Era o ano de 1988 e estávamos, eu e minha primeira mulher, procurando apartamento. Avisamos a um corretor amigo que queríamos algo muito bom e barato, bem localizado e em excelente estado. E começamos o périplo de ir de apartamento em apartamento indicado. Eu e Suélen (ou Pâmela, nunca lembro seu nome) mais ou menos concordávamos nas avaliações. Então, o corretor resolveu nos mostrar um apartamento especialmente bem localizado. Era na esquina da Venâncio Aires com a Osvaldo Aranha, bem na frente do Pronto Socorro, próximo à Redenção, aos bares do Bonfim e, fundamentalmente, quase ao lado do trabalho de minha ex, no Hospital de Clínicas. Como se não bastasse, o imóvel ficava exatamente sobre um pequeno supermercado. Uma verdadeira maravilha!
Como o mundo nem sempre é perfeito, a fachada do edifício acompanhava a ampla curva da esquina. Tinha janelas grandes em curva e depois ia afinando lá para trás a fim de ajustar-se aos outros prédios. Para que meus sete leitores entendam, digo que cada um dos andares tinha o formato de uma fatia de pizza. Para vocês ficarem certos de que eu nunca minto, abaixo temos uma foto do edifício de costas. A imagem do Google Maps faz referência ao Supermercado Nacional no térreo, observe bem.
Pois então nós chegamos ao edifício e subimos a fim de conhecer o apartamento. A dona ainda morava nele. Fomos recebidos por uma senhora ansiosa que cantava as qualidades de sua habitação à perfeição. E, com efeito, parecia tudo muito bem cuidado e sem problema nenhum de infiltração. A cozinha, impecável e seca, os banheiros idem. Pintura antiga, mas, como disse, seca. Caminhamos para os fundos e ela nos alertou que talvez sua filha estivesse em casa. Aguardamos educadamente que ela abrisse a porta do terceiro quarto da casa, o dos fundos. Disse alguma coisa lá para dentro e nos chamou para conhecer o recinto. Entramos.
Vi uma moça entre os dezoito e vinte anos, sentada em sua cama, com as costas encostadas no espaldar. Mas antes de registrar sua posição no quarto, recebi duas informações realmente claras. Claríssimos eram seus olhos, azuis; menos claros eram os cabelos, apesar de castanhos claros. Raquel era uma mulher bonita, não era nenhuma modelo mas era bonita e esta foi a primeira informação. A segunda foi que ela nos odiava de forma incondicional, ela queria me (nos) ver mortos. Sua cara de ódio era das coisas mais lindas e inequívocas que tinha visto até aquele dia. Fui olhar a paisagem da janela dos fundos, fazendo planos para ficar numa posição favorável a mim: eu estaria nas sombras, protegido pela luz atrás de mim e ela iluminada pela mesma. Ela estava vermelha, roxa de ódio. Fiquei alguns longos segundos ali, fingindo que avaliava o tamanho do quarto.
O ódio era tão imenso, pleno e jovem que eu jamais pensaria na Raquel rosa amorosa da Bíblia, esposa favorita de Jacó. Mas surgia algo estranho. Raquel agora me fazia cara de nojo. A cara era tão obviamente de nojo que comecei a rir, atitude que não foi retribuída. Raquel estava muito irritada e sua mãe não dirigia seu olhar para ela.
Voltamos ao restante do apartamento e em tudo que via, via Raquel e seu olhar. Concluí facilmente que ela não queria sair dali. Imagine, alguém jovem, morando perto de tudo… Decidi perguntar pelo motivo da venda. A mãe de Raquel usou uma franqueza que demonstrava o fato de não ser uma vendedora: disse-me que seu marido tinha sumido e ela estava sem dinheiro.
— A sua filha gosta daqui?
— Adora, a Raquel não quer sair por nada nesse mundo.
Aquilo fez com que eu passasse a não querer mais o apartamento, mas via que Pâmela (ou Suélen, nunca lembro) estava cada vez mais satisfeita com o imóvel. O nojento do arquiteto tinha feito um trabalho notável com aquela fatia. Todas as peças se encaixavam com lógica. A pizza estava escondida por artes demoníacas. Tudo estava no lugar. Nada parecia torto, um verdadeiro milagre. A mulher contava que fazia suas compras no supermercado do térreo pelo telefone, fato que fez Pâmela quase gritar de alegria. As compras eram recebidas na porta do elevador de nosso andar! Para ela, tudo corria às mil maravilhas, só que Raquel tornara-se um dificuldade intransponível. Eu não queria viver pensando nela. Era impressionante, terrível a indignação da moça. Não parecia ser alta, não era grande, mas impôs uma barreira que eu não seria capaz de derrubar.
Procurei Raquel no rosto de sua mãe. Decididamente, os olhos eram do pai fujão. Os cabelos da velha eram pintados, mas o formato do rosto e a boca eram as mesmas de Raquel, só que tudo era nela era esmaecido pela necessidade de ser servil e simpática conosco. A venda e a necessidade dobrara a mãe, mas eu não podia fazer nada por ela. Raquel era invencível.
Na saída, minha mulher estava encantada, mas eu lhe cortei o entusiasmo rapidamente.
— De jeito nenhum vou viver num lugar que mais parece um monte de pizzas empilhadas com um supermercado na base. Esse apartamento é uma merda. Um corredor comprido cheio de portas.
— Mas…
— Nós dois temos poder de veto e eu veto este.
Tá sem imagem.
É que eu tinha publicado sem querer ontem à noite… nem tinha terminado de escrever.
Baita crônica Milton. E fica a pergunta: por onde andará Raquel?
Queria mesmo era saber onde anda a Suélen/Pâmela.
Olha, Geovane, deve estar na casa dela a esta hora, o que seu eu?
Se eu tivesse gostado do apartamento, ia com Raquel ou sem Raquel. O voto do Luiz valia apenas 40%.
Foda mesmo é comprar um apto e deparar com a ex e novo marido, que tu nunca mais viu e achando que estivesse morando em Tremedal, e agora será atua vizinha de andar. Fato verídico de um amigo.
Pesadelo!
Muito legal essa crônica. Eu compraria este apto. Só pra ver a Rachel se
explodir de raiva!!
Aconteceu algo parecido comigo, Ivo. Fui arrastado a um apartamento que ficava de frente para a janela da minha ex. E eu com aquela cara, sem saber o que dizer. Mas meu poder de veto também funcionou na ocasião.
Poderias ter negociado o apartamento com a Raquel junto.
haha Mto bem escrito.