Publicado em 28 de outubro de 2012 no Sul21
Graciliano Ramos viveu 60 anos e nasceu há 120, precisamente em 27 de outubro de 1892. Durante sua vida, publicou 10 livros. Tal simetria combina bem com o estilo do escritor – seco, elegante, de um regionalismo muito particular, discreto e onde estavam presentes mais a condição social e a psicologia do que as descrições de costumes e o ambiente. A política, aliás, apareceu em sua vida antes do escritor. Graciliano nascera em Alagoas, na cidade de Quebrângulo. Aos dezoito anos de idade, mudou-se para Palmeira dos Índios, onde o pai era comerciante. Em 1928, tornou-se prefeito. Um excelente prefeito. Permaneceu no cargo por dois anos, renunciando em 1930.
Durante sua gestão, tomava atitudes polêmicas como a de soltar os presos para que construíssem estradas. Outra curiosidade é que seu talento para a literatura foi descoberto a partir dos relatórios que escrevia como prefeito. Ao escrever um relatório ao governador Álvaro Paes, chamado “Um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928”, publicado pela Imprensa Oficial de Alagoas em 1929, o escritor se revela mesmo ao abordar assuntos de rotina da administração. Seus relatórios impecáveis, mas também irônicos e apresentados em forma livre, dificilmente seriam lidos sem estranheza e admiração. Após a renúncia, foi nomeado diretor da Imprensa Oficial de Alagoas. (Aqui, temos o relatório enviado pelo prefeito Graciliano ao governador de Alagoas em 1930).
E efetivamente foram tais relatórios que pavimentaram o caminho para a literatura. Eles foram levados ao conhecimento do poeta e editor Augusto Schmidt, que aconselhou Graciliano a escrever mais, porém a respeito de outros temas. Em 1933, foi o mesmo Schmidt que publicou seu livro de estreia, Caetés, o qual vinha sendo escrito desde 1925.
Entre 1930 e 1936, viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial e professor. Durante este período, publicou São Bernardo e, na tarde de 3 de março de 1936, após entregar o manuscrito de Angústia a sua datilógrafa, Dona Jeni, foi levado de sua casa, preso. O motivo era a suspeita – jamais formalizada – de que o escritor tivesse conspirado no malsucedido levante comunista de novembro de 1935. Preso em Maceió, Graciliano foi demitido do serviço público e enviado a Recife, onde embarcou com outros 115 presos no navio “Manaus”. O país estava sob a ditadura de Vargas. O escritor esteve preso no Rio de Janeiro — no Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção — e depois foi mandado para o presídio de Ilha Grande, onde passou a célebre temporada descrita em Memórias do Cárcere, livro apenas publicado postumamente. Com ajuda de amigos, consegue publicar Angústia, talvez sua melhor obra, em 1936. Foi libertado em janeiro de 1937, após dez meses.
O escritor Marcos Nunes observa, a respeito de Angústia: “Trata-se de um romance excepcional, que consegue ser ao mesmo tempo expressão de sua região e do mundo inteiro. A gente sai em frangalhos da leitura; é uma experiência quase única em literatura, porque o clima pesa em um contínuo massacrante mas, ao contrário do que se possa pensar, aquilo não nos faz rejeitar o romance, mas mergulhar nele como se dele pudéssemos extrair uma catarse de todo nosso sofrimento. A angústia é nuançada até a explosão desesperadora que nada redime enquanto tudo finaliza; a vida acaba, a do leitor continua e nunca mais será a mesma”.
É importante notar que o pessimismo de Graciliano não é produto de atuação ou de uma projeção. Não foi muito fácil ser Graciliano Ramos. As surras durante a infância; o adolescente inteligente a autodidata que lia Balzac e Marx em língua francesa; o aperto financeiro por toda a vida; as dificuldades para adequar-se à burocracia e aos caminhos tortuosos do Partidão; a prisão política em Ilha Grande; a volta à vida civil e ao inferno das dívidas; nada daquilo que era o material ficcional de Graciliano lhe era estranho. Havia autêntica tensão entre o homem, a atmosfera social e sua criação literária, como lembra seu biógrafo Dênis de Moraes, em O Velho Graça.
Após a prisão, o grande estilista Graciliano Ramos foi trabalhar como copidesque no Correio da Manhã. Seu livro seguinte foi Vidas Secas (1938). O livro, o primeiro narrado em terceira pessoa, aborda uma família de nordestinos retirantes às voltas com a seca, a pobreza e a fome. A narrativa não aponta apenas os problemas sociais, mas o efeito emocional que tais condições impõem aos personagens. Graciliano teve enorme cuidado com este livro, fazendo visitas frequentes à gráfica para ter certeza de que a revisão e as ilustrações não interfeririam em seu texto. Outros escreveram livros naturalistas sobre a pobreza do Brasil, mas talvez não da forma como fez Graciliano: sem opiniões do autor, sem discursos, sem indignação, com o mínimo de palavras, como se apenas abrisse uma cortina para a realidade e dissesse: é assim que é; eles se sentem assim.
A polícia de Vargas aparentemente o deixa em paz, mas anota em seus registros que na sede da revista “Diretrizes”, em 1940, o escritor frequentava assiduamente a sede da revista “Diretrizes”, junto de Álvaro Moreira, Joel Silveira, José Lins do Rego e outros “conhecidos comunistas e elementos de esquerda”.
Outro grande livro de Graciliano é o autobiográfico Infância (1945). Filho mais velho de um casal sertanejo de classe média, ele narra sua infância em meio a uma prole numerosa, afastado de manifestações de afeto e brincadeiras. A infância árdua, vivida na virada do século XIX para o XX, no interior de Alagoas, encontra suas maiores alegrias na solidão e na descoberta da literatura. Ao fundo, onipresente, pode ser espreitada a condição econômica, histórica e cultural da família.
O célebre Memórias do Cárcere (1953) é obra póstuma. É uma pena que este clássico tenho sido publicado com Graciliano morto meses antes de um câncer no pulmão. Falta-lhe o último capítulo. Sobra muita, muitíssima grande literatura nas esplêndidas páginas dos dois volumes de Memórias do Cárcere. Quando seu filho Ricardo perguntava sobre o final do livro, Graciliano respondia que faltava pouco, que era tarefa para uma semana. O título? Ora era um, ora era outro, Memórias do Cárcere ou simplesmente Cadeia. E o que pretendia com este último capítulo? Sensações de liberdade. A saída, uns restos de prisão a acompanhá-lo em ruas quase estranhas. Mas Graciliano nunca escreveu este final quase feliz.
Há uma querela a respeito do fato de que o texto de Memórias do Cárcere teria sido alterado por pressões do PCB. O neto de Graciliano, o escritor Ricardo Ramos Filho, desmente com veemência tal versão:
É importante que esse equívoco seja desfeito de uma vez por todas. Embora o crítico Wilson Martins e minha tia Clara tenham se esforçado para trazer a público essa versão fantasiosa, jamais, embora o Partidão quisesse, o texto original de Memórias do Cárcere foi alterado. Quem aceita essa ideia certamente não conheceu meu pai, ou mesmo minha avó Heloísa. Isso seria inconcebível. Posso lhe garantir que o Memórias do Cárcere conhecido, a menos do último capítulo escrito por Ricardo Ramos, meu pai, foi publicado exatamente como Graciliano o escreveu.
“Há uma literatura antipática e insincera que só usa expressões corretas, só se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de inverno e por isso ignora que há pessoas que não podem comprar capas de borracha. Quando a chuva aparece, essa literatura fica em casa, bem aquecida, com as portas fechadas. E se é obrigada a sair, embrulha-se, enrola o pescoço e levanta os olhos, para não ver a lama dos sapatos”.
Graciliano Ramos, em Linhas Tortas
Isso é tudo que não era Graciliano Ramos.
* Pessoalmente, tomo a liberdade de dedicar esta singela matéria a Ricardo Ramos Filho, neto de Graciliano e a quem tenho como amigo.
O Ricardo Ramos Filho é quem faz o prefácio do “Um novo caso”, que deve sair da gráfica HOJE….finalmente….
Sem dúvida, Graciliano foi um dos maiores. Sua escrita enxuta e profunda deveria ser referência para as gerações futuras. É lamentável que tal sábio seja apresentado nas escolas de maneira tão burocrática. A meu juízo, Graciliano deveria constar de maneira introdutória no final do ensino fundamental. E no ensino médio, mais do que lido, deveria ser amado… Na adolescência, perdi muito em não o ter lido tal qual ele merecia. Foi uma pena terrível a sua morte, tão cedo…: creio cá, com os meus botões, que, se o ilustre alagoano tivesse vivido somente mais dez anos, a cultura brasileira e universal conheceriam uma reflexão fundamental sobre o stalinismo, que seria útil ainda em nossos dias… Mas a vida não é da gente: é dela mesma… Contudo, no caso específico de Graciliano, poder-se-ia dizer que a morte foi buuuuuuurrrrrrrrrrrrrra.