Angústia, de Graciliano Ramos

Angústia, de Graciliano Ramos
Graciliano Ramos – Angústia (1ª edição)

Na tarde de 3 de março de 1936, após passar a noite anterior revisando o romance Angústia, Graciliano Ramos entregou o manuscrito para sua datilógrafa, Dona Jeni. Depois, às 19h, foi levado de sua casa, preso. O motivo era a suspeita – jamais formalizada – de que o escritor tivesse conspirado no malsucedido levante comunista de novembro de 1935. Preso em Maceió, Graciliano foi demitido do serviço público e enviado a Recife, onde embarcou com outros 115 presos no navio “Manaus”. O país estava sob a ditadura Vargas. No período em que esteve preso no Rio, que durou até janeiro de 1937, passou pelo Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção e depois foi mandado para o presídio de Ilha Grande, onde passou a célebre temporada descrita em Memórias do Cárcere.

Haviam desencadeado uma perseguição feroz. Tudo se desarticulava, sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de viver numa bárbara colônia alemã. Pior: numa colônia italiana”, escreveu Graciliano em Memórias do Cárcere, referindo-se ao nazismo e ao fascismo que tanta admiração causava ao governo brasileiro. Foi uma época terrível. Ou nem tanto. Afinal, ele esteva preso com Aparício Torelly, o Barão de Itararé, que garantia que tudo ia muito bem… No Capítulo 5 da Segunda Parte do livro, ainda descrevendo o que passou no Pavilhão dos Primários, há a comprovação de que a convivência com o Barão era bem mais efetiva que qualquer autoajuda de nosso tempo:

O Barão com o jornal que escrevia, “A Manha”

Apporelly sustentava que tudo ia muito bem [no Pavilhão dos Primários]. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando seu método, que não havia motivo para receio. Que nos podia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois esta desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela.

Angústia foi lançado no mês de agosto de 1936, durante a prisão de Graciliano Ramos. Naquele ano, o autor recebeu o Prêmio Lima Barreto, conferido pela Revista Acadêmica numa atitude encarada como desafiadora do regime.

Escrito após Caetés e São Bernardo, Angústia foi o terceiro romance de Graciliano. Nele, radicaliza-se seu estilo seco e contundente, assim como o foco na produção de uma literatura que una a ética ao fazer literário. Trata-se de um romance de tom confessional que acompanha em primeira pessoa a vida de Luís da Silva, funcionário público de 35 anos, tímido e solitário, que vive num bairro distante em uma casa caindo aos pedaços, acompanhado por ratos e desespero. Da mesma forma que em seus dois romances anteriores, Caetés e São Bernardo, também narrados em primeira pessoa, Graciliano apresenta personagens em grande conflito interno, buscando explicações sobre como agir e motivos para os acontecimentos que o atingem.

Graciliano: seco, direto, objetivo, estarrecedor

Além de trabalhar o dia todo, Luís completa o orçamento escrevendo, à noite, textos por encomenda para um jornal. Após curar-se de uma doença, retorna ao trabalho. Num fluxo de consciência escrito de forma seca e direta, Luís tenta entender seu passado com tamanha fúria que somos obrigados a lembrar que, na verdade, o existencialismo não começou apenas com Sartre, Camus e seus grupos após a Segunda Guerra Mundial.

Luís detestava todos e principalmente a si mesmo. Insatisfeito e pobre, frustra-se por sua vida inútil. Entregando-se à análise de sua vida, repassa-a desde a infância. O avô é um bêbado decrépito; o pai é um preguiçoso que vivia lendo e do qual herdara várias características, como o gosto pelas letras. Porém Luís, em crise, não consegue mais escrever, assediado por estes fantasmas e pela onipresente angústia.

Ilustração de Marcelo Grassmann para Angústia

Um dia, conhece a loira Marina. Pede-a em casamento, usando todas as suas economias para um enxoval. Porém, o gordo e eufórico Julião Tavares, com mais dinheiro, ousadia, lábia, posição social e, sobretudo, despreocupação, conquista Marina, que passa a desconhecer Luís. Humilhado, ele passa a desejar a própria morte. Quando vê que Julião abandonou Marina e fica sabendo que ela fez um aborto, cobre-a de ofensas em plena rua. Completa a obra fazendo mais bobagens. Todo o sofrimento e humilhação desaparecem e Luís passa a sentir-se forte, capaz e ativo. Porém, logo volta a angustiá-lo com o temor de ser descoberto. Não vai mais trabalhar, procurando destruir os indícios do que fez. Lava tudo e lava-se. A água tem importante papel no romance; é a purificação que percorre os canos sujos, conhecidos dos ratos. Mas Luís permanece em desvario, aniquilado, sufocado pela angústia, como o Raskonikov de Dostoiévski.

É curioso que um livro dedicado a um profundo estudo da frustração receba tantas homenagens e seja tão festejado. Afinal de contas, falamos de uma obra sem saída, cruel e violenta, cheia de amargura. Por que Angústia é tão importante? Porque é notavelmente bem executado; porque pela primeira vez na literatura nacional há um monólogo interior que parece não dirigir-se a um leitor, mas a si mesmo; porque Luís é muito nordestino, brasileiro e universal; porque comprova brilhantemente a célebre frase de Tolstói: “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”. A essência do romance é Luís. Quase não há diálogos e as cenas parecem ser jogadas com certo descontrole pelo narrador, como se transbordassem dele. É um monólogo-pesadelo. “Ninguém dirá que sou vaidoso referindo-me a esses três indivíduos” – disse Graciliano em discurso no jantar de jantar de seus 50 anos, em 1942, referindo-se a seus três primeiros livros — “porque não sou Paulo Honório, não sou Luís da Silva, não sou Fabiano”.

Mas talvez o homem sério e duro que foi Graciliano se envaidecesse da permanência de seu personagem.

O Último Minuto, de Marcelo Backes (Fim)

o-ultimo-minuto_marcelo-backesComo escrevi na primeira parte deste texto, a voz de Yannick Nasyniak ou João, O Vermelho, não é única no livro de Backes. Concordo, é ele quem fala por quase todo o romance através de um copioso discurso livre indireto, mas há importantes interrupções de parte do narrador-interlocutor. Ou seja, o livro não é um longo monólogo que se estende por 224 páginas, como li em algum lugar. Uma das qualidades do livro está no contraponto, no diálogo, no reflexo das palavras de João-Yannick sobre o seminarista. Como já escrevi, o livro chega a apresentar uma inversão de posições, dando espaço ao monólogo do seminarista! Outro fato que me causou contrariedade foi a redução feita por alguns jornais, como se o livro apenas argumentasse sobre o futebol como metáfora da vida. Ok, é uma das teses presentes no livro, mas é apenas uma delas. O Último Minuto é bem mais rico. Fiquei feliz ao ler meu amigo Carlos André Moreira na ZH de hoje. Ele caracterizou bem o livro de Backes, passando o centro do romance para a paternidade de Yannick.

De forma muito curiosa, o evento de hoje no StudioClio propõe o tema “A Voz da Prisão” em autores como Nabokov, Sabato, Dostoiévski e Graciliano. É uma boa ideia estabelecer diferenças entre estes ícones e o livro que estaremos comentando. Nestes livros e em O Último Minuto, a posição que cada narrador ocupa é diferente. É lamentável que eu tenha estudado tão pouco o assunto. Vamos, um tanto esquematicamente, ao que lembro destes livros narrados por prisioneiros. Read More

Há 120 anos, nascia um mestre: Graciliano Ramos

Os 120 anos de um dos maiores escritores brasileiros, Graciliano Ramos

Publicado em 28 de outubro de 2012 no Sul21

Graciliano Ramos viveu 60 anos e nasceu há 120, precisamente em 27 de outubro de 1892. Durante sua vida, publicou 10 livros. Tal simetria combina bem com o estilo do escritor – seco, elegante, de um regionalismo muito particular, discreto e onde estavam presentes mais a condição social e a psicologia do que as descrições de costumes e o ambiente. A política, aliás, apareceu em sua vida antes do escritor. Graciliano nascera em Alagoas, na cidade de Quebrângulo. Aos dezoito anos de idade, mudou-se para Palmeira dos Índios, onde o pai era comerciante. Em 1928, tornou-se prefeito. Um excelente prefeito. Permaneceu no cargo por dois anos, renunciando em 1930.

Durante sua gestão, tomava atitudes polêmicas como a de soltar os presos para que construíssem estradas. Outra curiosidade é que seu talento para a literatura foi descoberto a partir dos relatórios que escrevia como prefeito. Ao escrever um relatório ao governador Álvaro Paes, chamado “Um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928”, publicado pela Imprensa Oficial de Alagoas em 1929, o escritor se revela mesmo ao abordar assuntos de rotina da administração. Seus relatórios impecáveis, mas também irônicos e apresentados em forma livre, dificilmente seriam lidos sem estranheza e admiração. Após a renúncia, foi nomeado diretor da Imprensa Oficial de Alagoas. (Aqui, temos o relatório enviado pelo prefeito Graciliano ao governador de Alagoas em 1930). Read More

A loteria na Babilônia, conto de Jorge Luis Borges

Numa semana meio maluca de reformas em casa e necessidade de trabalhar fortemente fora do trabalho habitual para reforço financeiro, fui hoje a um café acompanhado do fantasma de Borges dentro de uma edição argentina de Ficciones. Ele, logo de cara, no conto La Lotería en Babilonia, envia um recado a quem lerá a narrativa.

…nadie había ensayado hasta entonces una teoría general de los juegos. El babilonio no es especulativo. Acata los dictámenes del azar, les entrega su vida, su esperanza, su terror pánico, pero no se le ocurre investigar sus leyes laberínticas, ni las esferas giratorias que lo revelam.

Em seguida, outra curiosidade: a “interpolación del azar” é semelhante à teoria do Barão de Itararé citada por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere? Passemos a palavra a Graciliano, que chamava o Barão pela junção de seu nome, Apporelly (Aparício Torelli):

Apporelly sustentava que tudo ia muito bem. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando seu método, que não havia motivo para receio. Que nos podia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas ainda assim não convinha alarmar-nos, pois esta desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela.

Mas, falemos um quase nada sobre minha leitura: é claro que a parábola proposta por Borges extrapola sua função de ser uma realidade menor que representa uma maior. A loteria É a própria realidade da Babilônia. Ou seja, é a própria vida. A loteria e seus acasos é análoga à vida e vice-versa, regulada por suas regras, condições e infinitas contingências.

A relação mais óbvia que me ocorreu nesta rápida leitura enquanto tomava café é aquela entre a Compañía e a Igreja com suas “ventas de suertes”, o funcionamento silêncioso de Deus, “seu carácter antiguamente plebeyo” e com o total desprezo a quem não participa de sua… loteria.

Porém, o que interessa mesmo a mim é o conto extremamente irônico e divertido, que mostrou-me que posso fazer uma leitura fluida de Borges em sua língua e que isto é um enorme privilégio para quem vem de uma língua materna que produziu literatura bastante inferior…