Não sou nada original: sou mais uma pessoa que não acredita no politicamente correto. Principalmente no âmbito artístico, é algo que não funciona. Fico pensando no que seria uma versão politicamente correta do Monty Python… É possível? Sim, mas perderia toda a graça. O politicamente correto acaba com o humor e muitas vezes destrói a arte. Por exemplo, dois recentes filmes dramáticos, ambos candidatos ao Oscar, viram uma criancice em suas cenas finais em razão do politicamente correto: Tudo pelo Poder, onde a “consciência” do malvadinho recebe uma chamada na última cena, e Os Descendentes, onde os adúlteros são punidos. Esses filmes poderiam até ser muito bons se mantivessem algum ponto de contato com a realidade. Na realidade, sabemos, quase sempre os bons se ralam, dando lugar aos arrivistas. Fico imaginando a versão PC de Lolita, mas deixa pra lá.
Karl Kraus (1874-1936) não pisa na linha que separa o correto e o incorreto, Kraus vive dentro do incorreto de tal maneira que até este comentarista fica meio sem jeito. Os primeiros aforismos deste volume — que tem excelente tradução de Renato Zwick e luxuosa edição da Arquipélago — são um quase só de ataques à mulher. No início, a gente estranha, depois acha engraçada a misoginia de Kraus. Não se trata de hipérboles, ou seja, de intensificar algo até o inconcebível. É uma misoginia tão pensada, inteligente, antiquada e terrível que apenas pode ser suportada da mesma forma com que se admira Nelson Rodrigues e tantos outros autores que viviam em sociedades que aceitavam a misoginia e o machismo. Para a contemporaneidade, a genialidade de Kraus vem logo a seguir, quando ataca todo e qualquer ser humano e intelectual e jornalista e político. O mau humor de Kraus manifesta-se principalmente contra seu país de adoção, a Áustria. Aliás, a Áustria também é objeto do ódio de outro gênio indiscutível do século XX, o grande Thomas Bernhard. Com efeito, deve ser um país habitado por um povo repugnante, mas produz bons artistas. Kraus, obviamente, era um colecionador de inimigos.
Os aforismos do livro da Arquipélago foram selecionados em três coletâneas que Kraus publicou em vida: Ditos e Contraditos (1909), Pro Domo et Mundo (1912) e De Noite (1919). As coletâneas tiveram origem na virulência que o autor demonstrava nas páginas do Die Fackel (“A Tocha”) — revista que fundou e da qual foi praticamente o único redator durante quarenta anos. Paradoxalmente, Kraus, um dos maiores escritores satíricos em língua alemã do século XX, trabalhava na imprensa, apesar de odiá-la minuciosamente. Odiava como ninguém a estupidez e a ignorância dos jornalistas de seu tempo. Seus temas são a política, a filosofia, a imprensa e o papel do artista na sociedade.
São pequenos textos e frases furibundas e geniais. Seu autor insiste que todos os aforismos devem ser lidos mais de um vez. É horrível ter que dar razão a alguém tão arrogante, mas o fato é que na segunda leitura cada um dos aforismos ganha significado duplo ou triplo. Fazer o quê? Há muito que aprender com as frases curtas de exatidão milimétrica e múltiplo sentido de Kraus.
A seguir, alguns petiscos:
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A relação dos jornais com a vida é mais ou menos a mesma das cartomantes com a metafísica.
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A expressão “laços de família” tem um ressaibo de verdade.
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A vida de família é uma invasão da vida privada.
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Muitos têm o desejo de me matar. Muitos, o desejo de ter dois dedos de prosa comigo. Daqueles a lei me protege.
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As penas servem para intimidar aqueles que não querem cometer crimes.
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Não há criatura mais infeliz sob o sol do que um fetichista que anseia por um sapato feminino e precisa se contentar com uma mulher inteira.
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Eles tratam a mulher como se fosse um refresco. No entanto, não admitem o fato de as mulheres sentirem sede.
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Formação é aquilo que a maioria recebe, muitos passam adiante e poucos possuem.
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Propostas para que essa cidade volte a conquistar minha simpatia: mudança de dialeto e proibição de reprodução.
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Não ter pensamentos e ser capaz de expressá-los — eis um jornalista.
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Preciso estar outra vez entre os seres humanos. Pois neste verão, em meio às abelhas e aos dentes-de-leão, minha misantropia degenerou gravemente.
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Muitos talentos conservam sua precocidade até idade avançada.
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Não tenho mais colaboradores. Eu tinha inveja deles. Eles afastam os leitores que eu mesmo quero perder.
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O que distingue Berlim e Viena ao primeiro olhar é a observação de que lá se consegue um efeito ilusório com o material mais desprovido de valor, enquanto que aqui, na produção do kitsch, se emprega apenaas material autêntico.
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Quando o pecado se atreve a avançar, ele é proibido pela polícia. Quando se esconde, recebe um alvará.
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A ética cristã conseguiu transformar heteras em freiras. Infelizmente, ela também conseguiu transformar filósofos em libertinos. E graças a Deus, a primeira metamorfose não é assim tão confiável.
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A sexualidade mal recalcada causou perturbações em muitas casas; a bem recalcada, no entanto, perturbou a ordem do universo.
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Ao sadio basta a mulher. Ao erotista basta a meia para chegar à mulher. Ao doente basta a meia.
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“Não se permitir mais ilusões”: é então que elas começam.
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Devemos ler todos os escritores duas vezes, os bons e os ruins. Uns serão reconhecidos, e ou outros, desmascarados.
“Se o petisco for tão bom quanto o prato principal, acabou-se o prazer do jantar. Se o petisco for muito ruim, não convida ao jantar”.
Aforismo XXIV.
Claudia, aí estão os petiscos.
Cláudio, o prato principal também é de primeira!
Beijo e (grande) abraço.
Ia citar os que eu mais gostei, mas ambos falam da mesma coisa…
São as duas sobre a família?
Bem frio, Milton!
As religiosas?
Não, não! E eu achando que era óbvio!
Promoção relâmpago – adivinhe os aforismos certos e ganhe um livro chinês. Valendo!
Caras assim como Kraus e Bernhard fazem muito para o desenvolvimento da espécie. Uma pequena população de Kraus faria qualquer pais virar uma potência intelectual. Boa parte da ótima autobiografia de Canetti (lançada na íntegra dos 3 volumes pela Cia de Bolso, a preço baixo_ um prazer como poucos livros podem proporcionar) gira em torno de Kraus. Canetti diz da grande febre que Kraus provocou na Alemanha de seu tempo, em seus discursos realizados em teatros que ficavam lotados vários dias da semana. Canetti diz que boa parte dos escritores em formação daquele tempo, que devoravam Kraus, tiveram que passar por esforços ferrenhos de expurgo da influência para poderem ter voz própria, inclusive Canetti.
Não sabia desse livro. Vou atrás.
“Praticamente todo misógino baseia sua condição em um paradoxo: o amor que sente é o ódio que, como ser inteligente, se obriga a sentir”
Todo misógino tem um que de machista inveterado e conquistador incompetente.
Por isso mesmo, no mais das vezes, prefere buscar o “sexo frágil” obtido sem conquista para, em vez de amá-lo, agredí-lo de alguma forma, dando vasão a sua frustração.
Há um bom livro, cujo nome me escapa, que trata da efervescência intelectual da Viena da primeira metade do século passado. De como ela gestou uma geração inteira de pensadores agudos. Wittgenstein, até onde eu sei, gostava do Kraus — e também do Weininger, outro misógino que vale a pena conferir.
Sempre olhei esse livro com desconfiança, da próxima vez eu me aproximo 😀
Não conheço, mas se o Milton e o SUL21 recomendam, vou à cata.
Maria