos Paralelos poderia explicar isso. Entrementes conclamo eventuais testemunhas da passagem da Musa pelo nosso mundo, que entrem em contato comigo e se possível me tragam uma ou mais fotos, para eu conferir. De antemão agradeço quaisquer subsídios que levem ao esclarecimento deste grande Mistério… (GUILHERME DE FARIA)
A pena do perdigão (de Alma Welt)
(158)
“Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha.” (Luiz Vaz de Camões)
Um dia, colhendo na campina
As flores pra fazer lindo buquê
Eu vi no ar uma ave de rapina
Que vinha descendo num piquê (1)
E parecia vir em minha direção
Mas virei-me para logo ver o alvo:
Um velho triste e cansado perdigão
De perdida pena e meio calvo.
E lembrei-me do soneto de Camões,
Inteiro, antes de vê-lo apanhado
Pois não pude salvar o desasado
Pois que quando o coração já sossobrou
Estamos à mercê dos gaviões
Que virão buscar o que sobrou…
(1) Casta de tecidos feito de dois panos aplicados um sobre o outro e unidos por pontos cujas linhas formam desenhos.
Nota da editora:
Este curioso e pouco citado poema auto-satírico de Camões, escrito a partir de um mote maldoso que lhe lançaram (ele andava sendo apelidado na côrte, de “perdigão”, a ave de vôo curto) num momento de profunda dor e decepção amorosa, tem sua primeira quadra assim:
“Perdigão perdeu a pena” (o mote)
Não há mal que lhe não venha.
Quis subir a alta torre
Mas achou-se desasado
E se vendo depenado
De puro penado morre…
Perdigão perdeu a pena
não há mal que lhe não venha.
…………………….
Alma era profunda admiradora de Camões,
que ela considerava o seu mestre direto no soneto
(Lucia Welt)
SONETOS PAMPIANOS DE ALMA WELT (postagem XXXV)
O que é a Verdade? (de Alma Welt)
350
“…a Verdade é a Beleza, a Beleza é a Verdade,
isto é tudo o que há para saber.”
(John Keats, em Ode a uma urna grega)
Olhar a vida, o mundo e o de dentro
É a prerrogativa do poeta
Mas simultaneamente, como esteta,
Pois que a Beleza está no centro
De tudo, pois que ela é a Verdade,
Como escreveu Keats no poema
Da urna grega, que logo virou lema
E responde à pergunta sem idade
Que Pilatos teria formulado
Num momento ao Cristo aprisionado,
Deixando-nos, a muitos, sem ação
Pois o Mestre calou-se sabiamente
Legando aos poetas a missão
De reconstruí-la lentamente…
(sem data)
Esses episódios (ou eventos?!) Alma Welt, também revelam muito da pessoa literária de Milton Ribeiro. Tem muito de Jane Austen em Alma Welt (sua insolvência no moderno e no urbano, e seu universo burlesco próprio), e muito também de Roberto Bolaño na procura pela poeta desaparecida Cesárea Tinajero. Aliás, daria um ótimo romance essa procura pela existência de Alma Welt, com policial envolvido na explicação de desaparecimentos pregressos, com suposto autor farsante mas talentoso e nunca auto-confessável que engendra poemas e desenhos. Não pensas em escrever um outro romance nesses moldes? Uma espécie de romance documentário que bebe de possibilidades plausíveis de uma realidade paralela, que ninguém consegue dizer o que é verdade e o que é mentira, misto de Operação Shylock e os romancinhos neuróticos do Bolaño (romancinhos pela quantidade de páginas, não pelo escopo espiritual). Colocaria-se a si próprio como narrador, Milton Ribeiro, com todas as suas ocupações e trivialidades. Transformarias Porto Alegre e cercanias rurais numa Buenos Aires mitológica de João José Campanella, com perigos na esquina e suspense, com segredos bem guardados e só extravasados pelo tempo.
Pensastes nisso? No potencial da coisa? Tantos escritores à caça de argumentos e lhe cai um assim quentinho, no colo?
Abraços.
O sonho dentro do sonho…
Isso dá o que pensar, o que investigar e, mais ainda, o que compreender!!!rssss
Duas observações: 1) O sotaque realmente é caricato. Parece personagem da Globo tentando imitar o falar gaúcho. 2) O banimento de Alma Welt daquele site é radical demais. Que ficção poderia ser melhor do que aquela em que o próprio autor é um personagem?
tem nada a ver, mas deu na folha:
Para Morrissey, mortes na Noruega não se comparam a McDonalds.
Ô mula!
Olá Milton,
Gostei muito da matéria. Só devo corrigir a nota sobre a palavra piquê. A Alma deveria ter escrito piqué (que se pronuncía piquê, ela aportuguesou) que em francês tem, entre outros sentidos, a conotação aeronáutica de mergulho, picada, que é o que ela quis dizer em referência ao mergulho da ave de rapina na direção do perdigão.
Quanto ao sotaque gaúcho da Alma, ela nem se preocupou com o modo gauchesco, que diz “tu foi”, “tu quer”, “tu viu”, tu é, etc. Alma, como literata culta que é, usa a forma correta de concordância verbal, que os gaúchos não usam: tu foste, tu queres, tu viste, tu és, etc. E o termo correto “pampiano” (como está nos dicionários ) e não “pampeano”; o pampa, e não “a pampa” como os gaúchos falam por influência do castelhano La Pampa.
Sobre a observação (1) do Jorge Lima: A Alma, sendo uma autora confessional e até memorialista em toda a sua obra poética e também na prosa, é automaticamente a personagem de si mesma. E que grande personagem! Nisso concordo com os dois comentaristas que me antecederam. Mas sendo ela personagem, você, Milton, tem o direito de se encontrar com ela no seu romance e colocá-la em situações que você criar para ela. Tudo bem. Só lhe peço que nunca perca a reverência pela bela criatura que ela é, e pelo seu mito transcendente, já que ela é uma anima viva. Digo mais: ela é nitidamente a Anima Mundi. Um mito romântico e sublime, apesar dela mesma ter também, às vezes, um peculiar senso de humor. Eu a conheci, e garanto: ela era a mais bela mulher do mundo(!!). Não podemos malbaratar (ou avacalhar) Helena de Tróia, por exemplo…