O Natal de 2001 estava próximo e a situação era muito complicada. Eu me separara havia seis meses e estava me dando conta do tamanho do erro que cometera ao me despojar de tudo. Anos depois, perguntei a um psiquiatra amigo sobre o motivo que levava os pais que não ficam com os filhos a se desfazerem da maior parte de sua renda e de seu patrimônio. Sua resposta foi tão exata e óbvia que me senti humilhado por nunca ter pensado nela: “Ora, uma separação, ainda mais com filhos, gera um estresse descomunal e muitos pais pensam que deixar tudo para trás os livrará dele. O que eles conseguirão é apenas uma sensação de adiamento”. Foi o que fiz comigo. Culpa e mancada minha, claro. Minha sensação após o acordo era a de que poderia enfim dormir melhor. Ficou lá a herança de meu pai na forma da quitação de um apartamento com a finalidade de comprarmos uma casa maior, ficou lá a casa maior, ficaram um monte de compras que foram feitas para habitarmos a tal casa, ficaram lá dois filhos. O que não ficaram lá foram as horas e horas que passei como pãe para que minha ex pudesse fazer seus mestrado, doutorado, pós e sei lá mais o quê. Estas levei comigo e elas revertem em ganhos de afeto até hoje. Ainda fico infeliz quando chove nos finais de semana. É que eu costumava sumir durante os sábados e domingos com as crianças para que minha ex pudesse estudar e escrever suas teses sem ser perturbada. Às vezes chovia e, quando não tinha mais cinema para ver ou lugares para ir, a solução de desespero era o aeroporto. O Bernardo gostava de ver os aviões e também gostava das lojas que vendiam quinquilharias infantis — principalmente carrinhos — para pais que voltariam para seus filhos em outras cidades. Por isso, fico até hoje — mesmo que more com a Bárbara e tenha excelente relação com o Bernardo — um pouco triste quando chove nos finais de semana. Sem os parques, onde irei com os guris?
Mas voltemos a minha história. Estávamos perto do Natal e eu tinha nas mãos a porcaria que tinha feito. Pagava grande parte dos gastos da Bárbara e do Bernardo e via o plano de passar no máximo três meses na casa de minha mãe indo por água abaixo. Parecia que voltaria a ser filho para sempre. Minhas reservas estavam acabando e eu pagava mais do que recebia. Pior, a fase depressiva da separação fizera-me pensar que eu nunca mais me interessaria por alguém, mas não era nada disso. Com quarenta anos, qualquer homem é um sucesso com as mulheres de trinta e tantos. E elas são maravilhosas. E eu via que estava sem casa, com um salário insuficiente para os gastos do dia-a-dia e sem ter como reorganizar minha vida num período vislumbrável. Aí, comparava minha situação com a do outro lado e me impressionava como tudo ia bem por lá. Depois, através do imposto de renda de minha ex, tive a informação clara do motivos que levavam a tanto conforto. Quando tentei um naturalíssimo novo acordo, a resposta foi negativa. O bom humor, a civilidade e a solidariedade que ela manteve no período pré-transferência da casa para o seu nome evaporara com a assinatura do contrato.
Eu me sentia como se estivesse num bote que estivesse fazendo água no meio do oceano. Tinha que ficar bem atento porque uma marolinha qualquer poderia fazer tudo afundar. Então, fui comprar os presentes de Natal. Apertei aqui e ali para tudo sair direitinho e funcionou. Não lembro do que dei para os guris, mas deve ter sido um sucesso, pois tenho uma memória implacável para tudo o que dá errado, esquecendo minuciosamente do resto. Porém, dez dias depois do Natal, havia o aniversário de onze anos do Bernardo e não via outra saída senão deixar a data passar em brancas nuvens. Sofria com aquilo, sofro novamente agora ao lembrar. Há toda uma educação que nos obriga a sermos provedores decentes. Tinha filhos de onze e oito anos e pensava em evitar confissões que fizessem com que ele pensasse: “se ele é este fracasso, estou fadado a ser outro?”.
Mas fui falar com ele. É óbvio que a palavra derrota me rondava. Sem entrar em grandes detalhes, expliquei que o dinheiro estava difícil e que seu presente atrasaria. Quando disse isso, nós estávamos saindo de uma quadra de futebol de salão onde tínhamos jogado e ele me respondeu que eu não precisava me preocupar, mas que gostaria de receber seu presente na data certa. Como assim? É que ele queria só algumas bolinhas de tênis para brincar com a Batalha, sua labradora. Quantas? Umas três, mas que eu poderia dar uma de cada vez para que não ficasse pesado. Ele também queria evitar que todas ficassem cheias de baba ao mesmo tempo. Ele recebeu a primeira bola em 4 de janeiro, na data correta.
Elas serviram a ele como poucos brinquedos. Eles moravam — ainda moram — numa rua tranquila e muitas vezes, quando eu chegava para buscá-lo, o Bernardo estava com as tais bolas, matando a cachorra no cansaço. Sempre me ficou uma dúvida: se aquilo foi um oportunismo que veio a calhar porque ninguém lhe daria algo tão barato ou se foi pura bondade com o pai subitamente empobrecido. Acho que foram ambas as coisas, só pode.
Lindo e significativo depoimento. Às vezes os pais acham que os filhos sempre esperam pelo melhor e que dando o melhor torna-os mais felizes. Nada disso. Para filhos, o melhor presente que existe é ter o pai vivo e presente em suas vidas, mesmo que empobrecido momentanêamente após uma separação.
Textos assim sempre me dão a impressão de que a pessoa colocou o fígado na mesa. E o que dizer diante de um fígado? Não sei, tudo fica tão pequeno…
Gostei muito do texto. E comentário da Fernanda é perfeito.
Espetacular !
Nossa memória é seletiva.
Isso me lembra o famoso agradecimento de uma tese: “ele que todo dia é um grande pai, o que torna tão simples para mim ser (ou pensar que sou) uma boa mãe”… Tu, por sorte, não tens que ficar questionando se foste ou és um bom pai. Foste e és, simples assim, e, além de tudo, não foste ou és através de facilitações que o dinheiro pode comprar mas dedicando teu tempo e atenção aos filhos de forma persistente, consistente e até antipática quando necessário.
O Sul 21 está te fazendo um bem danado, cara! Vejo a alegria em seus textos, o grande tesão da escrita. Seus longos textos sobre escritores, como o mais recente sobre Tolstói, revelam uma nova energia que, por exemplo, no início do ano passado (mais ou menos), parecia que você perdera. Não te conheço pessoalmente ainda, mas é muito bom ver esse entusiasmo: e os textos vem com a marca autoral de Milton Ribeiro, a multifacetada simpatia que vai da canastrice à emoção fina. Talvez eu esteja aqui viajando, e que tudo não passe de técnicas de um triste e treinado ludibriador, mas isso, até quando sei, nunca ocorreu na história da escrita. Impossível se esconder por mais de cinco frases ou até o final do parágrafo.
(Pronto, porra, sentimentalizei!)
Belo texto, foi um prazer lê-lo, e continue assim.
Belo texto!
O filho do meu irmão age exatamente assim, por saber que a meia-irmã, do primeiro casamento dilapida suas finanças (ajudada pelo descontrole e inaptidão da mãe para com gastos ordinários ) sem o menor remorso. Ex-Mulher é que nem os furações tropicais, bem disse a piada. Tente humilhar-se e tentar um acordo com elas. Basta isso para que a amabilidade da ex e o amor-próprio do sujeito, vá por água abaixo.
Fiquei espantado com a semelhança de acontecimentos entre tua vida e a minha ao narrar os teus momentos de criação dos filhos e a ex. Realizei exatamente a mesma coisa: criei os filhos, fui pai e mãe. E ela fez seu belo mestrado e doutorado enquanto eu tomava conta. Depois nem um agradecimento. Me desfiz de tudo e todos. Esses dias colocaste aqui o álbum duplo do Milton Nascimento e Lo Borges, Clube da Esquina! Quase chorei. eu tinha 600 bolachões. Me desfiz de todos. Que dor sinto hoje. No mais teu texto é excelente e belo. Passei pela sangria na pensão também. Tentei revisão. ganhei uma merreca. Agora começa a melhorar porque o filho mais velho está estudando na Ufrgs. abçs!
Não lacrimejaste ao escrever tão belo relato?
No final, confesso que tive vontade.
Um dos modelos que tenho para a minha filha é a Barbara. Gostarei de vê-la, a Júlia, nas poses descoladas que vejo a Bárbara nas fotos que expõe aqui. E sempre penso naquilo: “pai, tô brincando com a imaginação.”
Eu acho que a Bárbara vai escrever muito bem. Ontem, ela me mostrou um texto que gostaria que fosse para a Opinião Pública do Sul21. Olha, era muito bom. Espero que ela finalize logo.
Poxa, que texto!
pelas babas do profeta, q texto SENTIDO.
Milton, conheci você pela rede em meados de 2004 ou início de 2005, e pessoalmente nos conhecemos em 2010. Pois bem. Por que estou a lembar disso? Porque percebo que, aproximadamente, de oito em oito meses, a temática desse post volta à baila. Ou seja, percebo que você ainda sangra um pouquinho com o acontecido. Bem, o que tenho a comentar seria mais ou menos aquilo que o Charlles já disse:
“O Sul 21 está te fazendo um bem danado, cara! Vejo a alegria em seus textos, o grande tesão da escrita. Seus longos textos sobre escritores, como o mais recente sobre Tolstói.” É isso…
PS: o outro lado conheço ideologicamente muito bem, pois faço parte desse meio conhecido por acadêmico e constituído por seres denominados de funcionários públicos: não conheço outro lugar no planeta onde a onipotência reine tão plenamente.
Excelente texto.
E o pior é que a previsão é de chuva com vários milímetros neste final de semana.
E de chorar mesmo, só a situação do Inter…
Belíssimo texto. De verdade.
Milton, há poucos dias atrás, dentro de uma conversa, ouvi tu fazeres referência à tua estatura física, se não me falha a memória, algo como “um nanico como eu!”
Lendo este texto, fica comprovado que a dimensão humana nunca se comprovará através de nosso físico, mas sim do nosso intelecto, dos sentimentos e valores que trazemos, do humor, da ironia. És um grande pai, um grande ser humano, um bom amigo, além de nos brindar com teus ótimos textos. Quando li este, te considerei franco, desvendado e corajoso, pois o tema é deveras delicado….O que esperar de Bernardo e Bárbara? se na infância já refletiam os ensinamentos e a sensibilidade, para o futuro, com certeza o melhor… Parabéns!
Crônica enternecedora da paternidade moderna. Bravo!
Quando me separei, aos 40 anos, e encontrei uma namorada noutro estado (precisando para lá transferir residência, devido a solidez da relação), minha ex questionou duramente, alegando que eu poderia ter arranjado uma namorada na mesma cidade e que eu estava fugindo de minhas obrigações como pai. Ou seja, teria que prevalecer o critério geográfico. Conselho: nunca case com uma italiana. Você vai se arrepender!
Eu tenho uma raiva de ti, Milton, uma raiva, porque tu fazes o que queres comigo. Se queres me fazer rir, ok. Se queres me fazer chorar, ok. Ainda estou pensando na Batalha… essa que a gente vence e essa que ama os filhos da gente quando a gente está ocupada fazendo as coisas da gente e de gente. Abçs.